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"Autoras que engolem as palavras como pílulas, que bebem a escrita feito um cálice de veneno, que

utilizam a literatura como um trampolim para o salto mortal ou lâmina afiada para ferirem suas próprias

carnes, atingirem suas artérias e rasgarem suas veias... literárias". Valéria Tarelho in:

Revista Eletrônica do Instituto de Humanidade. vol. IV – n. XVI – jan/mar 2006

 

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Quem lê sabe que está cada vez mais difícil escrever. A desfaçatez leitoral prenhe de indiferença pela Literatura dita séria e criativa, aliada a uma questionável megademocratização do ato de escrever, e à instantaneidade da proliferação virtual, fizeram do autor um concorrente de si mesmo na disputa de recepção para seu menu de ofertas. E de tudo tem um tudo. Antologias, por exemplo. Sempre polêmicas. Trazem em si o estigma da exclusão, de escolhas malfeitas, de critérios cristalizados, parâmetros convencionais impostos por uma academídia que já não se enxerga, seleção baseada no tour de force amical ou na conveniência mercadológica, além de fazer apologia da generalização e defender argumentos bizarros, para justificar arremedos literários em nome de supostas e questionáveis originalidades.

Reunir numa coletânea 30 autoras brasileiras de todos os sexos, com textos em prosa e verso, num "fuzuê de estilos" que vão do "contemporâneo casual, neonaturalista moderno, pós-moderno, neobarroco, minimalista clássico e até parnasiano"1 é, no limite, empreitada de risco.

Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas, organizada por Florbela de Itamambuca e Silvana Guimarães, assumiu correr esse risco desafiador da mesmice inteligente. O livro resulta de 4 anos de publicações mensais do site Escritoras Suicidas, editado pelas organizadoras e Mariza Lourenço. 

Há um risco porque, mesmo opondo-se a gêneros (como se a Literatura se resumisse neles), a convenções e invencionices pós-modernas da (última) hora, fato é que nem sempre (ou quase nunca) antologias justificam ser livros antológicos. Em antologia há (alguns) textos demais e (muitos) textos de menos. E Dedo de moça não é exceção. E porque o que motiva uma antologia é a Literatura, que subentende textos de qualidade, hipócritas leitores, mas aptos à sua degustação, e gente especializada para informar que certos livros sobrepõem-se a ser simplesmente amebas felizes ou libélulas saltitantes no jardim das delícias da vaidade literária.

A questão do gênero é desconsiderada pelas autoras "suicidas": o site foi pensado inicialmente apenas para mulheres, depois admitiu-se que seria importante a presença de homens, desde que incógnitos, posicionando-se, então, como "um site de mulheres e homens que fingem de". O que faz lembrar de imediato a fórmula mítica no discurso de Aristófanes, ao expor o tema "amor" em O Banquete, de Platão: segundo Aristófanes, no mito dos andróginos, lá no bas-fond da humanidade os seres eram duplos e tinham três sexos: um era constituído por duas metades masculinas, outro formado por duas partes femininas e o terceiro, metade homem e metade mulher. Porque desafiaram os deuses, Zeus fatiou os homens em duas porções, tornando-os mais frágeis e, desde então, as metades separadas procuram sua integridade no tempo e no espaço como um elo perdido. 

O título da antologia aparece como tema no livro Memórias de Patty Flag, pseudônimo de Gertrude Patrícia Fahne, berlinense que fugiu para o Rio de Janeiro, ex-judia, ex-puta, ex-dona de casa, ex-evangélica e uma escritora de mancheia. Em seu miniconto "Ardor", lê-se: "Foi o pote de conservas quem me convenceu. Pimentas, quase o pecado em sua forma e cor. 'Was ist das?', pensei alto, e João — tenho certeza, era João — 'O quê?'. 'O quê', eu repeti. 'O que o quê?'. Ri. Rimos. 'É pimenta', ele disse. Pegou em minhas mãos e completou, 'dedo de moça'. 'Finger von Mädchen, finger von Mädchen'".

"Dedo de moça" é nome de intenso consumo brasileiro: nome de lanchonete, pizzaria, site, ateliê gastronômico, boteco e ingrediente de receitas em sua versão calabresa, conhecida também como "chifre de veado", além de intitular miniconto do professor de oficinas literárias, o curitibano Conrad Rose. Em um site homônimo, lê-se: "A pimenta dedo de moça é dama de perfume inigualável. Caprichosa, ela pode escolher ter sementes ou não. Pode ser ardida ou suave. Pode escorrer na boca, ou morrer por uma mordida. E porque toda mulher tem um pouco de pimenta, criamos a Dedo de Moça para espalhar aroma de vermelho e arte por aí. Dedo de Moça é garantia de festa para os sentidos". Tem tudo a ver também com Dedo de moça, a antologia. Picante, sensual, ardido masco de vida. E brinca com os dedos masculinos intrometidos nela.

 

 

Suicídio Literário: Um abismo Para Cima

 

A denominação "Escritoras Suicidas" não é uma roleta russa no tatami de papel. Tampouco uma sessão post-mortem para reverenciar cadáveres ilustres de escritoras que se mataram, tipo Virginia Woolf, Ana Cristina César, Sylvia Plath, Alejandra Pizarnik. Ou, de resto, o espelho que reflete a egolatrice de mulheres infelizes, mal-amadas, ou com disponibilidade de tempo para se dedicarem a mal-traçadas linhas numa happy-hour de shopping.

A ideia inicial do site contrapõe-se, diz a insuperável Silvana Guimarães, como "ironia ao estigma que impuseram à 'literatura feminina' = drama + depressão + suicídio"2. E é, também, segundo Mara Coradello, "a contestação irônica a respeito da existência de uma literatura feminina". Com um tiro de linguagem na mosca azul machadiana, esta autora, que já participou do site, acrescenta que o suicídio se justifica, "sob a égide de que vale a pena se matar de amores pela literatura — essa deusa amarga e atemporal"3.

Suicida inclui, no caso, a autora consciente de matar-se em depuração de linguagem, de despojar-se da ilusão literária, da concepção feminista como bandeira de luta (mesmo de luterária), em concorrência genérica machista. O suicídio é o ato de ter coragem para o auto-extermínio do igual, da voz frágil que não acrescenta. É a condição de, como todo ser humano, ver-se projetada — por mérito próprio — num abismo para cima, que se supera com uma escritura de qualidade, que independe do objeto do desejo de uma aranha elucubrando o imaginário com um vibrador.

Uma forma criativa de ler Dedo de moça é ir de encontro ao que é mesmo diferencial nas autoras que (se) pensam na linguagem e dela constroem, em meio ao fragmentário, sua própria dicção. Lia Beltrão alude a um vício linguístico, que se impõe à expressão "corpo e alma, corpo e espírito, corpo e psiquismo, corpo e mente". Nina Rizzi é categórica e resume a condição mulher na antologia: "louca pra não ser pouca".  Romina Conti [pseudônimo do escritor Rodrigo de Souza Leão, falecido em julho de 2009] apresenta uma nova versão de como a mulher é "Poderosa":

 

o espelho só reflete o que quer

é o dono da imagem

 

alguma deformação em meu rosto

faz parte de minha engrenagem

 

mastigo todo o silêncio

e engulo o que me reflete

 

a escultura que nunca aparece

sou a madrasta da Branca de Neve

 

É também "desta poeta" uma síntese realista da mulher que se anula no negativo para ser: "como se nunca um dia / tivéssemos sido gente".

Autora sob pseudônimo de Santa Maria, secretíssima, põe por terra o coitadismo, a ingenuidade, o complexo de Alice, a imagem da  boa-moça, os séculos de exclusão, ao asseverar que "algumas merdas são tão necessárias na vida da gente". Porque "a merda é capitalista", porque há a "merda da dúvida", porque mesmo "as comidas caríssimas viram merda", porque "nem o cu ia ter função se Deus não tivesse criado a merda", e, em decorrência, "merda é uma obra de arte criada pelo cu", como "as formas abstratas da merda — um primor de originalidade".

Outra iconoclasta anti-freudiana, Tatiana Alves, compõe a "Psicografia da Mulher-Redemoinho": "O amor maior é o que sobrevive nos detalhes. Ausência sendo. Sabor de saudade. Travo amargoso. Sem gozo". Tati Skor põe na roda questionamento que, hoje, todos se fazem ante situações inusitadas, as que surpreendem, dilaceram, jogam contra a parede e que fazem até rezar em agradecimento à sobrevivência: 'Por que essas coisas acontecem comigo?'".

Na esteira desse viés pensante do texto, Verônica Couto interpela aquele momento em que, sem exceção, todo ser humano se flagra em dúvida, insegurança, incerteza e desconhecimento, quando levado a se explicar ante uma situação no mínimo constrangedora, e, como quem se defende, diz: "Há uma palavra para isso". E completa: "palavra reservada. Maldita, digo, indigitada". Aquela palavra que vai, hoje, justificar estar a mulher com "um pé na marcha dos sem-terra, outro na casa do traficante", "misturando verdade e mentira, fazendo esquecer a palavra".

Valéria Tarelho se posiciona na prática: "prefiro o gesto, à palavra / sou mais o não dito, subentendido / no jeito mundo que ele me toca". Virna Teixeira também dessacraliza a condição de normalista sacré-coeur: "também a frieza é humana / Não há visão sem fogo, é incandescente a fúria, a labareda".  E dela vem outra síntese brilhante: escrever pode ser uma tentativa de não "perder os sentidos", uma "tentativa de controlar o caos".

Quem é apologista do suicídio mesmo, dessas que matam por conta própria, sem choro nem vela, é Silvana Guimarães. Seus "7 Contos de Réus" incluídos no livro falam: "tá lá um corpo estendido no chão". Primeiro, um corpo como um guisado "Al Punto": "Não me toca, meu bem, sou ferida aberta. Faz o sinal da cruz, fecha os olhos e salta. Embaixo a multidão espera, ávida: jantar para mil talheres". Em "Romã", com maturidade minificcional, a autora arremata: "O travo na língua, o braço dormente, o corpo espatifado no chão. Pela janela escancarada, a lua transitando em Gêmeos anunciava: momento excelente para a fatalidade". Em "Aisthetike", tendo São Paulo por cenário, "o pulo, a queda, o baque". E a desconfiança atroz, mas tardia: "Ainda assim leva a dúvida, se não seria a morte em Veneza mais bela". "Ninharia" é a própria catástrofe humana: órfã de pai e mãe aos cinco anos, perda do único irmão aos quinze por overdose, enterrou o filho caçula aos vinte e cinco — causa mortis: desnutrição; aos trinta e sete "perde" o marido de cirrose, aos quarenta e um o primeiro filho morre numa queima de arquivo, aos quarenta e oito a filha do meio, de aids. O que, porém (ironia do destino?), a fez se suicidar aos cinquenta e sete anos foi a morte do gato cinza. Em "Aflitos", um menino de rua se mata na Praça da Sé com álcool e fogo num espetáculo mórbido, que é indicador do "final dos tempos": criança se matar. Em "Latomia", uma mulher morta insiste em repetir "o ritual sangrado": "abre a porta do armário, revira uma gaveta, destampa uma caixa, espalha papéis". Seu pulso aberto prova que "a flor da paixão só tem espinhos". Ela não percebe que "a vida é incurável". No final, em "Ícaro Suburbano", um microconto de exatas 50 letras, um homem salta de uma janela e a última coisa que escuta na vida é a voz de uma criança dizendo: "Mãe, olha o passarinho".

        

 

Vingança Discursiva: A Desconstrução do Medo

 

Foi-se há muito tempo a concepção da Eva arquétipo da transgressão a Deus, como mito fundador da cultura ocidental desde o ato de desobediência sagrada, do ato de apropriação e reprodução da espécie através de sua função de interlocutora de alteridade pela via do corpo-matriz.

A mulher contemporânea é contemporânea de si mesma e se impõe contra o poder fálico do eu-gozo-e-você-vê, a cultura latino-americana da tradição machista, o exorcismo patriarcal do mando e do incesto, a usura abjeta da mulher-objeto; contra a versão brasileira da mulher cama-mesa-e-cozinha e coitadinha.

A mulher agora vinga sua subserviência forçada, sua submissão estereotipada. E, diria Nietzsche, "na vingança e no amor a mulher é mais bárbara do que o homem". A mulher vinga pelo corpo e vinga pela alma. Não raro, pelos dois. Agora, os tempos são outros e bem diferentes: sacanagem se paga com lacanagem: "Aquilo de que não se pode falar, é preciso dizê-lo" (LACAN). Caso de Márcia Maia em dois minicontos de deliciosa ironia fatídica. Em "Para Sempre": "Gozei primeiro e, sem pressa, esperei até que ele gozasse, para cravar o canivete, três centímetros e meio à direita da metade do pescoço, abrindo-lhe, a um tempo, a jugular e a carótida, no momento exato em que, dentro em mim, ele jorrava. Sempre ouvi dizer que morrer na hora do orgasmo eterniza o gozo". E em "Irreversível", com uma descrição em linguagem travelling truffaultiana: "A escuridão. O mato me arranhando as costas. A sede. O sangue. O desespero. A dor. E ele, o maldito, tomando posse do meu corpo como fosse entulho, lixo. Até se fartar. E me deixando ali, à beira-nada, sangrando, chorando, doendo, para morrer devagar, eternamente, a cada dia, a cada noite, a cada ano. (...) Senhor e dono e amante e algoz e tirano: o medo. Por tudo isso, quando o vi parado à plataforma da estação, não hesitei. Esperei até ver a luz do trem, da locomotiva do metrô, bem perto. E o empurrei. Na correria para entrar no vagão, ninguém percebeu. E eu, naquele exato instante, criei asas. Mas não ressuscitei".

A descrição de Mariza Lourenço em "L'image" é, esta sim, antológica — o fotógrafo Andréas Prurianov produz fotos de uma mulher comum e as expõe "entre as deformidades, os pés tortos, as caras amassadas, os crânios enormes". Para vingar-se, a modelo fez curso superior de fotografia e depois de oito anos de labuta intermitente, encontra-se com ele "quase por acaso, numa mostra fotográfica em Nova Iorque". Fascinado, o fotógrafo propõe casamento à modelo, que aceita. E declara: "Às escuras ela permitiu que ele lhe rompesse o hímen, que urrasse e babasse de paixão sobre seu corpo. Às claras ela lhe mostrou o sangue entre as pernas. Ele tremeu de tesão. E, assim, foi morto. Ele e seu pênis ereto. Foi retalhado. Partido em pedaços. E só então: fotografado". Também no minirrelato "Sono", esta autora vinga a traição de sua personagem: "enlouqueci. não encontrava nada que pudesse confrontá-lo e às mentiras e à amante. nada. só a concretude do fel em minha garganta. a essa altura eu já não carecia de qualquer estímulo para acabar com a agonia que ele me causava. pus fim à sua vida da mesma maneira que ele tentou dar cabo da minha: durante a noite, na hora exata em que o doce silvo em sua boca anunciou a profundidade do sono".

Ro Druhens relata a dor de uma "mulher abandonada" em "Tríptico Mortal", desforrando-se de seu marido energúmeno, saltando do alto do prédio ao mesmo tempo em que ele morria em acidente de carro, na manhã veloz: "Lá fora, na curva da esquina, ele não viu o corpo que flutuava no espaço, tampouco o motorista bêbado, na contramão. O que a morte uniu, nem a vida separou". Em "Sopa de Letrinhas", a vingança com todas as letras: "A cada vez que limpava a carne pro almoço, lembrava dele. Aquele pedaço de carne inerte, à mercê de sua vontade de fazer dele picadinho, bifes massacrados com o soquete, ou até, quem sabe, um belo assado onde enfiaria, impiedosa, uma grossa linguiçona. As pelancas, que desprezava, seriam guardadas para que as comessem as cadelas vira-latas da vizinhança. Os nervos, expostos, serviriam pra uma sopa de letrinhas que ela tomaria, engolindo o alfabeto inteiro. E todas as palavras. Como fora desde sempre".

Em seu livro Por que as mulheres somos infiéis, a psicóloga alemã Gisela Runte considera a vingança como um dos dez motivos pelos quais elas não apenas cometem traição, mas matam em nome do amor. As autoras incluídas em Dedo de moça matam homens, motivadas pela usura indevida, oportunista e torpe do machismo. A vingança discursiva insurge contra o falocentrismo literário das sociedades patriarcais e a favor de uma mulher de sexo forte, imbuída de desejos, com liberdade de escolha para ter prazer, liberada. Uma mulher que faz gestão de si mesma. Competente para cometer transgressões, para ter livre arbítrio. Por isso, ler seus textos implica em despojar-se de hipocrisias, de preconceitos, de confianças construídas. E em entender definitivamente que o corpo-mulher é pleno de significações, portanto, de discursos múltiplos. A Escritora Suicida, ao cometer crimes discursivos, faz, em nome da classe mulher, recorrência ao ressentimento cristalizado na memória do abuso. Ela se confessa em público, em vez de se guardar na clausura do silêncio, do anonimato, do consentimento, da anomia. Assim, Dedo de moça é uma Lei Maria da Penha da linguagem. Tal como na vingança de Afrodite, que desrespeitada pelos os que a tratavam com soberba, como Hipólito, filho de Teseu e de Amazona, fez com que este, ao ir à casa de Piteu para assistir à realização dos sagrados mistérios na terra do rei Pandíon, seu bisavô, se apaixonasse perdidamente por Fedra, nobre esposa de seu pai. Moral da história: fez na Grécia Antiga, paga em qualquer parte do mundo atual. Como diz o velho e bom ditado: escreveu, não leu, a aranha comeu. Autor de A dominação masculina, Pierre Bourdieu que se cuide: a violência simbólica já tem suas algozes. E elas são diabólicas.

A antologia tem outros focos interessantes de leitura: o realismo social de Cida Pedrosa em "Sihem": "sob a burca negra / o olhar sem véu / espreita a hora certa (...) amarras de pólvora / em volta do corpo / e o fogo da redenção / a sacolejar na partida // sihem não deixa filhos / um corpo para o desejo / nem sequer rostos aflitos / à sua espera // sob aos céus sem recompensa // o profeta não predestinou 40 virgens / para festejar sua chegada". Em "Milena": "gosto quando milena fala / dos homens / que comeu durante a noite // é a única voz soante / nesta cantina de repartição // onde todos contam: / do filho drogado do preço do pão / do sapato carmim, exposto na vitrine (...) sem a voz de milena / o café desce amargo". A propósito, Laurentis (1994) diz que "o sistema sexo-gênero é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social) a indivíduos dentro da sociedade".

Há também muitos textos eróticos com o dedo de moça em riste esperando o leitor. Algumas boas referências são a proesia de Adelaide do Julinho, ironia a palo seco, como em "Vibra Call", "Em Riste", "Mais em Bashô", "Consciência Ecológica", "Punhetrix", "Hipnose"; "Kelle", de Cida Pedrosa; "O Presente" e "Gol", de Dominique Lotte [pseudônimo do escritor Iosif Landau, falecido aos 85 anos, em agosto de 2009]; "virgem santa", de Líria Porto; "Dias de Guerra", de Romina Conti, entre outros(as).

O erotismo em Dedo de moça é um desafio à linguagem bem-comportada, uma vez que as Escritoras Suicidas opõem-se mesmo àquelas que Nelly Novaes Coelho chamou de "transgressoras do cânone fundante da civilização cristã-burguesa: o interdito ao sexo". As autoras não demonstram uma transcendência ferótica, uma cínica pureza d'alma, tampouco lembram, nem longinquamente, a poesia e a prosa feminina praticada até o século XX como expressão do "sorriso da sociedade". Nelas, não ficou vestígio da caretice da escrita feminina que se escondia no anonimato, no pseudônimo (com uma ou outra exceção ainda), na dissimulação da identidade, na linguagem contida e auto-censurada, na sexofobia, no convencionalismo de leitura de salão. Poetas e minificcionistas da antologia têm a convicção de a linguagem ser/fazer diferença. Em sua escritura, o imaginário goza. Sem pudor. Sem a vergonha de ser/fazer feliz. Sem submissão. Corpo, sempre. E alma, quando for possível.

Enfim: Dedo de moça é uma leitura que ajuda "a desembaraçar as relações que as mulheres têm umas com as outras", e que, na contemporaneidade leva a "compreender como uma cultura feminina se constrói no interior de um sistema de relações desiguais, como essa cultura mascara as falhas, reativa os conflitos, enquadra tempos e espaços, como ela pensa suas particularidades e suas relações com a sociedade global" (CHARTIER, Roger apud DAUPHIN, 1986).

 

 

 

 

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O livro: Florbela de Itamambuca e Silvana Guimarães (org.). Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas. São Paulo: Terracota Editora, 2009, 160 págs, R$26,00

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Notas e Referências

 

 

 

dezembro, 2009

 

 

 

 

 

Márcio Almeida (Oliveira/MG). Professor universitário, poeta, crítico de raridades e jornalista.
 
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