Bi - charada

 

Carrega dentro de si um segredo. Tamanho segredo que nem mesmo ela o sabe. Nasceu com ela e cresceu na mesma proporção de seus órgãos. Transformou-se nela e ela o aceitou breve e calada, sem nem mesmo saber que aceitava. As crianças brincavam na calçada, braços abertos arrebanhando o sol e o vento, pequenas manchas vermelhas, morenas, negras, barulhentas. Rouba bandeira, fonte do trololó e todo mundo morreu, de menos eu. Gargalhada e ela parada, rindo um riso branco e cínico. Um riso que não sai. Fica travado e ela fica cada vez mais branca e longe, inexpressiva. Em vão movimenta os braços, eles continuam parados. Carta branca. Acostumou-se a ficar ali sentada observando o suor, as caras afogueadas, a felicidade. O que é a felicidade? O que é a felicidade? Seu lápis tropeça nos algarismos romanos, nos pequenos traços que formam aquelas sentenças que chamam de números, nos X, nos I, nos C, romanicamente assoberbados. Atestam que sempre há de se encontrar o resultado. Não, não é o que vê nos rostos carrancudos, agoniados. Não sabem organizar os números de suas vidas. Não são números, não são apesar de desejarem sê-los. São feitos de palavras, de letras que querem ser números. Algarismos romanos. Correm ligeiros seus olhos na mata fechada, ao longe. O barulho da sirene da fábrica. Bendita fábrica. O menino novo que chegou puxa seu cabelo. As narinas arreganhadas, o prazer contorcendo seu rosto gordo. Onde o prazer de puxar seu cabelo? Onde? "Quero um machado pra quebrar o gelo". A voz agoniada no rádio soluçando. Ela quente e nua. Cresceu palavra aberta e indecente agoniando os números que não eram números. Deitada ao sol de meio-dia que ninguém suportava, mente branca, vazia, inerte, morta. Calmaria entre agonia. Machado urgente pra quebrar o gelo. Só ficar no sol, será que não entendem? Nascera pura e quente. Os olhos abertos vendo a realidade dolorosa. Aprendeu com o tempo que teria que se vestir para ser aceita. Começou a se vestir aos poucos. Mentir. Mentir todos os dias, até que alcançou um resultado perfeito. Era amada e agradável. Perderam o asco da sua nudez. Pôs-se a criar personagens. Eles saltavam prontamente dela quando precisava, não precisava nem chamar por eles. Com o passar do tempo o riso cínico começou a surgir mais amiúde, uma forma de liberar o calor que as roupas aumentavam, transformando-se em uma histérica gargalhada. Quanto mais mentia mais sentia vontade de gargalhar. Quando isso acontecia corria para o banheiro. Seu corpo todo sacudido. Ria até chorar de dor. Depois voltava, e onde estávamos mesmo? Ah, sim, as crianças chacinadas. Pensavam que as marcas em seu rosto eram de lágrimas de dor. "Ela é tão sensível". Ops! Gargalhada de novo. A mão nervosa na boca arreganhada. Finge um soluço. "Não chore, minha querida, elas apenas foram para um lugar melhor. Estão vendo? Ela é muito sensível". Tudo era como um espetáculo circense. Ela na arquibancada vendo os palhaços que acreditavam serem números, que se acreditavam exatos. Que não sabiam se dividir, se somar, se multiplicar, mas que acreditavam sempre em fórmulas. A cada dia que passa o espetáculo vai ficando cada vez mais engraçado. Começa a pesquisar as razões que a fizeram estar ali, na arquibancada. Por que não nascera número? Se eles eram charada, ela era charada duas vezes. Bi charada. Qual o segredo? Começa a gargalhar de si mesma, percebe que é uma grande piada. O resultado de alguma experiência daquele que move tudo com um pequeno sopro. Decide se vingar. Voltaria para ele. Há há há há. Um dia sentem falta da criatura meiga que chorava por tudo, sempre disposta a fazer caridade. Arrombam o apartamento que está vazio, com tudo em seu devido lugar. Começam a procurar nos rios, no mato, nos buracos, até que encontram seu corpo estendido sobre uma grande pedra plana, em um campo aberto. Morto e perfeito. Sem uma cicatriz, sem nenhuma mancha, sem nenhuma substância que ferisse seus órgãos e azulasse seus olhos. Perfeita e linda. Ao lado um caderninho onde se via o desenho delicado de uma mão luminosa estendida como a chamar alguém. Alguém perfeita e linda com um riso cínico nos lábios.

 

 

 
 
 
 

Peixes

 

Era uma vez uma menina que sonhava estrelas e despontava nas noites frias de inverno. Caminhava pelas ruas escuras carregando pesados cobertores com que cobrir os peixes que minguavam sobre os passeios frios empoeirados dos becos da cidade. Voava silenciosa sobre os corpos frios molhados pelo orvalho cobrindo-os com seus mantos mágicos. Depositava estrelas sobre as faces trêmulas e gélidas que de repente eram sóis abertos sorrindo em leque. Silenciosa como viera, caminhando em nuvens, desaparece na escuridão tumular. Ponto luminoso seguido por olhos semicerrados confortavelmente quentes e preguiçosos. Quando a aurora surge, empalidece diante do brilho da estrela maior. Caminha simples peixe no cardume que escorre levado pelas ondas de sinais, gestos, vozes, buzinas e carros. Desliza morta ofegante no asfalto quente chorando água. Farta de calor, pensa ser seu dever dividi-lo com os peixes. Rabisca no ar notas mudas com o movimento de sua cauda brilhante. Desponta estrela na madrugada fria de névoa. Caminha ondeando cobertores e caldo quente engarrafado pelas praças da cidade gelada. Sucede estrela, geada, calor. Na madrugada há um peixe de olhos abertos. Suas escamas feridas pelas tempestades citadinas. Com sua capa desliza silenciosa entre os corpos adormecidos e sente o olhar de vidro aberto em espasmos de surpresa. Fita com seu brilho a criatura magoada pelas intempéries. O olhar de vidro com seu brilho doente e cruel. Percebe criatura atormentada. Parada sente sua capa ser puxada e desliza rapidamente para o outro lado da praça clara de névoa. Os lábios do terrível peixe se abrem e mostram presas afiadas nunca por ela vistas em nenhum peixe. Lança suas nadadeiras na brancura escura e executa uma terrível corrida pelas ruas estreitas adormecidas. Suas asas azuis cortam o ar e sua respiração adentra em barracos aquecendo girinos gelados. Seu brilho deposita estrelas coloridas sobre os casebres criando arco-íris brilhantes. O peixe a segue. Seu vôo faz o vento endurecer as folhas das árvores criando blocos de gelo. Suas poderosas e pesadas nadadeiras negras cortam sonhos que se transformam em pesadelos de sangue. A distância entre a estrela e a escuridão diminui gradativamente. A aproximação do peixe cruel faz com que a estrela perca as forças. As asas endurecidas pelas camadas de gelo lançadas começam a se quebrar. Cai estrela cadente no chão. As asas negras são lançadas sobre seu corpo dourado. Toda ela coberta pela escuridão do peixe insaciável. As presas depressa procuram o aconchego de seu pescoço branco. Adentram a quentura de suas veias de néctar. Sente sobre seu corpo divino o duro frio polar. Sua doçura é sugada pelos lábios gelados. Da mesma forma como viera o frio se vai. Permanece ali seca de néctar com seu corpo contorcido no chão. Os olhos abertos em dura e espantosa tristeza. Perdera seu brilho antes que o astro maior levantasse suas asas gigantes sobre a cidade. Permanece figura meta humana em pose estúpida no meio da rua. Os olhos abertos e baços observando girassóis. Os peixes deslizam entre ondas de sinais, gestos, vozes, buzinas e carros. Param ao seu lado formando uma roda de vários elos. No centro metade deusa. Estrela apagada. Os olhos de vidro indagam o que terá acontecido. Sua calda brilhante provocando cobiça. Câmeras aparecem desprendendo claridades. Seu rosto ainda mais branco pelas fotografias descoloradas. Jornalistas criam hipóteses sobre a criatura mágica. No dia de Todos os Santos os peixes rezam Ave-Marias sobre sua lápide.

 

 

 
 
 
 

Lua Minguante

 

Encontrou-o em uma manhã ensolarada. Caminhava lentamente procurando o sol e implorando verão dentro de si. Dentro dela o inverno nunca acabava, em nenhum momento se esquecia do frio. Ele insistia em ficar dentro dela, não importava a quentura do sangue. Tão frio que, às vezes, doía uma dor desesperada. Seus passos avançavam no passeio alegre, cheio de pessoas alegres. Ela nem sentia suas pernas, tanto frio sentia. De quando em quando, alguém lhe batia os braços, involuntariamente, e pediam desculpas. E as desculpas lhe deixam ainda mais fria. Alguns reclamavam de seus passos lentos, mas esses eram indiferentes. Esses falavam demais. Para quê os passos apressados? Caminhava lentamente e assim deveria caminhar. Caminha rápido quem tem sede de vida, quem tem verão lá dentro. O frio faz caminhar devagarzinho. É doído. Nesse dia sentia-se desesperadamente fria. Tão fria que procurava o sol. Os raios sobre sua pele. Decidiu ser sol, mesmo que quase minasse gelo pelos olhos assustados. Fingia a existência de raios em seu rosto, fingia também ser astro quente. Docemente quente. Ele vinha na direção contrária, e ela, de longe, já sentia seu calor. Os olhos brilhantes. E porque também fingia ser sol, ou porque também quase minasse água gelada, ou porque sentia doer em si a dor desesperada em meio a tanta vida, ele reconheceu nela um igual. Sentiu no ar o cheiro de feridas abertas, sangrentas, escondidas sob a pele macia e brilhante. "Oi", disse ele. Ela lhe respondeu igual. E tudo que falava casava com o que ele sussurrava. Ladinamente sussurrava. As palavras dele foram entrando dentro dela. Ela as engolia com voracidade. Amava cada uma delas. As guardava carinhosamente. Sem perceber começou a acreditar que realmente encontrara abrigo na claridade. Andava apressada agora. Corriam juntos no parque, assustavam os pombos, agitavam os braços, contorciam os lábios em sorrisos, contorciam o corpo em espasmos mágicos. Gargalhar não doía mais, nem mesmo beijar com os olhos pessoas detestáveis. Começou a amar. A amar! O mundo. Amar o mundo! E uma vontade enorme de contar pra todo mundo a nova brotou dentro dela. E ela sussurrou nos ouvidos dele as três palavrinhas — tão estranhas essas palavrinhas soaram em seus ouvidos! —, mas ela insistiu: Eu te amo! Os olhos dele se abriram assustados, e, como foi tudo muito rápido, ele não teve tempo de fingir ser sol, ela viu o inverno neles, e brotou de repente uma enorme pedra de gelo em seu coração, que tomou todas as suas células. Sentiu frio, muito frio, como se fosse morrer. Entendeu de repente que ele também era inverno. Inverno constante, travestido de verão. Ela se esquecera dele, mas o inverno voltou pra ela, dentro dela, mais intenso que nunca. Sentia até nevar dentro de si. Correu para casa, colocou vários agasalhos, luvas, meias. Tomou chocolate quente. Acendeu a lareira em pleno verão! O frio continuava. Passaram-se horas, dias, meses. Inverno controlado, ela caminha lentamente na calçada, procurando o sol. Não esconde mais ser fria. Espera algum sol que venha iluminar sua face de lua... 

 

 

 

(imagem ©ratsel)

 

 

 

  

 

Simone Santana (Ouro Preto-MG, 1981). Professora de Língua Portuguesa e Literatura em escolas estaduais. Escreve já há algum tempo, é inédita em livro e edita o blogue A Parede Lá de Casa. Atualmente, reside em Conselheiro Lafaiete-MG, uma cidadezinha muito simpática.