"A linguagem foi dada ao homem para que este

possa fazer uso surrealista dela".

André Breton

 

 

Segundo o rabi Moshe Idel: "A linguagem é um instrumento poderoso para entender a realidade natural, e até o mundo espiritual está projetado de modo apropriado sobre a estrutura do material lingüístico. Quando, entretanto, o homem aspira a uma experiência mística absoluta, deve romper a linguagem estruturada, uma vez que precisa apagar as formas inscritas em sua mente a fim de dar lugar a entidades mais elevadas". O poeta é aquele que desestrutura a linguagem para restabelecer a magia primitiva da palavra — assim podemos afirmar em referência a Barthes e André Breton. Somente o poeta no estado de profeta alcança o princípio místico da linguagem, e esse alcance assemelha-se a retornar à condição pré-adâmica, quando o homem antes do pecado tinha os olhos abertos às letras divinas que compunham a canção do universo, cujo nome é Deus. As letras divinas, no princípio, estavam desarranjadas como os átomos de Demócrito chocando-se no vazio, sem, no entanto, se combinarem para a geração de elementos lingüísticos, apenas permaneciam em seu estado de mônades absolutas. Quando o homem cometeu o pecado, as letras divinas, que antes estavam separadas, combinaram-se para compor o tempo e combinaram-se de modo que cada palavra e texto era uma variação do Nome de Deus. Segundo a cabala, no dia da queda, o homem trocou seu traje divino pela pele de serpente (Gênesis 3: 21-22). Nesse momento, as letras se materializaram no corpo do texto e do tempo, algo que nos lembra a encarnação do Cristo (João 1: 1-5, 14; Filipenses 2:6-7). Pode-se afirmar, de certo modo, que a linguagem corrompeu-se e que o poeta busca reconstruir a língua da Criação que é o primeiro som: "Haja Luz". Assim, no estado místico de profeta, o poeta alcança a transcendência de si mesmo, quando combina as letras em estruturas ininteligíveis, i.e., quando realiza a atomização da linguagem em seus elementos primários, cujo sentido (o texto) se dá por uma relação acústica das letras. O rabi Abraão Abuláfia considera a desintegração da linguagem social em unidades desprovidas de sentido, como o caminho da transformação da linguagem humana em nomes divinos.

Compreendo Anu (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2008) como um poema que atomiza a linguagem em seus significantes, gerando pela relação acústica das letras a materialização do poema (Em hebraico scha-atnez "traje de serpente", i.e., Anu é a palavra (espírito) tornada física (corpo) quando o Som choca-se com o Vazio para gerar a Palavra — "Luz" — Gênesis 1:3 e 3: 21; João 1: 1-5). Mas a Palavra que era antes átomos desarranjados de som no espaço toma a física do texto poético. O que provoca a conjunção das letras divinas no corpo do poema (símbolo hermético do Universo) é o Homem. Wilmar Silva, do mesmo modo que os profetas hebreus — quando estes combinavam as letras sagradas de acordo com seu valor místico, valor que estava representado no som, cujo sentido oral e escrito transcendia à realidade — combina letras e palavras para formar Anu buscando como um profeta transcender a si mesmo.

 

 

Essa forma de composição do poema lembra-me o método místico de interpretação bíblica do rabi Abraão Abuláfia, que se baseia na divisão de seqüência de letras em entidades separadas para alcançar a profecia por meio da recitação musical de letras separadas. Segundo Moshe Idel: "Somente profetas — especificamente, místicos que empregam técnicas abulafianas — são dignos de utilizar o método hermenêutico 'superior', que consiste da atomização ou monadização dos textos bíblicos". É claro que Wilmar Silva não trabalha um poema bíblico, mas sua poesia recupera essa forma num contexto novo, no símbolo de uma ave que é sua metamorfose anímica, que se afirme ser ela a imagem de sua jornada no caminho da transcendência.

Para ler Anu e alcançar essa interpretação atômica do livro, foi necessário dividir os poemas em cores para perceber a composição acústica e compreender o sentido oculto na trama. Assim, fui provocado por Wilmar Silva a exercer o método abulafiano na análise hermenêutica de seu livro e desse modo, descobri que a leitura de Anu é uma leitura que se faz intuitivamente — uma forma de leitura que somente textos místicos produz.

 

 

Anu não leva a uma leitura comum, Anu deve ser recitado como uma canção de transcendência. Canta-se cada palavra e letra que compõem Anu para recriar o spiritus profético e canta-se Anu para transformar-se. A linguagem em Anu transforma-se em entidades espirituais, cuja relação metamorfótica, que se dá pelos elementos acústicos, aproxima o leitor da palavra em sua origem, i.e., a palavra como arquétipo, pois a linguagem é um instrumento poderoso para entender a realidade natural, e até o mundo espiritual está projetado de modo apropriado sobre a estrutura do material linguístico. Quando, entretanto, o homem aspira a uma experiência mística absoluta, deve romper a linguagem estruturada, uma vez que precisa apagar as formas inscritas em sua mente a fim de dar lugar a entidades mais elevadas. Logo, para entender Anu, o poeta (leitor) deve romper com sua linguagem sistemática para poder ouvir a canção de Anu — um poema construído no choque do Som com o espaço vazio do papel para formar a Palavra (Poema).

Não nego que haja dificuldades na leitura de Anu, por isso, há até dificuldade crítica para analisar o livro. Mas tal dificuldade, antes se deve ao leitor, que preso a regras de construção poética, vê impossibilidade na leitura e na inventividade de uma crítica concernente ao livro. No entanto, eis aqui, a beleza de escutar a canção de Wilmar Silva: é preciso inclinar o pensamento para formas primordiais e místicas de linguagem poética, para perceber que Anu é uma reconstrução — ou redescoberta — do significado da poesia. Particularmente, tenho certo deleite em poemas clássicos, creio que haja uma identificação de minha alma com essas formas ornamentadas de poesia, mas seria um equívoco desconsiderar a importância de poetas como Wilmar Silva e Anu. A importância que atribuo a essa forma de desconstrução da linguagem poética, é o ato (poesis) provocar-me a repensar a própria poesia como um ser passível de formas. Anu, por sua vez, não merece ser identificado com nenhum movimento — e formas — de poesia. Anu deve ser visto como um livro à parte de tudo que antes já foi escrito, ou seja, um poema único. Por essa razão, a crítica que faço a Anu não pode ficar limitada a uma leitura impressionista de um teólogo. Pelo contrário, este ensaio é uma abertura a um recorrente processo de pensamentos em torno da poesia atual, em que o homem por meio da linguagem busca reintroduzir no seu meio a visão sacramental do mundo.

 

 

 

Referência

 

IDEL, Moshe. Cabala: novas perspectivas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

 

 

 

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O livro: Wilmar Silva. Anu. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2008.

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junho, 2009

 

 

 

 

 

Anderson Fonseca (1981). Poeta, escritor, autor de Alucinação (Rio de Janeiro: Multifoco, 2009). Escreve o blogue Escritos do Exílio.
 
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