Mergulho

 

Piscina desabitada.

A água fictícia

Banha o corpo atlético

Do homem-palavra

Acrobata das águas

Não é o salto que importa,

Mas sim o bom mergulho nas águas dicionarizadas.

 

 

 

 

 

S...

 

Tampar o buraco da ausência

Com pedra areia cimento

Lançar sobre ela algum entulho

Qualquer coisa que desmonte sua arquitetura

Para afundar em rios violentos de felicidade

A palavra S...

 

 

 

O labirinto e as paredes

 

As minhas palavras são paredes

Altas, médias e baixas.

No conjunto delas anuncio um labirinto

Deite no chão

Tente escalá-la.

O desnível das paredes é a beleza

De toda minha engenharia.

As palavras não têm teto

Labirintos não são casas que albergam homens e mulheres em dias de sol ou chuva.

O labirinto não tem sequer intenção de sê-lo.

É construção, é objeto arquitetônico,

Artefato para decorar casas dos urbanistas da palavra

Não sou poeta,

Sou pedreiro

Domino apenas pouquíssimos e frágeis vocábulos.

Errata: Sou apenas servente que descobriu na construção a engenharia das palavras.

 

 

 

 

 

Gongo

 

Frente a frente

O amarelo ouviu o gongo

E corre com virulência para cima do verde.

A luta corporal anunciada

Os dentes fabricam dores e cicatrizes na pele do verde.

O verde é macho?

O amarelo é macho?

A cor verde é fêmea?

A cor amarela é fêmea?

Qual é o sexo das cores?

Intuo que são hermafroditas

Intuo que não têm sexo

Enquanto clinico os meus pensamentos

O verde sofre com a mordedura do amarelo

Sonha ser vencedor com enormes hematomas em sua pele

E silenciosamente as dores

Proclamam o término provisório da luta.

 

 

 

 

 

Planeta azul

 

O poeta

Sabe menos que um astronauta

Como dizer que o planeta é azul?

Sem nunca ter posto os pés acima das nuvens

O planeta é azul para o astronauta

Para o poeta pode ser roxo,

Lilás

Dourado

Amarelo

Cinza

Qualquer coisa em que a sua imaginação

Puder alçar vôo.

O planeta é azul apenas para o astronauta.

 

 

 

 

 

Rio único

 

Homem-palavra

Lava-se em letras poéticas

Lava-se no rio que ninguém chegou.

Como é bom nadar em rio único.

Saborear sem pressa

Um endereço desconhecido

Neste lugar que Deus me esqueceu

E esqueceu de inventariá-lo.

Somente eu aqui

Outros ainda não vieram

Esqueço o meu lado homem-palavra

Finjo-me deus na superfície das águas

Temo ser descoberto pelo Altíssimo

E morrer como um Narciso.

 

 

 

 

 

Pincel

 

Rasura do escriba

O pincel pinta o poema

A letra se arrasta em linha e curva

As cores invadem a alma do homem-palavra

Alguma coisa se desenha na página

Rios homens mulheres guerras amores

Céu inferno Deus diabo

O pincel mergulhado na imaginação

Cria o oitavo dia que Deus não conheceu.

 

 

 

 

 

 

 

Sem rasura

 

Combinação alfabética

Rasura esquecida no vocábulo.

Vamos apagar o que está feio

O belo já fala noutras bocas

A mão tosca toma rumo estranho

A mão perfeita conhece o formoso poema

Tateia palavras no escuro

Sabe escolher as de melhores fisionomias

Habita todas em breves páginas

Aporta infinitos anos em suas vozes

E faz uma combinação sem rasura.

 

 

 

 

 

Propositura

 

Verde, mude de cor!

O seu fim é vermelho.

 

 

 

 

 

Bóia

 

O rio para um homem

Lançado sem saber nadar

Cai em águas dicionarizadas

Exausto flutua na sua bóia existencial.

 

 

 

 

 

Paleta

 

Rasurar um belo poema.

Paixão pelo feio

Para que pintar de feiúra um quadro?

Ele pode ser belo na ausência da paleta.

 

 

(imagem ©romeo)

 

 

 

 

 

 

Jean Narciso Bispo Moura. Nasceu em de São Félix, BA, vive em São Paulo. Estudou filosofia e  pedagogia, com especialização em educação. Professor de filosofia da rede estadual paulista de ensino. Autor dos livros A lupa e a sensibilidade (2002), 75 ossos para um esqueleto poético (2005), e Excursão incógnita (2008). Participa de antologias latino-americanas. Tem textos traduzidos para o inglês e a língua romena. Único brasileiro a participar da edição n° 37 da Other Voices Poetry, revista ligada à UNESCO, que reúne poetas de diversas nações. Co-autor da revista virtual Anedota Búlgara. Mais aqui.