A chimica

 

o vaga-lume vendia phosphoros

nas estações da Sul-Mineira.

 

à noite, as maquinas esperavam

pela chimica das chammas.

 

uma vez acesa a fornalha,

os céus iniciavam a viagem

sobre os trilhos.

 

durante anos ele viveu

daquele ofício corriqueiro:

ninguém sabia que tal chimica

vinha de sua alma incendiária.

 

 

 

 

 

 

Ciúme

 

o sol e as sombras voavam juntos.

 

plainavam acima dos anjos

onde ninguém podia segui-los.

 

ao vê-los em tal estremadura,

as ruínas de Pouso Alto sofriam

de um ciúme sem igual:

nunca as suas pedras plainaram

além das fraturas.

 

 

 

 

 

 

Razões

 

"O sol, pois, se deteve no meio do céu"

         Josué 10:13

 

sem razões esclarecidas,

quis o sol provar do ócio

ficando inerte no céu.

 

assim que a nova espalhou,

os girassóis insurgiram-se:

"ao desafiar a lei antiga,

ele incorre em grave erro".

 

e nos alertaram da chegada

de um penoso calendário

onde o dia não tem fim.

 

 

 

 

 

 

As vestes regurgitadas

 

de certa feita um ermitão

adormeceu sob o cipreste.

 

aproveitaram-se os anjos

e roubaram-lhe as vestes.

 

passados muitos anos,

os anjos foram à igreja

para aspirar um defunto.

 

mas durante o ofício

regurgitaram os trajes

do velho eremita.

 

 

 

 

 

 

A lã, a foice, o paraíso e a estopa

 

a lã, a foice e a estopa abusaram

do absinto, e sob um pé de romã

dançaram o malefício.

 

dizem que por aqueles dias

o paraíso peregrinava na montanha

quando deu de chofre com eles.

 

nunca vira uma dança tão perfeita,

abastança de movimentos.

 

naquela mesma tarde

ladrilhou os três no céu.

 

 

 

 

 

 

Descoberta

 

a traça encontrou uma gravura

de minha face, feita de cobre.

 

não havia nela autoria nem data

que outro ser pudesse reivindicá-la.

 

eram meus olhos, nariz, queixo,

a metonímia e a metáfora.

 

agradeci-lhe pela providência

de me ofertar aquele metal.

 

com tal achado, a esta hora,

posso mensurar as sombras.

 

 

 

 

 

 

Anunciação

 

quando voltava da romaria

ao santuário da solidão,

encontrei o tatu Nai Nai.

 

disse-me ele: apressa-te!

a tua amada serrou o pão

para outro faminto.

 

corri em direção à cidade

pedindo a deus que quebrasse

todas as penas que registraram

o sofrimento.

 

 

 

 

 

 

O pôr-do-sol

 

era uma vez um pôr-do-sol

que vinha lenhando as sombras

das montanhas.

 

chegando à Vargem dos Lobos,

avistou uma roda de cirandas.

 

desfez-se das sombras torcidas

e pôs-se a dançar na calçada.

 

assustados com a loucura

daquele poente andarilho,

o tamanduá recolheu as meninas

com sua língua de cera.

 

 

 

 

 

 

A lua e os mortos

 

idosa lua já não subia aos céus,

e prescindia da ajuda de carpinteiros.

 

às seis da tarde, traziam a escada

para erguê-la à abóboda celeste.

 

as traças e as andorinhas

união suas forças às dos operários,

e o curso do destino não se alterava.

 

dessa forma era a lua colocada

sobre os mortos de Pouso Alto.

 

eles também careciam da luz

no ciclo de suas marés.

 

 

 

 

 

 

Os cães

 

perdemos muitas oitavas de ouro

na fundição de nossas almas.

 

temos um ano a menos na contagem

como se nos faltasse o tempo de vida

de um esquilo ou galo china.

 

(as estrelas sobrevivem aos séculos,

mas elas são de outra estirpe.)

 

só os cães do campo-santo

chegam ao fim da existência

uivando a mesma nota.

 

 

(imagem© oloderay)

 

 
 
 

Eustáquio Gorgone (Caxambu/MG). Licenciado em Letras e Pedagogia. Publicou mais de uma dezena de livros, tem poemas em vários jornais, revistas e internet no Brasil e exterior. Obteve vários prêmios de literatura.