1.

 

aguerrida, saíra do quarto

ainda ofegante:

desfiara gritos e acusações.

ajeitou seu vestido de flores

esticou as meias até o joelho,

arrumou a devoção entre os dedos

sentou-se na sala

e entoou:

— eu, a filha da escolhida —

 

 

 

 

 

2.

 

ergueu  a cabeça.

naquela casa, apenas um se movia 

olhos nos olhos arrancados sobre a mesa.

 

 

 

 

 

3.

 

— e revirava nas manhãs

sua fome de lobos noturnos —

 

 

 

 

 

4.

 

esboço do testamento

sobre a mesa

ao lado, a rendição.

— um toque —

o copo cai

a toalha desliza:

veneno revogado

 

 

 

 

 

5.

 

serei aquele instante antes do banho,

dito em todas as línguas,

expandindo por todos os quartos

a moeda que nunca será gasta

a maldição mais delicada

— o encalço.

 

 

 
 
 

6.

 

Desfiando o

início da entrada na vida

conversavam leves

entre seus cadernos e vícios.

Do outro lado da rua,

o âmago do dia

pairava em queda livre.

 

 

 

 

 

7.

 

Vivia em estado de volver

Pousava entre o armário

e o anônimo

ambos em vontade

de frequentar-se.

 

 

 

 

 

8.

 

sinal ainda quente

acima dos olhos

 

estive próxima

das flores plantadas

no dia em que rompi

 

sou filha deste feito,

amanheço outra vez

neste pacto sob a fenda.

 

 

 

 

 

9.

 

sou broto

do nosso amor

terra e raiz

— seiva de meio dia —

 

 

 

 

 

10.

 

na sala,

o hábito do casal

 

no quintal,

lençol suporta

o peso da chuva.

 

na janela,

a criança espia

a candura da virtude.

 

 

 

 

 

11.

 

deitamos lado a lado,

eu e a imortalidade

ajeitamos nossos corpos

na mesa da questão

e nada revelando-se

éramos a delicadeza da unção.

 

 

 

 

 

12.

 

corais e açucenas

em temporal

vesti-me de barro

e restaurei paredes as úmidas

todas as vezes que endereço a certidão,

minha casa migra outra vez. 

(imagens @dominic rouse)

 

 
 
 

Ângela Castelo Branco mora em São Paulo, é escritora, e membro do Atelier do Centro (espaço interdisciplinar de formação em arte), onde atua na formação de educadores e artistas. Publicou Orações (2008), pela Editora Laser Print, e dois livros independentes, Oferenda (2008) e O que digo, O que me diz (2009). Edita o blogue O Sagrado.