SOBRE OS VÉUS DAS NINFAS

 

 

(Réfléchissons... pour Mallarmé)

 

 

Passo por sua noite

como sombra

que nem se esconde

nem se dá a ver

 

seu olho negro-ébril

busca roubar a luz

de um desejo

sem nome ou data

 

transbordo-lhe esse amor que é meu...

de tão meu que não lhe dou:

 

nem minha serenidade crestada

ao sol de cada grito,

nem meu frio verniz de donzela

enganam o seu faro —

fauno de l'après-minuit.

 

adorável noite

dobrada ao meio.

sem lua

sem sonho ou sombras

 

 

 

 

 

 

ARLEQUIM

 

Ame um Arlequim

E vai ter que sondar

no meio da noite

sombras de máscaras e serpentinas.

— Que elas demarquem verdades

(evidentes demais)

... e se esqueçam dos silêncios

que ficam entres os dedos vazios

 

Ame um Arlequim

E vai ver um segundo

Eterno,

luz que ofusca

a atração dos poços

cegos

e ocos.

 

— Terna aragem,

recém-nasceu no berço da noite

e já conheceu

as tormentas loucas

de solidões sem rumo

ou medo.

 

O fio do bordado

recorta os retalhos

de fantasias incertas:

trapos, frangalhos, cacos,

sobras e restos.

 

Tudo que é inútil

tomba num solo

(real demais).

 

uma música divaga na distância, Arlequim.

E o mundo se afasta, sempre,

demasiadamente só.

 

 

 

 

 

CODA                            

 

(quebra-nozes)

 

Desejo incerto de

Estranhas codas,

 

Estranhos refrãos

e indistintos toques

 

— Rima pobre; solfejo; sol feio!

 

O mundo, sem oceano, que me cerca

 

leve

leva um frágil barco

(que sustenta o céu e a terra)

 

lava o linho nas pedras,

e atira ao vento

as fibras

finas

de seu riso

 

 

 

 

 

 

QUE DIZER A ELAS?

 

O que direi a essas quantas olgas?

que partiram de um dado instante

de não sei que paragens

 

e se embrenharam na vida...

Tão perdidas!

Tão olgas

como cada consciência do que eu era

 

Tão elas!

 

Talhadas no leite branco

derramado

na toalha ancestral.

 

Recém nascido espanto

no olhar prenhe de outros olhares

de outros lugares...

sempre além de mim

 

Exercícios de Olga

no vai e vem do

dever sempre sendo:

— Escolhas que um sopro alheio lançou ao mundo

(faz tempo)

Vento louco de fugas e encontros

 

...e tantas folhas mortas...

 

Tantas olgas, meu Deus,

que dizer a elas?

 

 

 

 

 

 

O NOME

 

Nome que invade

e alimenta

o fluxo louco dos rios

Rios que mancham e

marcam a terra

que lavram

 

Nome tão estranho

que acaricia

e fere o corpo

e se deixa cair

 (soletrado)

como um pingente

grotesco

 

Vejo esse nome estrangeiro

preso em mim

não sei por qual

vontade

E que devolve o meu olhar

de espanto

como se não soubesse

dizer mais...

nada!

 

 

 

 

 

 

CORPO ESTRANHO

 

Eu e esse corpo estranho:

 

― No rosto, marcas....

― De quantos esquecimentos?

 

― Um corpo com ritmos...

― Não os controlo nem conheço.

 

As mãos tremem

A pele pede

Os pés correm

                         de não sei que fuga

 

As veias e os ossos sofrem sozinhos

no silêncio de seu próprio

pulso

 

... e febres

podem tomar um corpo tão estranho

que pode até morrer sem me avisar...

 

 

 

 

 

 

ENTRE AGULHAS

 

Escrevo

com a ponta das unhas

fisgo por fisgo

em gestos agudos

detalhando curvas e linhas

no ar escancarado

que perfuro

 

 

 

 

 

 

AD VINHO

 

O rascunho

é quase vinho

posto na garganta do futuro

 

Mancha de nadas

Entrelida na borra

Espessa

de copos esquecidos

 

(eternamente sujos)

 

 

 

 

 

 

DAS PALAVRAS

 

 

"Estremeço de prazer por entre a novidade

de usar as palavras

que formam intenso matagal". Clarice Lispector

 

 

... pois eu tenho medo

quando vejo

as palavras:

— rebanho manso

caminhando

obediente

para o matadouro

 

... temo a armação oca

de seus arcos

quando as linhas

de grafite

abrasam

a brancura

do papel

 

... é quando elas cantam

o lamento

dos seus riscos: 

— quase sempre ecos indistintos

de paisagens em carne viva

 

(ou mortes

sufocadas na deglutição

das línguas

de outras eras)

 

... tenho sempre medo

dos soluços

desse estranho

gado:

— que ele passeia tranquilo

nas margens silenciadas

de meus dias...

 

 

 
 
 
 
 
 
 
Olga Valeska. Escritora. Nasceu em São Paulo, mas é de família mineira e vive em Beagá desde 1969. Possui mestrado em Teoria da Literatura pela UFMG (1998), doutorado em Literatura Comparada pela UFMG (2003) e Estágio de Doutorado Sanduíche UFMG/El Colegio de México-COLMEX, cidade do México, México (2002). Trabalha com pesquisa no campo da poesia contemporânea, é professora de Língua Portuguesa e Literatura no CEFET-MG e coordena o Curso de Mestrado em Estudos de Linguagens, na mesma instituição. Poeta e ensaísta, publicou diversos artigos em revistas especializadas e tem poemas e traduções publicados no Jornal DezFaces, Mulheres Emergentes e nas revistas Ato e Zunái.