Psycho cycle, psycho cycle, fogo que consome fogo. A garoa bem fininha, por dentro coração quente. Deus vai longe, mas sobeja poesia, agonia dos anjos em versos cadenciados. Oração crente.

A gente nunca sabe o que pode acontecer. A manhã começou como outra qualquer, o céu confiável, o leite do café bem cremoso. Do oceano vinha uma brisa sutil, que de mansinho chegava pela janela. Parecendo um dia fácil, tudo nos conformes, mas logo passou a se inquietar. A começar pela Dona Laura, a cara magra na calçada oposta, mal pôs os pés na rua. Sair de casa e esbarrar com ela...  não era esquisito cumprimentar a velhota sem a mãe por perto, saltando duas gerações duma vez só? A vizinha disse Oi, tudo bem? Ela tímida, toda corada só de acenar com a mão.

Acelerar o passo, ir até o campinho e ver os rapazes. Eles não cansam de jogar bola, ela não cansa de olhar. Um corre-corre danado, a grama gasta de tanto que eles caem, às vezes parecem bichos. De repente um passe de trivela, um drible no zagueiro, um gol de cobertura. A menina bate palmas, dá pulinhos, gosta de assistir mais até do que gostam de jogar. O suor que eles não conseguem limpar, os palavrões que eles não conseguem conter.

Findo o jogo, um menino se aproxima. Sorriso macio e olhos que zanzam. Ele sabe que ela é filha do poeta. A roupa dele cheirando a cachorro molhado, não deveria chegar tão perto. Ele diz que se chama Zito, e que fez um gol só pra ela. O mais bonito, aquele de bicicleta. Ela titubeia, diz que tava impedido, o juiz não viu. Mas valeu sim; e ele a convida pra um sorvete.

Sem aviso, a garoa engrossa e se torna chuva. Ela diz que não, que a mãe a espera, que vai dar a hora de almoçar. Ele pega na mão, diz que paga, não tem problema, não. Encabulada, ela retorque: e a chuva? Ele nem se importa, prende seu pulso nos dedos forte. Ela cede, impulso cego, e se põe a andar. A camisa dele, agora ainda mais molhada. A roupa dela também, o vestido plissado, vai ficar com cheiro estranho.  A culpa é inteirinha do Zito (que nele parece mais leve).

A chuvinha é de verão, framboesa é um sabor bom. Ele pede de pistache, lambe com sua cara abusada. Deveria ser mais gentil, ela diz. Afinal é filha de poeta. Que ninguém pense que é menina fácil. Ele sabe muito bem, faz tempo que sabe. Surpreende, recita versos de cabeça: As chances vêm e vão/ vêm em vão/ com você o padrão/ se desfaz num dom. Ela não sossega, espiveta: Quaquaquá/ Eu sou ethos/ vocês são pathos! O menino mira obtuso, não sabe como responder. Para de falar com ela, prefere brincar com a colherinha. Parece que desistiu.

 No caminho de volta, não falam quase nada. Nem mãos dadas, nem gracejos. De tão quietos, borboletas na garganta. Ela quer conversar mas não confia; cada pessoa sua própria mentira. Como sempre, muito medo do que não é, então se tortura, abolindo o não-ser. Tornar-se tudo é o pouco que ela tem muito.

         O menino chutando pedrinhas. O que vai por trás do rosto dele? Do rosto sacana e bonito dele? Vontade de disparar à toda, mas ele prometeu deixá-la em casa. Será que é força questionar o tudo, inclusive a alma que se tem? Ou apenas confuso? Antes, conseguia ver até ali, nas colinas. Agora, essas vontades cálidas de ir mais longe, de ter o horizonte um pouco mais íntimo.

         Chegando ao portão, ela se despede rápido, temendo o de repente. E o comichão no ventre. Psycho cicle, fogo que consome fogo. O pai na poltrona, postado com um livro grosso sob os óculos. Beijinho na testa, ela sobe pro quarto. Os bichinhos de pelúcia se inclinam em desalento, com ares abandonados. Ela afaga o gato, que não ronrona, é de brinquedo. O poster na parede descascando.

Ninguém olhando, ela vê dentro da calcinha; mas não encontra mancha. Achou que tivesse: nesse mês não tem período? A mãe diz que nas primeiras vezes não é todo mês. Já veio duas, agora a terceira. Tão estranho esvair-se em sangue, ferida com alívio. Ela fica toda mole, os dedinhos formigantes. Quando termina está quase feliz, só um pouco tonta. Pra que é que ela menstrua, se não quer nunca ser mãe? Em instantes se vai, aquela água abaixo levando um pedaço que era seu.

A mãe chama pro almoço,   que cozinhou cantando. Quando prepara comida assim cantarolante, o tempero fica o mais gostoso de todos. Uma pena, dessa vez tá sem fome. Só não conta pra eles do sorvete. Duas garfadas e não quer mais, empurra o prato longe. A mãe fica surpresa, diz que fez o almoço com tanto carinho, come um pouco da carninha, vai? O pai sorri mas guarda pra si. Ele sabe que o apetite é outro, entende dessas coisas.

         A filha do poeta se ergue da mesa num passo de bailarina, estica os braços no alto, e em dois saltos se atira no sofá. Aperta o botãozinho vermelho. A tevê não ajuda em nada, mas pouco importa, é pano de fundo. Os mesmos programas bobos, os desenhos de sempre, mal a fazem rir. Musiquinhas tão torpes que nem entorpecem. Há algo mais por sentir, ainda a caminho. Pensa nele, no Zito. São dois mundos nadando, convergindo, como em um rodamoinho. Não iriam se desmanchar, frágeis barquinhos de papel na correnteza? Ou iriam se aquecer, espantar o frio da garoa? Esse seu medo. Na novela da tevê, as mocinhas procurando quem as completasse. Seus treze anos, treze anos completos. Por que fazer como as outras, se ela é menina-poeta, se ela possui a si mesma, se ela é deusa nas horas vadias? Como querer alguém que a incomplete?

         A campainha. Não precisa olhar pela janela, sabe que é ele. O pai é quem abre a porta, grita pra ela sair do sofá. Convite pra jogar bola, imagina? Zito diz que ensina, só eles dois. O menino chamando, e o mais incrível, o pai engrossando o coro. Suas pernas fininhas, como é que poderiam chutar? Diz que não. O pai insiste, não aceita bobeira da filhinha. Desliga a televisão e faz ela se levantar, não poderia ser mais humilhante. Poderia sim: beija a testa, acima dos olhos grandes, e a põe pra fora. Fique bem, diz o risonho poeta, e bate o trinco. Até o fim da tarde, nada de tevê.

         Então, ela e Zito. Esperando por eles, o campinho. Empurrada pra fora, mas, ora, pra que ficar em casa? Mais um dia ouvindo as palestras do pai? Aspirando a fedorenta fumaça do cachimbo? Tá bem, ele pode ser um dos grandes poetas do Brasil, mas os pais aporrinham, por simples fardo. Antes de artista, pra ela é o pai. Zito se perde em seus olhos, vê familiaridade com a poesia, mas é ela que aguenta o velho. Gosta dele um pouco, mas nada como estar ao ar livre, longe dos pigarros, sentindo o vento, sem vigilância ou sábios conselhos. Conhecer literatura é pouco; ela quer escrever sua própria história.

As nuvens se dispersando, o azul respirando no céu. O campinho ainda úmido, mas é melhor assim, o campo vazio, só os dois. Vamos? Zito no gol, fala pra ela cobrar. De olhos fechados, ela pimba. Fraquinho, a bola não chega. O menino se aproxima e, com paciência, mostra o movimento dos pés. Lição fora de casa: faz assim, ó. Ensina a curva do corpo, tem que girar pra pegar impulso. Ela tenta uma vez, faz plof. Tenta duas, e nada. E três e quatro. E então ela faz gol! Ele deixou? Não importa, ela comemora, contente de si, gritando que nem radialista. Revezam, ela pegando no gol, pulando pra espalmar. Quando um marca, trocam de lugar. E passam, passam o tempo.

Cansadinha, ela sai do quadrilátero, quer ver as plantas. Margaridas vistosas no jardinzinho coberto. Aqui a chuva não caiu, ela diz. A flor deve ficar com sede: ouviu a chuva caindo e não ganhou um pingo. O menino diz Espera só um minuto, e corre para o banheiro. Ela acariciando as margaridas, como se fossem animaizinhos. Sensibilidade que brota da terra; a margarida sente o toque na pétala como um afago na pele. Eis que Zito volta correndo, e traz as bochechas infladas, duas gordas bexigas. Aproxima-se das flores e despeja água. Pronto, reguei as florzinhas.

         Dessa vez, ela não hesita quando é pega no pulso. O coração bate forte, como se ouvissem rock. Os paralelepípedos da rua parecem azulados, úmidos da chuva, um pouco escorregadios. Ela queria ficar toda séria, mas sorri sem entender por quê. Menino diferente esse, que conversa sobre poesia. Até leu um livro do pai, dá vergonha. Como se já conhecesse cada aposento da casa, como se fosse íntimo da família. Zito nunca falou de poesia com os amigos do futebol, só com ela. Quando crescer quer ser poeta. Mas de onde ele tira essas ideias? Não prefere ser bombeiro, ator de cinema, jogador de futebol? Faz gols de bicicleta e quer ser poeta...

         Um cachorrão sem coleira se aproxima. Vem farejando os postes, respirando pesado. Maior do que Zito, maior do que os dois juntos, bicho descomunal. Ela se assusta, não quer nem olhar pra ele, esconde o rosto no peito do menino. Ele sussurra, passa os dedos nos cabelos dela. Diz pra não ter medo, o animal vai seguir seu caminho, vai passar reto. Muito grande e muito cheio de dentes, ela aperta as pálpebras quase chorando. Treme toda, sente-se mal por ser medrosa, e não pode evitar. O bicho chega bem perto, dá pra ouvir o resfolegar. Um monstro irracional, uma cãosciência que não aceita acordos. Se correr o bicho pega, então ela deixa o menino abraçar, apertar forte com os braços, deixa ele cochichar no ouvido dela. Dizendo que protege, que não vai acontecer nada ruim.

         O perigo passou, pode abrir os olhos. Ela ainda assustada, querendo fuga. Ele pede pra olhar bem fundo nos olhos dele. Percebe que estão brilhantes como a primeira estrela que desponta ao longe, no céu que vai escurecendo. Sente uma tontura boa, que do peito contagia a cabeça e o sangue. Olhos bem abertos, mas agora se fecham. E os lábios dele roçam nos dela, tão cálidos que a imaginação não atina. Pela primeira vez ela se parte ao meio, e apesar do medo, a sensação é boa. Um pouco louca, um pouco tonta. Acelera, mais rápido que o pensamento, e algo fica para trás. Adeus à deusa, adeus à deusa. Partindo, sem saber para onde. Os seres divinos não podem ter boca, não podem beijar assim. O divino não tem boca, e o divino é isso aqui. O beijo.
 

(imagem ©nieustannie)

 

 

Ivan Hegenberg nasceu em São Paulo, em 1980, formou-se em Artes Plásticas pela ECA-USP e atualmente trabalha no mercado editorial. Publicou A grande incógnita (contos, 2005), Será (romance, 2007) e Puro enquanto (romance, 2009, premiado pelo PAC). Escreve o blogue L'enfant le terrible.