*

 

O homenzinho verde atrás da porta.

Meus olhos permanecem fechados,

mas eu sei que ele está atrás da porta.

A madrugada se aproxima

ele se aproxima também,

coloca sua mão sobre minha testa.

 

Permaneço de olhos fechados.

ele permanece com sua mão

sobre minha testa

por alguns segundos,

e desaparece.

 

A rotina se repete noites, meses,

anos

até que a curiosidade dá

um chega pra lá no medo e meus olhos

abrem.

O homenzinho verde é bege.

 

 

 

 

 

*

 

Corre o risco risca

Isca sem muito talento

Lento quase parado

Ando a tua procura

Cura com sensatez

Tez da cor perfeita

Feita em tom paralelo

Elo caminho extenso

Tenso pensa duvida

Vida presa ao arame

Ame sem ser combatente

Tente mas tome cuidado

Dado ao mundo caminha

Minha e como te adoro

Oro por ti agradeço

Desço não sei se é tarde

Arde meu peito em chama

 

Mando-te o ultimato

Mato o que está confuso

Fuso então se transforma

Forma sem ar de revolta

Volta a mim sem demora

Mora em meus braços de novo

Novo amor como antes

 

 

 

[do livro Borboletas e abacates. Editora Argos, 2000]

 

 

 

 

 

Um

 

A caixinha de música toca Chopin

e a imagem que gira é a de

um homem do campo

[rude] de mangas arregaçadas

chapéu de palha velho

vento sol e pés no chão

 

pleno de feridas

[uma grande entre os dedos

menores do pé esquerdo]

uma enxada na mão

 

— ao fundo Chopin —

 

O homem seca o suor do rosto

no braço

futrica uma das feridas

assoa o nariz

olha a seu redor

não encontra nada

 

o tablado do homem parece um

deserto

tudo é árido, inóspito,

ermo, desabitado

amnésico

 

A enxada não adere

e ressoa

cria uma duas três porosidades

produz barulho, ensurdece

destrambelha o ruído do mundo

 

E Chopin ao fundo, menos, mas

ao fundo, ainda

 

o homem deixa de capinar

senta, confere a comida:

arroz virado de feijão moranga cozida

um pouco de carne e molho

e

pinga com limão espremido

 

Chopin agora

aparece mais irritado,

não se (re)conforta

sua irritação reverbera

as enxadadas no tablado seguem:

pancadas leves

pancadas bruscas

pancadas sonoras

pancadas embrutecidas

 

agora também o homem se revigora

bate com força

sua

encharca o corpo

goteja e as veias se enchem de vida 

saltam das pernas

dos braços do pescoço

 

A lâmina da enxada carcomida

cheia de dentes

o chão sulcado

as mãos, os calos

os pés vazios

 

E Chopin, agora?

sumiu entre

a música não faz mais sentido

o barulho parece mais forte

são as pancadas, é o mundo

ou uma sabotagem

 

O homem larga a enxada, 

dança um ritmo desengonçado

salsa rumba tango valsa

tcha tcha tcha um fox trot saliente

 

tudo tanto faz

 

feliz [como se fosse da vida]

com o silêncio

triste [como se fosse em pedaços]

e grita efusivo

e dança à exaustão

até estatelar sem forças

no solo

 

Chopin o tablado o homem

tudo não passa de um quase

antes que qualquer

[outra] coisa quase:

um acontecimento

 

sobram dois copos de leite

e uma sonata de outono

 

 

 

 

 

Quatro

 

Aparece alguém

— que [não] foi convidado a nada,

nem pra festa alguma —

para acabar com qualquer brincadeira

e dizer que este texto tem dono

 

coloca nome e sobrenome

e avisa: isso não passa de um plágio

reconhecido em cartório

[patenteado / registrado]

 

Cá estou eu agora: como um homem impedido de plantar na própria terra. Lembra: alguém chega e me toma o registro. Com medo de parecer um fora-da-lei por plagiar o meu/teu próprio texto que agora é de outro. Tenho as mãos amarradas, tenho que sorrir para o carro que passa lotado de ninguém. Sem delongas nem rodeios retiro os pés dos sapatos e desenho um olho em cada dedão do meu pé. A cada hiena que passa e acena, retribuo de cá com alguma hipocrisia, balanço os dedos dos pés, brinco com eles, estas minhas marionetes. Os meus dedos-marionetes se esforçam, muito, mas não conseguem dizer nada; gaguejam, gaguejam, gaguejam. E é gagueira o que escuto. E no calor deste acontecimento aqui, ou de outro, eu [por mera distração] me divirto com o vento gelado que bate na sola dos pés.

 

 

 

 

 

Seis

 

Os urubus estão

morrendo no mundo

 

o poeta, à espreita,

no palanque, sustenta

as cercas que mantêm

os urubus confinados,

um a um

 

E as ovelhas?, alguém

pergunta —

voando, voando, voando

alguém responde

 

O guardador de rebanhos

[agora um criador de urubus]

está desolado com a situação

 

antes eram mais de vinte mil cabeças

hoje são apenas setecentos e cinqüenta

e três

[cinqüenta e duas, agora] uma acaba de

morrer

 

E o poeta, à espreita,

avança sobre as carcaças

não há carniça que diga

mas ele nunca desiste

a baba é tanta que pode errar o alvo

 

eis a cena: 

a-fina-nata-que-ferve-ao-sol-do-meio-dia-no-palanque-obliterado-da-insensatez

 

O poeta e os urubus se debatem:

uns pela vida, outros naquilo

que vem como agouro

 

Sabe-se que antes os urubus pareciam

gansos gordos e desengonçados,

                            um foie gras de fígado de urubu

aceita?

mas agora tudo se resume a bicos penas cristas e o poeta

 

poeta que fuma charutos no arame-farpado

que toma café e que conta piada de urubu

 

E o guardador de rebanhos

[agora um criador de urubus]

não sabe mais o que fazer

 

tentou de tudo para espantar o poeta:

pedra ruído espantalho

folha de papel laminado contra o sol

carro de som e spray de pimenta

 

Não teve jeito,

o diabo do poeta resiste

e a cada urubu morto

um poema no arame farpado

dilacerado desmilingüido

em frangalhos

 

O guardador, desgostoso,

assiste uma novela que se

repete todos os dias, a mesma

 

Enquanto isso

sem saber para onde corro,

no horizonte vertiginoso,

vejo sempre mais ovelhas

do que nuvens

 

 

 

 

 

Oito

 

Brioches com patê de bicho morto no café da manhã.

 

Todos os tipos de patês:

 

de vaca de galinha de porco de peru de fígado gordo

de ganso morto nas primeiras horas da primavera.

 

Bicho de estimação guardado em pasta na geladeira:

 

ao invés de pão macio prefiro torradas, parece que a

pasta adere com mais eficiência.

 

 

 

 

 

Nove

 

Duelos de outonos simbólicos,

outros tronos de agora

e de outrora

 

um labirinto, uma vida seca

 

vida seca levada pelo vento:

se acomoda se toca se reconhece

se umedece se adoece se apodrece

 

e gera: outra vida [seca]

 

ciclos de dor de tormento de cada parte

de molambo de rabugem de falésia

de fissura de pigarro de alegria

 

O homem neste momento

rompe o deserto que chama de mar

 

a ferramenta afunda com facilidade

e abre sulco fenda brecha

tudo rapidamente protegido: é o mar

 

depois de léguas percorridas

resta um rastro de memória

um acontecimento

 

outonos de memória não deixam idéia variar

 

retorna pelo mesmo caminho

e deposita o trigo na

cova, também chama de lembrança

 

Olha longe este deserto árido, este sal

um urubu saliva o seu corpo-carniça

 

e quando acha que não resiste mais

[como último ato de repulsa]

pega impulso naquilo que

ainda poderia ser: um plantio

 

 

[do livro Mas é isso, um acontecimento. Editora da Casa, 2008]

 

 

 

 

 

 
 

*

 

cemitério de sepulturas

rasas, cadáveres quiçá a

menos de sete palmos

abaixo da terra,

coveiros de superfície

 

o endereço é o pântano

e os corpos estão ali

abandonados

 

[epitáfios flutuantes

cadáveres embaralhados]

 

e o pântano não se faz

de rogado, embalsama-os e os

transforma em causos:

um braço para o lado

de fora de uma das covas

acena sempre que alguém se

aproxima para rezar

 

de joelhos está e a mão

estendida também está

 

e a imagem de uma brincadeira

com gosto de algo conhecido

é inevitável

 

brincadeira não é

acredita que não

 

e diante da mão se interroga várias vezes,

quem sabe seja apenas

um convite aceno adeus

tanto faz tanto fez

 

e com receio de retribuir

o cumprimento recolhe a mão

e acena com um sorriso amarelo,

será que o conhece?

 

para estreitar os afetos a mão

que sai da cova

[musgo limo umidade]

depois das pretensas

praches da boa educação,

oferece um nariz

 

aceita a gentileza e

meio sem jeito

[despedindo-se pois a

vida que o espreita o chama]

retribui com um araticum

guardado no bolso para o lanche

da meia tarde

 

e matuta:

já tem narizes em sua coleção mas nenhum deles com uma espinha na ponta e com um pelinho saliente no meio que o faz lembrar um unicórnio de brinquedo que tinha quando criança.

 

 

 

 

 

*

 

o território é o pântano,

nele encontra um de seus

amigos de infância

e no amigo vê praticamente

todos os outros,

pelo menos dos

que se recorda

 

[e talvez esse olhar

por mais estranho

que possa parecer

seja um sinal de carinho]

 

eles não têm os olhos

olheiras sim

fundas

que reforçam o tamanho

dos buracos estalados

no corpo do rosto

 

eles não têm cajados,

locomovem-se uns

amparados nos outros

formando uma grande

massa corpórea

 

permanecem unidos para

que a homogeneidade [corporação]

não se desfaça,

talvez morressem todos

 

será a peste ou a peste negra?

não sabem

 

talvez seja por isso

que o sorriso verta

em abundância 

e os imuniza

é nisso que acreditam

 

e o rosto [em estado de sorriso]

ganha aspectos de uma grande

máscara mortuária,

com a boca repuxada

olheiras generosas

covas profundas

e uma haste na lateral

para encaixar

sobre a ossatura

quando necessário...

 

não lembra, mas pode ser

fevereiro novamente...

 

 

 

 

 

*

 

em uma das árvores uma

criança empalhada

chora alto

choro estridente

choro que inferniza

 

não muito distante dali

[em uma outra árvore]

um papagaio tagarela

parece ter a língua presa

ou talvez o seu dono

tivesse a língua presa

deduz-se

 

e o papagaio

pouca coisa menos

também inferniza

 

entre as duas árvores

um senhor traçou [ou tentou]

uma faixa de segurança

 

repete o mesmo gesto

todos os dias

no entanto a faixa nunca se fixa

e ele não desiste

 

pela manhã ali ele está de novo

idéia encafifada na cabeça

miolo brigando com miolo

 

perguntado

qual-a-razão-pela-qual-gostaria-de-traçar-uma-faixa-de-segurança-no-pântano?

 

responde:

quero levar a minha esposa

conhecer aquilo lá pois

ela só conhece isso daqui

[aponta com o dedo

e a imagem não se firma

borra nevoeiro smog fog]

 

a mesma pessoa lhe

endereça a segunda:

por-que-você-não-coloca-apenas-uma-placa-avisando-que-há-faixa-de-segurança?

 

isso seria insensatez

não posso correr riscos

 

e se a placa servir de poleiro

para outra criança empalhada

ou papagaio de língua presa?

 

há uma terceira [quarta, quinta...]

pergunta resposta imagem

 

...

 

permanece as estridências

de fundo

ressoando ecoando

turvidez

 

 

[do livro Subterrâneas — título provisório —, inédito]

 
(imagens©basquiat)
 

 

 

Demétrio Panarotto (Chapecó–SC, 1969) é mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a dissertação "Não Se Morre Mais, Cambada... O Tom de Tom Zé". É também professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura nos cursos de Letras Português e de Cinema da UFSC, e doutorando em Teoria Literária na mesma instituição. Publicou os livros de poesia Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008) e Borboletas e abacates (Argos, 2000). É ainda co-diretor de Só tenho um norte, um filme sobre Cleber Teixeira. Músico e compositor, lançou com a banda Repolho os seguintes trabalhos: os CDs Vol. 1 (Grenal Records, 1997), Vol. 2 (Independente, 2001), Vol. 3 (Independente, 2006), Vol. 4 (Independente, 2009) e o compacto Sorria meu bem (Independente, 2004). Responde também, na companhia de Roberto Panarotto, pelo projeto musical Irmãos Panarotto em 2Violão e 1Balde (Independente, 2004).