Rayuela num divertimento

 

 

para Luci Collin,

voz que diz

 

( gramática histórica para se chegar ao céu em poucos passos)

 

faço permutas e perguntas e "Por que acredito em minha cidade natal?" é uma delas.
no povo, a identidade, a formação.
toda essa escroqueria? tem certeza?
conheci um poeta que lutou
corpo e vida.
o jogo da Amarelinha com, assim mesmo, letras maiúsculas,
o jogo. Rayuela.
a moral universal de todos os homens
tragicômicos,
a soltura,
os males que se aqueixam,
exíguos são.
digo um "quem"?,
decimônico?

O soneto existencial que não quis escrever hoje tão de tão no chão que estou e me sinto. Meus subterfúgios não me auxiliam. Tomo um banho depois do leite. Eu estou branco.

Cheguei. De frente do fronteiro, atiro o caco quebrado da telha. Crianças eternizadas jogam comigo. Vai caindo a tarde.

Casa 1 — Penso no porquê de tudo isso. O bloco com a dedicatória da minha mãe que está longe demais pra ter algum sentido. Hoje fez um dia incrivelmente igual ao de ontem. Isso está me matando. A natureza. A canção. O canto imanente. As hostilidades iniciais das manhãs grávidas, selvagens. Uma mulher! Exclamei mesmo. Mas só abundosa, que é pra servir. Digamos, o feminino à mancheias. Quero a tartamudez depois do excesso. O balbucio. O Cio. O céu está distante daqui, mas não sei se é já ilusão o meu ver.

Casa 2 — A separação e a união. Há pronomes em mim, tanto singulares como plurais. Mais plurais. Hoje estou plural. Cismado, imbuído, endogâmico, tautológico, eu penso.

Casa 3 — Pode ser o fim, já adianto. Não continue. Piso com um só pé. Não sou Saci pra acreditar em tudo. Você leu sobronegrinho?

Casa 4 — Interpelar o leitmotiv. A Ana morreu de fé. Cartesianamente. Minada eivada frisada espúrio. Meu sentimento é de falência. Mas tudo passa. Ontem passou. Hoje também logo já se vai. Pensar me afunda. O pensamento mais afeito a elucidações. Suscetível. Castigo indizível. Miscelânea? Que reveses são alterados por mim mesmo ao sair de casa sem beijar minha porta? Sou audacioso demais, você acha? Mas você tem sempre esses achaques. Por que não se cala de uma vez?

a noite foi escura. insônia. livros e faltas e faltas e faltas. Basquiat também se afundou na lama. aí penso que sou feliz e vou ao leite outra vez. essa escroqueria toda, que inferno!

o maior impasse é se autodenominar crítico de tudo. deu na veneta o mundo é mesmo um moinho e as pessoas, ah, uma interjeição de dizer enfatizando, ahhhhhh as pessoas, as pessoas não sabem que "deus não joga dados". ele, se assim o posso chamar, com minúsculas mesmo, ele poria extenuantes percursos na mais cândida travessia. aquilo a que costumo chamar de arraigamento. se não desvelasse o tempo, deus não seria nadica de nada. estaria atulhado e com remorso de tantas e tantas cotidianas redenções.

Casa 5 — mais longeva que a quatro, o equilíbrio treme. espocam tiros de dentro de mim. sou outros. você só pensa que me conhece. só há um alguém que me conhece assim, coitado. você é de usar mata-borrão? folhas de maculatura?

intervenientes quaisquer?
retortas?
eito?
me diz qual é a tua hercúlea vontade.
no ano de 1959 você foi empalado na Índia? não me diga...

embolia
aporias
guinadas
irremissivelmente niilista você é um crítico safado
um idiota que janta preciosismos

Casa 6 — ucasse político. deslanchei desperdiçando ingentes recursos.

Casa 7 — número ímpar não prefiro mais que o par. Perfil distintivo: Matizes rosas, alaranjadas, avermelhadas, pomo-de-adão, roxos, socos, amarelos, pretos, negros, moçambicanos, o português, a dona Geni, o conjunto gregário. vai, abole!

Casa 8 — entro trôpego e quase déspota.

Camarilhas.
Eu acho o teu anacronismo uma beleza de creuza.

mas creuza é uma tonta de feia. ela só sabe ser reduto, entende? ela se vende. é quitanda. o mundo é mesmo um moinho e me avisaram tarde demais. já beiro o céu azul. vão me dar um lugar no céu, meu pai!

Eu não mereço isso!
(Quanto castigo, esta lembrança emblemática e infantil).

Casa 9 — quarteladas e caudilhos. não escrevo literatura pujante. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso. meu sonho é o precioso impreciso.

Casa 10 — espero o gênio sair da lâmpada. o gênio não sai. posso fazer um último pedido, deus?

DEUS DIZ SIM

olho todo o percurso e o mundo é mesmo um moinho uma divina comédia humana de desumanidades

então que me mostre o inferno!

eu mato críticos, pois não

 

 

 

 

Abstrações perante um rio

 

eu penso muito
em minha frase viciada
porque ela é viciada

penso em meu esquema
decorado penso muito
porque não decoro nada

penso também
na rosa deflorada acesa mas morta no jarro azul-turquesa que a mãe colocou para o jantar
penso porque antes de tudo é uma rosa morrendo

também nestas abstrações
nestes inventamentos
nestas desideologias

eu penso muito no menino do pastel
no óleo na massa que vai entrar no pastel
e olho o pastel

eu penso muito sabe
muito mesmo no órgão interno que parece aquela draga velha e estacionada no rio

cheio de fedor

penso porque pode ser lá
no fedor e na draga ou no pastel
o mais afeito lugar a qualquer droga do pensar

 

 

 

 

Apoéticos

 

eu choro a dor de
um poema
mal sentido
porque poemas ferem
com suas armas invisíveis
porque poemas
quando não bebidos
quando não comidos
em sua inteireza
são abscessos nojentos
e intratáveis
eu choro a dor de
um poema
cada um que nasce
e que não nasce
no profundo dum homem
e que não caminha
os seus limites inatingíveis
eu choro a dor de
um poema
e principalmente
eu choro
muito
a dor dum homem
sem poesia

 

 

 

 

Recado a Gullar

 

vai morrer o poeta, Gullar,
aos 23 anos. ele sabe
que vai
e sabe até onde cairá, pesado,
num feriado,
véspera de alguma coisa.

vai morrer hoje,
que amanhã é longe.
descansou a teima, deu-se.

hoje, assistiremos à morte
de uma criança.

semanas depois, as vassouras de cerdas
naturais, as cortinas improvisadas,
o ventilador branco encostado à esquerda
da cama, as fechaduras, os copos, as toalhas
e os livros arrumados na estante, a máquina,
as borrachas e as lâmpadas soluçarão,
ocas de significados,
diante do susto e da certeza
de não mais ser.

 

 

 

 

Das perdições precoces

 

 

Cordões violáceos

duram meus regimes.

 

Temporã é a fruta

do meu ventre-mão

 

Carteio, em grifos de depois,

meu sonho de ser antes.

 

 

 

 

Minhas margens marginais

 

 

armar é melhor que amar, marcos silva.
mas é armar de amor o que digo,
porque amar é verbo contra a guerra.
a gente se corta todo amando.
polari sabe disso.
e é amando
que farei vibrar o milagre,
o milagre não-econômico da humanidade.
poetasia.
meu inventário conta de pétalas
e de poemas que caem do alto
dos edifícios
para o centro dos corações.
só construo a fantasia com a ajuda do outro,
só.
e minha fantasia é mais
real que real.
vai ver eu esteja a exercitar minha armadura,
amolecendo minha arma dura de amar
e vai ver eu esteja certo sobre a poesia

— e o que mais mimeografa minha polisexualidade geradora
de diluições, de negros e brancos verdes anos,
de modernismos sei lá e de exorcismos démodés?

também ponho o mimeógrafo pra girar.
e minha gente hoje anda cuspindo e bocejando...
mato quem? di quem é a culpa, ana?
vou contigo, qualquer dia, destes sem lenços e sem babadores...
aí no inferno deve ser melhor, não tá dando mesmo.
deixei a geléia na geladeira, e a merda pegou geral.
difícil chover poesia, mas eusigotentando a dança.
porque eu também não discuto com a desgraça do destino, polaco.
vou indo

o dia é tropical
e eu capto o flagrante
xingo quem tiver de xingar, e gravo na árvore
minha crônica aos 23 anos

destampo a cabeça
atualizo aipins
tacopau em mim
e vou porque minha terra tem palmeira
tem internet e rua sem feira
e porque eu gosto de beijar a boca
da mulher que não diz asneira
piva asa sul
nassar generation
salomão é faraó
torquato thor
melin é linda
cacaso semcaso
souza sem cruz
navidoidademais
charles, o ronald
chacal cabal
behr martins schwarz ruiz câmara miccolis e outros
enfim
sem fim...

sou poesia, sou margem, marginal.

meu muito prazer, qorpo estranho!

 

 


 

 

O matador de touros

"Morrer não é acabar, é a suprema manhã."

Victor Hugo

 


Um homem empunha um pesado martelo. Cabo alongado, em madeira leve, para o tiro certeiro com o maciço de ferro. Cinco quilos na bola de ferro. Bíceps e tríceps forjados no labor instaurado na hostilidade do galpão. Foram anos de espera e agora o dia havia chegado. Conseguiria derrubar a mais firme parede com um só golpe. Um soldado sem farda, um guerreiro sem armadura, um matador sem lei. Calçado com uma bota de borracha, cano longo, de cor branca e sangue coagulado, o homem olha o animal. E são olhos cruéis. Olhares marcados pela agonia da véspera final e pela fome, pela ganância maquinal. Não há tempo para palavras reconfortantes ou estritas condolências. É uma guerra que se inicia, um contra o outro, ser contra ser, visão contra visão, uma indissociável relação nada displicente, tétrica, evasiva. O touro, com grossas amarras lhe forçando a cabisbaixeza da cabeça, não economiza das forças brutais. Atiçado pelo silêncio rançoso e escuro do lugar, volteia com ira seu corpo ao redor do gancho que lhe serve de forquilha. Preso, o touro encontra na hora hedionda a ostensiva prodigalidade de sua consciência. Vilipendiado pela ação do ser de botas borrachudas, o touro começa a pensar. No seu foro íntimo e ruminante, o animal tem consigo a nítida visão dos vastos horizontes inatingíveis. O animal, sem aparentar a tradição de sua calma soporífera, recorre à arguta pachorra dos diabos. Estão os dois, enfrentando-se megeramente, histéricos por dentro, com seus corações percutindo todas as decaídas morais, todos os infortúnios monotípicos e sem ética, todos os seus desgarres. Estão ambos sofrendo com a maior dor, o pensamento. No regaço dos leitos corporais, o pensar aturde com frementes espasmos pontiagudos a razão para a precarização do encontro. Os dois sabem que não haverá um vencedor. Os dois sabem que não existe vitória numa guerra. Os dois não mais suspeitam da validade dos despistamentos, porque não há para onde fugir nem tempo para ser gasto. E mesmo assim, apreensivos pela pressa sem rumo, atormentam-se, um ao outro, em persuadidos gestos. Persiste no ar uma sombra desejosa. Toda guerra não é em vão. Todo embate só vigora porque no fundo de tudo, no imo da vida, contrasta-se o ir vivente em dor e prazer, em amor e ódio, em vida e morte. Somos todos alterados pela ordem secarrona do dia. Sem a aquiescência do outro, aprendemos a pisotear, a esfolar, a trucidar. E esse mesmo outro, atingido sem licença pela instância algoz do outro, imanente apodera-se também de uma qualquer cólera e arremete-se diante do já tão fresco inimigo. E vai nascendo um universo perdido, um anátema precioso para a doutrina do cão. Acobertados pela insanidade do saber-estar, as unidades de gados diferentes — a separar: gado humano e gado animal — dão início ao combate. Como se sobreviesse aos mugidos frenéticos da unidade do gado animal, quis a unidade do gado humano ter a melhor localização para a efetivação da matança. Ficaram por alguns demorados minutos, frente a frente, espreitando-se como que a estudarem um ao outro. Podia-se ouvir o nervosismo do animal acelerando cada vez mais a ruína do silêncio. Já sentia com antecedência o que aconteceria. Encurralado, espetado com uma vara, o touro cheira, vê o sangue e os pedaços, em diversos cortes, dos animais que o antecederam. Entra em pânico quando o homem puxa ainda mais a corda, fazendo sair uma tênue nuvem de fumaça oriunda do atrito com o gancho central. O touro está prestes a beijar o chão, tamanha é a pressão da corda em seu pescoço lhe puxando para baixo. Com enorme dificuldade, o ar ainda entra em seus pulmões. Inutilmente, tenta se livrar do medo, que agora o devora, saltando, ligado ao eixo do gancho. O movimento é circular e cada vez mais rápido. No contratempo da circulação, o homem belisca o couro do animal na intenção de estancar seu desespero. O touro sabe que algo irá acontecer a ele. Mesmo curvado, olha doloridamente para o rosto do matador. É o mesmo olho cruel de quando foram apresentados no primeiro momento. O homem busca a inconsciência do seu rival, o não monitoramento de suas ações, a perda dos sentidos, a queda brusca, como quem almeja possuir o opositor, possuir totalmente, para exercer seu domínio e exibir a carne de sua glória para a maioria possível. Repartidos ao meio, no avesso do tempo, o humano sagrado e o humano profano, reconciliam-se, devassos, diante do mundo. Mas em eterna luta, desregrados, meros potros, transfiguram-se em fabulosos centauros, míticos seres selvagens. E sob os auspícios do olhar, do sentir, do querer, afumegam-se em barbáries múltiplas, cativando o caos e toda ordem desordenada. Enlouquecidos, no sempre eterno desterro da alma, animalidade e humanidade dançam uma valsa imortal, prescrevendo os antídotos para as desgraças inaugurais. Tombados na pequenez de seus poderes, gado humano e gado animal disparam sôfregos sopros de vida pelas narinas. O animal não desiste, debate-se contra si mesmo, contra o ar, contra a órbita que percorre — sua última caminhada —, contra a certeza de pensar que sua irracionalidade é inválida no momento mais difícil. Aproximando-se do bicho, o homem escolhe o tempo, massageia os segundos, cuida dos ponteiros. Ele está em vantagem. O homem está em vantagem e desde que acordou, no dia de hoje, sabe o que tem de fazer. Ele não voltará para casa sem realizar seu trabalho. Sabe que não pode perder, tem medo de perder, não vai perder. Ele sabe de tudo e decide a morte. Puxa com sua maior força a corda e dá o nó áspero que torce a garganta do diabo. Arfante, o demônio beija o chão ensangüentado. Sente o gosto do ocaso, o sal do fim, o acre do breu. Já não pode com sua própria força, perde para a consciência que tem de si, enquanto corpo e matéria. Já não suspeita de suas dimensões nem do seu peso, tampouco enxerga a aproximação sorrateira do algoz. O touro fecha os olhos, suga um punhado rasgado de ar e, candidamente, numa paciência de dar inveja a qualquer deus, investe toda a sua garra no pensamento. Recobra a consciência perdida dos olhos e vê através da dignidade de sua pele, da fidelidade do ar e da solidariedade de seus músculos. Apesar de tudo, ele não cai. Atrás dele, coexiste o humano. Atrás dele, a bola de ferro humana. O animal silencia. Ouve passos, curtos, espaçados pelo minúsculo destemor da glória. São passos impulsionados pela história de uma vida, pela travessia tortuosa de um destino, pelo pontilhamento acercado por danos infinitos à mente. Pressente, o diabo, a voz do deus. Voz que não diz, voz que não cala. Um tormento. Turbilhão de outras vozes numa só, perfurando o oco dos ouvidos. Inerme, sem ter para onde ir, o animal continua. Parado por opção, o touro espera. Há passos. Coisas que vêm, ondas de vento diferentes povoando a couraça quente, advertindo-o acerca das possibilidades, prováveis e improváveis. Ele sabia que não sairia dali. Homem tapando a certeza, empurrando contra o piso gélido a proteção insincera. Falsificando a dádiva da morte, ficcionalizando o roncador barulho que menos castiga. Passos. Deus e o demônio, juntos. A pancada no crânio, a valsa triste das patas, a água babosa fazendo espuma na boca, o solo metálico da queda da bola de ferro jogada ao chão, a orquestra da interrupção da vida, da invasão, do apressamento. Deus e o monstro, o cavalo gordo de carne, o rústico bicho que alimenta a fome, deus unido à besta, ancorado pelos tendões e ossos rasgados no cais derradeiro. Deus degolando, processando a repugnância de ser humano e personificando a devassidão dos mitos. A produção do centauro, da raiva cega e da dor. Mas ele sabia, demoníaco deus que era, que não há vencedor numa guerra, que o que viria após a morte da vida seria apenas a certeza do eterno retorno às nossas mais célebres pelejas ancestrais. Que tudo poderia ser culpa da lua em sagitário, e que o que ficaria guardado dentro de si continuaria vivo durante todo o tempo do tempo, como numa cadeia espiritual que atravessa com paciência todas as eras terrestres.

 

 

 

 

Corre à larga um antes de um depois

 

"A escrita é a única forma perfeita do tempo".
(Jean Clézio)

 


Antes de escrever o poema, a solidão descambou para Maximillien através do vôo leve das moscas em dança de dezembro. Era o Natal a chegar. Nem muito frio nem calor em demasia. O mesmo esperar Papai Noel com o mesmo falso crédito que nela já nascera por lá dos seus oito anos de idade, quando viu seu pai colocando na sarjeta um par de sapatinhos vermelhos, sem nem mesmo se preocupar com qualquer tipo de disfarce. Lua linda no céu escuro e o poema apareceu para Maximillien como um retorno fotográfico aos grandes homens que a fizeram, como uma epifania caminhante, como um brinquedo retorcido entre ares de riso ou uma alegria simples estancada diante dos diantes. Quantidade de mercadoria que o tripulante de uma nave — humana, bom salientar — pode levar consigo sem pagar por elas. Essa caixa torácica de se caber dores e amargores e risos. E risos. Antes de escrever o poema, Maximillien pensou no pai, sempre preocupado com as contas do mês vindouro, agora já um senhor de atenção monitorada, "imprevisível o humano no homem", pensou, como também pensou na mãe, no irmão, mesmo posta ao revés no sempre andar de sua infância, criança sem local, sem chão, qualquer um. E assim arrevesada, obscura e intrincada, com seu nome de difícil pronúncia, seguiu desopilando suas coisas abstrusas, suas idéias incompreensíveis, seus manejares desordenados. E pensou no cachorro, na mesa onde estava, no pote de manteiga derretida brilhando o amarelo cor de ouro dos ouros falsos, pensou no pacote de biscoito esperando uma fome, no almoço por ser feito, na provável janta que viria, nas alegorias do carnaval próximo — todos arremedos estéreis de se ir em frente. Antes que o poema ocorresse, Maximillien dedicou-se a um qualquer antídoto terminado em um outro qualquer gesto milagroso, para não suster-se como o pobre de espírito se sustem quando de uma enfermidade operante em dor, em moléstia. Ficou ali parada, a escutar o seu instante companheiro, a hora que vivia no ali, no agora-para-sempre. Imótua, os olhos pousados sobre uma hagiografia que destinava a um santo da mãe, pendurado na prateleira menor da cozinha, coisas da mãe religiosa, coisas que não ousava tirar do lugar. Ali, desapossada de si mesmo, vendo perder-se diante do opaco espelho feito na bandeja de prata endireitada e existida em sua direção longitudinal, uma Maximillien comutada, substituída por outra, não sendo o ser dela, irreconhecível a si, igual aos outros, ela em crescimento, descobrindo-se, flor nova, mulher parricida aventada no derrubar muros e bunkers das sagradas tradições, pequena demais diante daquele algo que brotava de dentro, a rosa maior, o milhafre sacaneador de almas, saqueador de carnes, a derrisão última, o riso motejador, aquilo que troça, mofa, furo no umbigo, profundo rasgo de morte, de deitar o corpo enorme em ninações. Irrefutável precipício instaurado no dia mesmo, sem mistério de lua ou noite, sem lobisomens, sem vampiros, a queda fatal perante o desarmado desconhecido, que sempre vem quando insuspeito é o tempo, quando a criança de dentro aflora de medo e tomba queda nos abismos gregários do um. Anátema. Maldição. Sossegada estava e agora diletante não sabe o que faz, ou teima. Dissenso. Maximillien, ainda refletida imagem na argêntea peça, delineando as linhas de suas sinuosidades, para numa anomia aguda falsificar-se diante das tais desteceturas. A menina feliz já triste de não saber-se enorme e que sobre a humanidade paira um universo de nem. Amálgama. Autodemissionária, ela corre e atende à sua fraqueza e genuflexiona-se até o piso gélido que suporta o momento. Sem sustentar-se como conveniente, apóia-se autômata sobre o músculo que a exorta a seguir, fato mais que consabido, afeita a uma ordem do dia que se quebra no enlevo do corte, insuflando-a de formas epigonais ao dia que não é mais o de hoje, fazendo-a fantoche, artífice em solidão completa, em primazia habilitante, num furor de repercussão catártica, traça corroendo o ser antes incorruptível, incipiente, escorregadio, impingido, perspectivando impiedosamente o acontecimento fortuito — e de rumo inalterável por qualquer força —, ou lógico, da ação mágica de escrever um poema, de urdir um simples poema, mero como um gole d'água dado à sede da boca, porém vital como um sopro de amor.

 

 

 

 

Ministrando superfícies

 

"É um estranho desejo, desejar o poder e perder a liberdade"

Francis Bacon

 

 

Era assim a cor do dia, cor de laranja. Órion, Vênus e a lua quarto-minguante espocando uma luz tímida lá em cima no céu. Dia de dezembro. Noel chegando vermelho batendo esfomeado nas janelas, um pedaço de amor. Um naco apenas. Não queria tudo, apenas estudar a planície solta e fina e viva nos olhos de quem era. Entregou Calina, os livros. Ele respondeu silenciosamente com um aceno de cabeça confirmando o sair depois. Sentou-se. Um passeio e não há de ser nada demais. De onde estava, fitou o livro ainda abotoado em suas mãos. Pensou: "pernóstica linguagem". Como a filosofia grega estava na constituição do pensamento europeu ocidental e através de que elementos poder-se-ia afirmar com tamanha veemência — "aquela velha-gagá!" — que ela, essa desgraça filosófica, presente no modo de pensar de Calina ainda?, não aceitava. Esquivou-se. Como num golpe de traição, o vento empurrou uma folha baldia na direção dos seus olhos. Veio um choro instantâneo após o contato inoportuno. Duas ou três águas de lágrima como proteção. Calina não quis emudecer por dentro. Teria estudado uma vida inteira para desmascarar aquela professora ordinária. "A filosofia grega constitui um ponto de mutação no modo de pensar na Europa ocidental. Os gregos, utilizando-se de outros meios de esclarecimento para a explicação do mundo e de todo o seu arcabouço constitutivo, acabaram indo de forma contrária, ou parcialmente contrária, ao pensamento vigente naquela época", maturou. Raciocínio coevo com o do Alberto, melhor amigo. "Pernóstica linguagem", pensou novamente, alimentando uma ira de anos. "Emília, aquela idiota!". Não se davam bem. Calina fazia do seu conhecimento uma arma e um poço de divergências, porque tanto mais sabia mais perdia sorrisos. Suas macias comas omegadas se distanciavam demasiado de todo o encarapinhamento dos cabelos da Emília, talvez aí onde se resumisse o início de todo esse mal-querer. "A filosofia grega, ao definir o ser humano como racional e dotado de uma alma universal, sua morada, recusa as explicações pré-estabelecidas por meio de narrativas — os mitos — ao passo que ordena uma nova fundamentação para a existência das coisas e, posteriormente, do homem", continuava. Para Calina, Emília tinha de perceber que toda essa fundamentação, antes baseada no "acredite se quiser", utilizando de sínteses e análises argumentativas e debatedoras, acabou por se tornar mais apta para a resolução da maioria dos questionamentos do homem europeu. Professora, cinquenta e quatro anos de idade, Emília denegria o olhar para a filosofia, já cansada de tanta guerra e pouco reconhecimento, não vendo nela um marco, um símbolo humano de vitória. Não acobertava a idéia de que o homem, ao usufruir do poder do julgamento, do debate, da análise, do resumo, de uma produção de ordem própria, de um desejo pela descoberta, deixaria transparecer a sua presença nos nossos dias e em nosso modo de pensar. Calina, vinte e sete, era pura inobservância nas aulas de Emília. Desrespeitava. Peitava. Desejava a morte de Emília. Assassinaria. Seria ela o punhal que esfacelaria órgãos e esquartejaria o corpo. Ulterior ao embate no recanto acadêmico, Calina fungava consigo mesmo um não-concordar com a voz que entrava em seus ouvidos. Era um desejo por poder dizer a verdade. Alicerçar uma verdade, fundá-la, na frente dela, dos colegas. Fazê-la passar a vergonha da ignorância adquirida com diplomas e mais e mais certificados de não sei quê. Adormecia e acordava e tinha sonhos de orgulho, Calina. Tinha para si a inconteste marca da sabedoria. Para ela. O pulso era sinal maior do saber. E isso ela possuía. Pulso. Chegaria um dia na frente de todo mundo e na frente de qualquer um que fosse e a desmascararia. "Passar vergonha, vexame". Emília precisava. Era infilosófica e tinha os cabelos encarapinhados. Um mito pelo que de ruim evolava. Partindo do pressuposto de que o mito é uma narrativa ou estória onde está contida a explicação da vida, da natureza das coisas e de si própria, operando e proporcionando o sentido e a essência da existência do homem na terra, Emília para Calina não passava de uma forma contrária. Uma fazedora de superfícies e de tons sem relevo. Ministradora das superfícies, enquanto ela, dia de dezembro, era o intelecto que acreditava que os filósofos da antiguidade mostraram as diretrizes para o caminhar do homem desmerecendo em grande parcela o mito, que crê no início de uma percepção do homem sobre si mesmo, formação de uma conscientização, na razão que se apodera do mito e passa a ser fonte mais influente na tentativa de explicar o surgimento do universo, ou seja, na existência. Para Calina, a tentativa de retratar a criação de tudo por meio do fantástico, da teogonia e da cosmogonia é revertida numa explicação das coisas pelas coisas e do homem pelo próprio homem, sendo que o pensamento diferencia-se do mito, pois opera obedecendo a princípios, leis e ordens universais necessárias e que podem ser conhecidas pelo próprio pensamento. "Pernóstica linguagem", vociferou. Medava. Calina não era de ferro. Titubeava também, apesar. Era insuficiente sempre a menina. Não fincava pés no solo. Uma vez gritou que havia uma tentativa de formar um pensamento filosófico baseado numa ligação com a teologia, e pensar naquilo amolecia seus ossos quase sempre rijos. Afirmou que a igreja possui o poder espiritual e que é ela que regula os pensamentos subjetivos. Ergueu o dizer de que o homem pertence a Deus, sendo assim completamente dependente de Deus. Que a razão torna-se contestável e incerta. Suspeitando que o homem seja a mais divina das criaturas, não por causa da razão, mas sim por causa de Deus, bradou que a filosofia obedecia e faz obedecer às palavras da fé — da sagrada escritura —, mostrando que o homem não está integrado ao cosmos e tampouco é portador de uma alma do mundo, mas de um elo da imensa cadeia que nos leva do cosmos a Deus. Que operamos também impondo regras e obrigações, limitando o homem e seus passos num mundo recheado de pecados e de castigos. E lembrou-se de quando o passado marca a urdidura da pele. O passado invadia o corpo de Calina sempre que pegava da voz para matar de uma vez a pobre da Emília, que não tinha rancor. Era o Deus que já havia permitido um dia. Dentro dela, ruminando, desgastando, corroendo. Era o Deus arrancando sua voz, voz-de-deus, voz-de-deusa, fazendo revolver toda a poeira perdida nos bailes de fúria, monopolizando o órgão rouco das catedrais da alma, penalizando com o silêncio infinito toda a maneira afetada de um não-saber-ouvir.

 

 

 

 

André

 

Existiam dragões no ar. A técnica do sfumato fechava demais o tema. Teimou em continuar o trabalho, cabisbaixando-se. Ele sabia que era preciso mudar. Mudar na luz, mudar na sombra. Pensou em retirar o tom carvão, em parafuso consigo mesmo ficando. Pensou em investir mais no grafite. Diminuiu as mãos do verniz de madeira por sobre a tinta ainda fresca. O pincel entre o polegar e o indicador, apontado para a figura brotando, no escopo a liberdade. André era um homem cansado da perfeição aos 24 anos de idade. Sem pai, sem mãe, sem irmão, sem casa, sem mulher, sem amor, sem ódio, sem nada e em tudo absoluto.

 

— Não, perfectione! — rosnou André. — Quero a circunstância que tenha a variedade dos vazios, que tenha espaços incertos, que necessite de borrões. André sabia que existiam dragões no ar. Tinha a nítida percepção de que ele mesmo os criara, qual um pastor cuida do seu gado, estação por estação, batendo contra o chão o bastão de direcionar caminhos, e que ele arrancara com ira os nós dos cadeados das gaiolas, descerradas agora numa fúria acessada em vinganças. André mataria a si próprio caso não efetuasse uma transformação. Ele tinha consciência disso. Todos tinham. — Ter um propósito não é estar perto do que é completo. Nenhum trabalho ativo realizar-se-á perante o noturno dos olhos cegos. Nem todos conseguem enxergar a realidade. O que eu vejo neste momento, senão a minha ânsia mais interna? Que representa minha dor, senão a agônica sepultura dos meus arrependimentos?

 

No ar, os dragões. Eles e uma fina nuvem de poeira envelhecida pousando sobre os móveis do ateliê. André acocorado, nádegas tocando o azulejo frio, mãos investidas contra o corpo da face, triste, triste. Um artista pensando sobre o progresso e nas unidades promotoras da harmonia, nas potências das tintas avermelhadas e em idéias para um alcance qualquer. Era André perdido no momento presente, aquele que vive e não tem passado, muito menos futuro. Era um André, o artista, encabeçado numa loucura disposta ao egocentrismo, um jovem orgulhoso, subjetivo, sentimental, um viciado atormentado pelos soltos e revoltos dragões domésticos, e indomados. Um André olhando para si, sem a fiel ilusão dos espelhos.

 

Observou a luz entrando em feixe na sala escura. A luminosidade tecendo um caminho alimentado pelas minúsculas partículas de pó, um caminho marrom-amarelado, denunciando um apenas pouco de vida naquela tarde desmoronando. Ainda com o quadro não colocado sobre o tripé, André riscou uma linha horizontal com o pincel embebido de um preto fosco. Rápido, nivelou o tom com um cinza-marmóreo, aplicando-lhe uma mão de verniz e agigantando uma gradiente imperfeita de sensação angustiante. Buscou a variação brusca e a evidência na marcação das pinceladas. Queria deixar tudo às vistas. Retirar as vísceras da pintura. Pretendeu não esconder nada. Friccionou o punho sobre a margem azulada, construindo um imenso manto azul que lembrava o mar. André pensou no dia em que viu o mar pela primeira vez, na primavera dos seus 17 anos. Mas a lembrança veio-lhe cortante e André se lembrou da última vez que desejou ver o mar.

 

Aprendeu com os olhos as matizes do templo de Netuno e guardou para um sempre hoje as fórmulas que o pai houvera lhe ensinado. Recostado sobre a mesa antiga, André idealizou um rosto emergindo, o movimento frenético das ondas produzido pela invasão do corpo na liquidez do elemento aquífero. Um semblante acavalado, galopando as vontades mais puras de André, fundamentando toda a profundidade dos abstratos moinhos da imaginação faiscante do artista. Sem esquecer, pôs a bandeira alvinegra no areal da praia, com um absurdo detalhamento e minúcia. Uma ou outra prova de anunciação e um respeito pelo sonho vencido pelo cansaço das tentativas. Aumentou a dor das rugas porque tinha agora como acreditar na efemeridade do tempo e elevou o quadro, colocando-o sobre o tripé.

 

Estava pronta a peça e não estava. André viu os dragões passearem por sua cabeça, num leque de asas arrefecendo suas labaredas. Aquele rosto lindo, velho e forte de um homem feito de água. Uma imagem transbordante digna de enigmas e postulados. E André viu o feixe de luz feito de poeira perder sua força e ir se apagando, pacientemente, como uma velhinha atravessando a avenida movimentada de novidades. E André viu o único espelho do ateliê ser obstruído pela penumbra já quase escuro. E sentiu o fomento no peito de uma lava que descia seus tubos e artérias lhe arrancando míseros e rasteiros ares. Respirou fraco, sôfrego, pulmões claudicando, órgãos em soluço entre a morte e a vida. Sem suportar-se em pé, André titubeou numa vertigem traiçoeira, segurando-se no quadro. Cambaleou para a esquerda, sem largar o quadro com os punhos em garra, foi para trás e num volteio caiu tombado para frente levando o quadro consigo. Agora, rosto contra rosto, ferido pela fraqueza instantânea, André fitou estupefato o cenho que lhe beijava as bochechas úmidas e azuis, dizendo:

 

— André, é você?

 

 

 

 

Romeu amando amar de amor

 

 

começo assim tenho pouco mas tenho muito porque muito é meu desejo e muito é meu coração que ama e hoje você me provou que o amor é possível e que a matéria de amar é o fogo que arde de dentro do poema você me disse muito sem dizer quase palavra lilith e isso é muito e o pouco seu é tão grande que me faz também enorme e me faz querer-te tanto e dizer que minha vida precisa de você para ser ela deveras vida meu amor eu te amo não é clichê uso honro presentes faço por merecer rubis quero dizer que você é linda uma mulher maravilhosamente bela dentro e fora espelho e luz âncora e cais belvedere meu frio se fez calor cessou o estio nevou derreteu fui vulcão ativo ávido explodi teu violão a sonata que fizestes para mim meu mergulho maior e o gosto do teu seio teu mamilo de mulher tuas tetas de fêmea eu necessitando de tua queimadura ardendo fumegando crepitando tilintando o maciço da madeira nobre em mim meu deus príapo surgindo erguendo-se no meio de minhas pernas a edificação do amor da paixão do evento do fenômeno da existência tuas ancas doces pétalas brancas tuas pintas tuas marcas tuas curvas teus desvios meus atalhos teu rosto trôpego claudicando e o veneno de tua víbora me matando aos poucos me perfurando e eu sendo a tua mão o teu dedo o teu artelho na altura de tua boceta gostosa rosa cheia lua cheia e deliciosa óleo azeite mel de mulher minha bambina fina alva barda aeda poeta de amar amor de mim sou teu homem menino estudante criança pra você dengar fazer carinho matar de amar deitar e rolar me dar o amor do teu olhar do teu cabelo caído na altura das bochechas da testa de mulher de verdade aquela que sempre quis nasce agora em mim me enfeitiça me faz destino e me abre as pernas que eu ponho meu pau dentro do corpo de tua humanidade e te como porque farei tudo que for possível e impossível pra te olhar no olho e dizer do meu encanto e de como foi lindo ter te conhecido e ter te bebido em sempre e sempre aos goles entorpecidos e entorpecentes inocentes mentes em frenesi contentes novas viagens e um roteiro novo também a ser desbravado por quem tanto ama a descoberta de uma nova estrada itinerário de amar meu livro preferido de ler e riscar e fazer análise de discurso e sentir e tocar o corpo de tua alma e a alma de teu corpo

preciso urgentemente fazer amor contigo lilith porque a vida nos espera a razão da própria vida e serei sempre teu no momento que quiser e me precisar enfrento a razão pra te encontrar no galpão de tua criatura e não de tua caricatura não sou penacho não sou pelúcia sou fescenino amante total também a vida é pássaro passa veloz e só vive aquele que é livre e que golpeia as prisões e a vida é mais que qualquer coisa anelar rotunda e roliça quero amar de mar não de brisa quero pá pra cavar a areia movediça e enterrar o sal da saudade e da vontade reprimida os grandes homens e mulheres foram homens e mulheres gozaram da plenitude da liberdade e não se castraram por idiotices nem controles nem ordens nem panópticos já somos grandes demais para sabermos viver com a mão que temos e com o suor de nossas amplificações te espero na cama alcova quarto abrigo aposento aconchego luz metade difusa luz diurna não noturna penumbra eu te abraço braço brado eu te beijo feito um cristal quebrado em estilhaços em pedaços pra você me juntar quebra-cabeça que sou eu te cubro rubro contra o frio e seremos nossos próprios professores mestres doutores sem lucidez loucos amadores em amavios equador de nós mesmos prosa poesia meu gatilho minha mulher minha mulher minha menina minha menina minha bambina minha bambina minha mulher minha mulher fêmea feminina fêmea feminina

acredite que amo e me dê a chave me dê a chave por favor por favor

 

 

 

 

O Divino Maravilhoso

(uma carta acerca do agradável desespero)

 

 

Querida Anatole,

 

 

Me ajude a entender o que está acontecendo. Sinto uma tristeza que parece não ter fim. Estou tão magoado, que nem consigo raciocinar o melhor passo a dar depois de tanta decepção... Até minha respiração agora é estertor, símbolo de vontades vascas. Ando assim há dois dias e três noites, e escrevo esta carta porque preciso desabafar todo este arfar rouco, só digno dos moribundos, que hoje se apoderou de mim, falar de mim com alguém, senão irei explodir e virar pó... A rua está cheia de gente, você vê?, cheia de faces suadas, sangue nas mãos, nos pulsos escorrendo, o sangue duro da luta, coagulado mas quente, cheia de gente ferida, gente com garra, pobre e imunda, mundo dos grandes, aquela luta de sempre... e eu aqui, diluído em minha total fraqueza de ânimo, vendo um exemplar fodido de uma nouvelle vague francesa, um Truffaut sem nome. Você bem sabe que o Free Cinema inglês nunca me encantou. Foi o Gaspar, lembra?, ele sim é amigo. Me emprestou ontem o longa. Esteve aqui e fez chá para mim, perguntou o que eu tinha, se estava precisando de alguma coisa, sabe, coisas de amigo de verdade. Cadê aquela tua amiga de verdade, que sempre fumava em roda com você quando Marx era o tom do crepúsculo? Outro dia fiquei sabendo que a Marta morreu na barricada lá na universidade. Naquele dia, por sorte ou sei lá, entrei pelos fundos da faculdade e não vi nada depois que invadiram a biblioteca, e aquela fumaça marrom sufocou todo mundo. Depois daquela agonia, o Fred chegou de viagem e foi lá na casa do meu irmão conversar comigo, ou melhor, foi brigar comigo e saber de mim o que eu queria. Eu disse que não era preciso mais um na luta, que o país inteiro já dava conta da guerra e que não era eu quem iria fazer falta. Ele dormiu lá e me disse que tinha terminado com a Marta naquele mesmo dia, que final triste pra um amor que parecia não ter final, não é?, mas que não teve como terminar antes, nem na quinta e nem na sexta, porque sexta era o aniversário de casamento dos pais dela, e ele não tinha como terminar. Me apareceu com ainda muito mais pesar o olhar sempre pesado dele, lembra?, do olhar pesado do Fred?, sempre carregado de tristeza e sempre mortiço. Ele sim era um nouvellevaguista de carteirinha, fodido como o movimento todo. Eu disse que ele sabia o que estava fazendo, que podia amenizar a tristeza dela e ser mais homem, dizer na cara que o amor havia esvaído, que o amor é coisa que acaba, assim, vai ao vento e se desfaz, sabe... dizer na cara dela, da coitada da Marta, lembra da tatuagem dela?, que ela fez com um mês de namoro?, com o nome dele nas ancas graúdas?, mulher bonita por dentro e por fora era a Marta..., que o amor é uma merda e todo mundo sai fodido depois, disse que não concordava com ele, manter uma mentira com ela, assim, a fazerela sofrer sem merecer, porque ela estava sendo sincera com ele, nunca trocou um beijo por uma arma feita em garagem ou bandeira qualquer. A Marta que sempre dizia "je t’aime, je t’aime", mulher boa demais, olhar de menina, não merecia, não!, não merecia nada disso. Tudo bem até aí, Tole... Marquei um encontro com o Gaspar na segunda, um outro na terça e combinamos que ele passaria na minha casa de noite antes de ir se encontrar com a Marie. Era uma mulher formosa, corpulenta, mentora de frases polidas e uma esquerdista de primeira linha. Gaspar me disse que Marie foi a causa da dor da Marta. É isso, Fred e Marie, aquela coisa que sempre acontece. Eu tinha comprado até um bolo e um vinho pra festejar de noite as primeiras vitórias da gente na avenida. Ele chegou um pouco tarde, o Fred, porque tinha tomado café na casa do Antônio e depois do festejo me disse que ia logo sair com a Marie porque queria voltar logo para casa, que iria só "tapear", sabe... coisas que sempre acontecem, e que depois ia cedo para casa porque o mundo estava fervendo, e não bastava mais o western spaghetti e toda aquela nóia e medo do 13 de dezembro. O Fred sempre foi assim, lembra?, dos planos do Fred?, ele nunca chegava ao fim em nada, era um merda, mas eu gostava dele, andava pelos cantos chorando sonhos que nunca davam certo. Eu então pedi a ele que levasse um livro lá na biblioteca, porque no dia entrei pelos fundos para chegar pela biblioteca. Queria devolver os livros do Marx que tinha lido no fim de semana, mas aquela fumaça toda, sabe, não dava, não dava, não deu. Acontece que no dia seguinte, Tole, eu liguei para o Gaspar e ele atendeu chorando, voz trôpega e ardida. Saí de casa em direção a casa da Marie, porque o Fred estava morto, Tole, o Fred, lembra?, aquele otário de merda, lutando por essas causas sem causa nenhuma, lutando pelo povo, era a desculpa dele, lembra?, o Fred agora não era mais nada e não tinha piedade da gente. O Fred e a Marta, os dois, lembro das tardes de domingo, os dois no rio, o amor?, agora mortos, sem vida, ausências encravadas na terra, terra cheia de molho agora, aquele velho divino maravilhoso, montículos no meio do mundo de argila e barro mesmo. Os dois, Tole, por nada, idiotas!, por nada tudo isso. Essa fé desgraçada em acreditar no que não tem sentido! Merda! Merda! Merda! Idiotas! Como podem nos deixar assim?! Para a minha surpresa, Tole, sabe... eu vi o carro da Marta na porta da casa do Fred. Os pais da Marta também foram chorar, porque ele era um cara bom, merda! Essa fé cega e desgraçada em nada, povinho sem força que se engaja por nada, pensando que vão mudar o mundo, sem querer acreditar que todo mundo depois pega no sono, e agora os dois, pensei, tinham pegado no sono... sei lá... Uma desgraça, Tole, todinha, tudo. Os outros não viam problema algum. Tudo provocantemente ambíguo, tipo filme do Kubrick, todos ovacionando o guerreiro e o féretro descendo no abisso e na escuridão do momento, nadas encaixotados, nadas, Tole, nadas... Aqueles movimentos basilares que os coveiros fazem quando estão quase no fim, quase lá, hora de cobrir o corpo com a terra e esquecer-se de tudo, de que existimos um dia, hora de fechar os olhos e continuar a ilusão, de continuar vivendo sem liberdade. Mas se arrependimento matasse, não é mesmo Tole, ninguém tinha feito essa loucura, participado de tanto, com tanto fervor... porque para minha surpresa, Tole, quando eu desci a Ruas das Marquises, sustos e perplexidades ainda em mim, vi gente aos gritos, mães aos gritos, três bêbados, muita correria e quando fui abrir a porta para a Marie, Gaspar me disse para não falar alto com os militantes, que era que eu queria?, que era que ele queria?, e que eu fosse embora quando desse porque depois ele conversava comigo. Anatole, eu não tive nem palavras, só disse a ele que nunca mais me procurasse, que eu não queria mais saber de tudo isso, que eu não queria presenciar a morte de mais nenhuma merda de amigo, que todos formavam um bando de trouxas lutando sem armas contra um mal sem fim, sem pé nem cabeça, que a morte era o destino de cada um e que eu não queria ser o próximo da lista. Foi quando uma granada estourou bem do meu lado, Tole, um fogo amigo explodindo do meu lado. Minha pressão baixou na hora, a porta do carro abriu e eu caí no chão. Marie me arrastou até o outro lado da avenida, me deu um pouco d’água e disse "je t’aime, je t’aime", os seios rotundos caindo sobre mim... Me levantei chorando, quase surdo, sem sentir minha voz, devolvi um olhar desesperadamente agradável, perguntei o que estava acontecendo... a Marie disse então que não ia falar nada, que só o tempo poderia falar. Desceu as escadas que davam para a estação do metrô quase me arrastando, fiquei sentado no chão, chorando sem saber, vítima de tudo aquilo que um dia não quis e pensando que se eu começasse a entender o meu papel em tudo aquilo, no volante, naquela hora, naquela avenida fodida, podia acontecer um acidente ainda mais grave comigo. A Marie estava sendo boa comigo, Tole, e sempre dizia "je t’aime, je t’aime". Eu sem nada entender, não ouvia a palavra que saia daquela boca que era do Fred. Pedi a ela que me explicasse. Um zumbido no ouvido. Ela disse que não e eu sem ouvir nada. Os portões lá em cima sendo arrombados, o mundo todo morrendo, acabando, e a Marie se esforçando pra me dizer que ainda havia uma esperança, que ainda havia uma possibilidade, que nem tudo estava terminado, que a flor poderia vingar e o jardim ser mais belo, que o amor vencia tudo e nada podia contra ele, esse ser tão imenso, tão imenso... Marie só fazia chorar e eu chorava sem saber das explosões que se aproximavam, das gritarias cada vez mais próximas. Foi quando eu quis dizer que o que ela falasse eu iria confirmar, que eu iria aceitar, que ela mais do que ninguém sabia o que eu queria, que eu a havia procurado, que ela não se preocupasse, que do mesmo jeito que eu cheguei eu podia sair, mas que estava nascendo um sentimento muito forte aqui no meu peito, uma dor boa de quem sente o calor da lava de um vulcão tocando a pele, que não podia ser falso com ela e esconder o jogo, porque eu sentia algo por ela agora, apesar de tudo e de todos. Tole, uma bomba explodiu. Eu não ouvi nada. Eu nada ouvia. Aquela fumaça marrom, sabe, vinda como uma avalanche, e a mão da Marie segurando o meu rosto, a Marie dizendo "je t’aime, je t’aime", e a mão dela escorregando sem força sobre meu peito, todo o corpo dela sobre meu corpo, esgotada, sem força alguma, aquela fumaça marrom, sabe, o amor que eu não consegui dizer, a merda do amor que eu não consegui ouvir, Tole... o amor, Anatole! O amor...

 

 

 

(imagens ©irmakak cadogan / dorling kindersley)

 

 

 

 

 

 

 

Germano Xavier (1984). É formado em Comunicação Social/Jornalismo em Multimeios (DRT BA 3647) pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco (UPE). Publicou em 2006 o livro de poemas Clube de Carteado (Editora Franciscana). Em 2009, escreveu o livro-reportagem Iraquara - Em Memória de Nós (ainda no prelo); no mesmo ano escreveu e expôs no Departamento de Comunicação e Expressão da UPE o texto monográfico Narrativa, Espaço e Tempo em Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha. Possui poemas publicados nos jornais Diário da Região e Gazzeta do São Francisco (Juazeiro-BA/Petrolina-PE), possui um poema publicado na 23ª Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - CBJE (Rio de Janeiro), produziu em parceria os vídeo-documentários Noturno e Inah Torres - Uma mulher ousada aos 72 anos (UNEB-DCH III/Juazeiro-BA). Atualmente é jornalista/editor do Gazzeta da Chapada Diamantina. Possui textos publicados nas revistas eletrônicas de cultura Germina, Macondo, Relevo, Diversos Afins, Mallarmargens, Poetas Vivos e na Revista Nomes. É colunista nos portais Página Cultural, Entrementes e editor do Jornal Literário O Equador das Coisas (versão impressa). Escreve o blogue O Equador das Coisas.