©cristina carriconde
 
 
 
 
 
 

 

O Rodrigo foi uma das primeiras pessoas que me levou a sério, quando eu comecei a mostrar para os outros o que eu escrevia. Ele gostou dos meus escritos pelos meus escritos, antes de me conhecer. É que eu sou meio desconfiada, pois no meio musical tem muita gente que diz que gosta do que você faz só para te comer. Na ocasião aquilo foi extremamente importante para mim — as opiniões que eu tinha sobre a minha literatura eram contaminadas, eram de pessoas que gostavam de mim, dos meus amigos, da minha família. Mas o Rodrigo não me conhecia, escrevia bem pra caralho, e gostou. Desde então, trocamos textos às vezes, telefonemas raros (eu não gosto de telefone).

 

Faz uma semana que o Rodrigo me mandou o seu livro (Todos os Cachorros são Azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008), que eu li durante um fim de semana, em Teresópolis. Enchi o saco das pessoas falando do livro, citando aforismos cunhados pelo meu amigo no descorrer da prosa maravilhosa. O livro me deu uma enorme alegria, me deu uma vontade de escrever desgraçada. E essa vontade de escrever desgraçada sempre nasce quando eu leio um bom livro — então eu sabia que o livro era bom mesmo, que a minha opinião não estava contaminada.

 

Ficaram comigo algumas perguntas, e aqui estão elas. [Julia Debasse]

 

 

 

 

 

Julia Debasse -  Qual é a diferença entre o louco, o maluco e o doido? A palavra "louco" é muito mais presente no seu livro do que qualquer um dos outros, tidos como, sinônimos.

 

Rodrigo de Souza Leão - Acho que há uma vulgarização das coisas. Por exemplo, a palavra "surreal", que tem uma história, é tratada de forma sempre corriqueira. Tudo que é diferente é surreal. A maioria das pessoas que a utilizam sabem pouco dessa história. Vira moda. A coisa toda vira moda e todo mundo sai falando o que quiser. A palavra "loucura" também é usada assim. Vulgarizada, melhor, estereotipada. Quanto às palavras "maluco" e "doido", a coisa toda é muito pior. Depois de "Maluco beleza", que é uma beleza mesmo, todo mundo passou a se definir assim, gratuita e banalmente. Não gosto da loucura como algo bom. Para quem realmente tem uma doença mental, é uma coisa ruim. Quando o Luciano Huck entra no programa dele e repete a palavra loucura três vezes, ele colabora para essa história triste, acho. Um desserviço. Pra que isso? Por que banalizar algo péssimo? Algo que só atrapalha e destrói vidas. Ser louco não é ser livre: é estar preso a grilhões que tornam as pessoas comprometidas com uma realidade hostil. Usei mais "louco", porque é mais grave. O conceito de "louco" é forte ainda.

 

 

JD -  Você pode estabelecer alguma ligação entre a sua prosa e o Os Cantos de Maldoror?

 

RL - Nunca li esse livro. Tenho muitos buracos. Muitas lacunas e muita preguiça. Mas creio que de forma indireta, fui muito influenciado pelo surrealismo. Gosto muito da poesia de Roberto Piva. Paranóia é um livro incrível. Um poema denso. Carregado de imagens. Uma coisa maravilhosa. E um aspecto dessa pergunta, acho, é muito pertinente. Quando um leitor gosta do livro, ele, de uma forma, inverte a angústia da influência; faz um link com outras obras que foram impactantes para ele. Assim, foi comum gente que encontrasse Lewis Carol, Beckett, Kafka em minha história. Creio que fazer algo novo é muito difícil hoje em dia. Por isso as pessoas fazem estes links. É claro que a associação é positiva, mas ainda sou um escritor em processo. Falta muito para eu chegar perto de um mestre.

 

 

JD - Quanto uma pessoa precisa viver para escrever? Essa é uma espécie de questão Proust — como a sua experiência acumulada de "transeunte" se relaciona com a sua experiência de uma pessoa que raramente sai de casa? Você sente que se relaciona menos com o mundo do que se relacionava? Quando eu digo mundo eu quero dizer, basicamente, acontecimentos sociais e culturais do seu país — as gírias, as músicas, as novas modas... Não a eleição do Obama.

 

RL - Uma pessoa, para escrever, precisa mais ler do que viver. Mas é claro que as experiências de vida são importantes. Proust vivia num quarto forrado por cortiça, porque ele não tolerava barulho. É um dos grandes. Não há nada que substitua o viver. Eu, que já tentei o suicídio e voltei após ter tomado uma caixa de Amplictil, sei disso. Creio que o ideal é buscar sempre ávido aquilo que nos dá prazer. Não sou contra o hedonismo exacerbado. Eu vivi mesmo até os 23 anos. Encaro isso que vivo hoje como sobreviver. Dava tudo para poder voltar a uma vida normal. Voltar no tempo. Reconstruir minha vida. Poder voltar a sair. Mas a minha mente me impede. A cabeça do ser humano abarca uma gama de medos. Na verdade, sou um covarde. Não enfrento as coisas de frente. Tenho medo de ser um estraga-prazeres. De sair com as pessoas e passar mal. Mas uma coisa muito interessante acontece na seara de Eros e Tanatus. Quando estou apaixonado, enfrento muito a minha mente. A força de Eros é mais forte. Tanatus morre.

 

 

JD - A sua prosa freqüentemente engloba acontecimentos e formas de dizer tipicamente cariocas. Eu creio que, inclusive, o seu senso de humor (sacana e aproveitador) é muito típico do Rio. Como a sua prosa e o seu humor, se relacionam com o Rio de Janeiro?

 

RL - Quando fui internado pela primeira vez dava pra ver o Cristo Redentor dentro do quarto mínimo, através das grades. Sim, hospícios não têm janelas e sim grades. Sou um cara da Zona Sul da cidade. Tenho enraizados os hábitos de classe média carioca. Ia à praia. Jogava futebol nas areias de Ipanema. Jogava pólo-aquático no Flamengo. Adoro futebol. Freqüentava o Maracanã. O baixo Gávea. Toquei no Circo Voador. Vi todos os shows possíveis na minha adolescência. Eu era, como todo o carioca, um bom sacana. Malandro. Preguiçoso. Sarcástico. Nasci aqui e adoro esta cidade. Penso que este jeito de ser está na minha escrita de uma forma natural. Não forço a barra. É uma coisa inconsciente. Tem vida própria dentro de mim. É difícil de dizer o que acontece para eu ser tão carioca assim. Passei a infância no Leblon. Adolescência em Ipanema. A maturidade agora chega e estou trancado no meu quarto do apartamento da Lagoa. Vejo uma garça voando na Lagoa.

 

 

JD -   Onde ocorrem as mudanças de "estilo" na sua prosa? São necessidades da propria trama? Como você vai de descrições que beiram o piegas para uma realidade brutal?

 

RL - Ocorre praticamente o tempo todo. Eu utilizo muito a repetição. Mas como? É difícil de precisar. Creio que uma das pessoas fundamentais nas mudanças de ritmo foi Leonardo Gandolfi. Ele me ajudou muito neste livro. Dizia para aumentar um trecho, diminuir outro e acho que o resultado foi bom. Ir do piegas à realidade brutal era algo automático. Tudo tem seus pólos opostos de descrição. Não queria que sentissem pena de mim. Trabalhei na linguagem. A linguagem que é o lance do livro. O pulo do gato, entende.

 

 

JD -  Você teria sido capaz de matar Temível Louco [personagem do livro]?

 

RL - Na verdade, tive um problema com um interno chamado Augusto. Chegamos a sair na porrada, mas fomos logo apartados. Não sou capaz de matar ninguém. É preciso muita coragem para matar. Eu não tenho sangue frio. Mas mato muita gente na ficção. Na ficção, posso tudo. É essa totalidade que quero. Matar todos os meus inimigos na ficção é um dos meus projetos de vida. Exorcizar-me. Catarse pura. Adrenalina.

 

 

março, 2009

 

 

 

[Nota das Editoras: o título desta matéria considera o fato de que o entrevistado, o querido Digão, é um perguntador de primeira. Nosso colaborador já entrevistou mais de 200 escritores entre poetas e ficionistas, e algumas dessas entrevistas estão publicadas aqui, na Germina. Agora, então, é a sua vez de abrir a boca para responder. A gente escuta com muita atenção e justo afeto.]

 
 
 
 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há flores na pele, e de Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008) entre outros. Participou da antologia Na virada do século — poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita o blogue Lowcura. Mais na Germina.

 
 
 
 

Julia Debasse tem 23 anos, é compositora, artista plástica e flamenguista patológica. Se diz escritora, pois escreve por prazer desde que se entende por pessoa alfabetizada. Seu primeiro disco será lançado no meio deste ano de 2009. Para ler, clique aqui. Para ouvir, clique aqui.