No dia em que estreei, numa feira de apresentação de novos compositores, meu apresentador, o primeiro, foi Paulinho da Viola.

Quase dois anos depois, participei do Festival Internacional da Canção e ganhei o primeiro lugar. Chico Buarque, que ficara em terceiro, viera me cumprimentar. Exemplo raro, porque festival era uma guerra: de torcidas e de egos. Principalmente o Festival Internacional, cuja platéia de 30 mil guerreiros azucrinava. Ao me reapresentar, já como vitorioso, recebi a maior vaia de toda a minha vida. Saí correndo pela lateral da grande orquestra e gritei pro Márcio, um amigo cellista: "Dá um mi-bemol!". Ele fez soar a nota. Encostei o ouvido, gravei na memória e voltei solfejando baixinho pra frente do microfone. A vaia subiu a tal ponto que tive de tapar os ouvidos para ouvir a própria voz.

O maestro é um cúmplice. E o meu naquela noite foi Oscar Castro Neves. Radiante, ele fez um gesto e alçou a batuta. Quando apontou o primeiro compasso, iniciei a cantar a introdução na cabeça, pois, da orquestra, nada se ouvia. Depois veio o canto. Logo a platéia começou a calar-se, e pude constatar que cantava no tom certo. O arranjo de cordas, escrito pelo Oscar, conseguiu sobressair e emocionar. A vaia virou-se pelo avesso e tornou-se apoteose. Mas lá se foi de novo o som da orquestra.

Discorria sobre isso tudo nem sei mais por quê. Ah, foi porque li Os Sonhos Não Envelhecem, em que Márcio Borges conta histórias do Clube da Esquina e da paixão por Milton Nascimento. Lá pelas tantas, ele escreve que a música que tirou o primeiro lugar do Milton — que ficou em segundo — era apenas "bonitinha" e que havia eletrizado a platéia unicamente por ter refrão apelativo. O diminutivo insinuava que se tratava de obra de segundo grau. Uma musiquinha.

Ary Barroso, ao apresentar seu célebre programa de calouros na rádio Nacional dos anos 50 e 60, espinafrava o candidato toda vez que, indagado sobre o que ia apresentar, este informava que ia cantar uma musiquinha. Bronqueava dizendo que o compositor trabalhava duramente em sua obra para depois um sujeito qualquer a denominar de "musiquinha". Fazíamos disso uma piada cujo mote era representar um calouro, nessa situação, interpretando, depois da espinafração, a "Aquarela do Brasil", obra-prima do próprio Ary.

Escrevo isso e logo lembro que Ronie, o Roniquito, figura genial e folclórica de bêbado carioca, que trabalhava assessorando Walter Clark, na Globo, uma noite, num bar, fixou os olhos em mim e, sem mais nem menos, começou a me repreender aos berros: "Você é um Ary Barroso!". Jamais entendi a descompostura. De fato, às vezes sou intransigente e, como Ary, não sei trabalhar só numa coisa. Já fui fotógrafo lambe-lambe, office-boy, dirigi festivais e empresas de publicidade. E, na música, fiz jingles (muitos ganharam prêmios), músicas para novelas, teatro e discos de histórias infantis.

Minha vida de trabalho artístico iniciou naquela noite distante, quando Paulinho me anunciou como "compositor rural". Parecia até que estava adivinhando. Muitos anos depois, me juntaria a Sá e Rodrix, e tornaríamos conhecido o nosso "rock rural" — um rótulo para nosso estilo que não se acomodava ao que de fato a gente realizava, visto que, em nosso repertório, são encontradas muitas valsas, canções e até mesmo guarânias.

Mas, voltando ao livro, embora desdenhe de minha música, ele me fez pra lá de bem. Mostra que a gente fez muito e tinha de ser citado, e viemos vencendo devagar. Dona Joventina, uma caseira querida que tive, contava uma piada em que uma velhinha, lá na paulista cidade de Fartura, de onde ela procedia, dava os últimos suspiros, já lhe tendo sido, inclusive, administrada a extrema-unção. Era velada pelo vigário, amigas e comadres. Velada mesmo. Muitas velas acesas. Uma das comadres tinha tentado, sem êxito, colocar a imprescindível vela acesa entre as mãos da moribunda. A vela, que iluminaria o caminho até o céu, sempre caía. Até que, chegando bem pertinho do ouvido da moribunda, sugeriu: "Dona Fulana, faz com as mãozinhas assim...". E ensinou-lhe como deveria dispor as mãos para que a vela permanecesse no lugar. Deu certo. Num tremendo esforço, após o sucesso da manobra, a velhinha tentou dizer algumas palavras. Mas ninguém conseguiu entender o som tão fraquinho. A comadre então aproximou bem o ouvido da boca da agonizante e pediu que ela repetisse o que estava querendo falar. Num esforço extremo, ela transmitiu suas ultimíssimas e agradecidas palavras: "Morrendo e aprendendo!" — sussurrou.

Morrendo e aprendendo. Não sei por que me lembrei da piada agora. Talvez por prestar muita atenção às críticas. Embora, desta vez, tenha sido impossível achar ruim. O livro é mais rico do que qualquer rancor. E a crítica me pareceu mais vaia de festival. E, como nunca vi música desclassificada ser vaiada, só posso me orgulhar da "vaia de festival" do Marcinho. No máximo, vou tratá-la como descompostura maluca, feito aquela em que o bêbado me chamava de Ary Barroso. Gritava a frase, de pé, ao lado de minha mesa. E babava em cima de minhas torradas.

 

 

[Texto escrito em 2002]

 

 

 

 
março, 2009