a.                 Demonização ou a construção pela ruptura

 

A noção de demonização, para Bloom (1991), tem o seu nascedouro na figura do Íncubo celeste: um demônio macho que durante a noite vem copular com uma mulher, e que, ao fazê-lo, perturba-lhe o sono e faz com que a mesma tenha terríveis pesadelos. O rebento dessa relação sexual é alguém com uma tremenda e demoníaca força criativa, alcançando, por esse motivo, um poder suplementar à fraqueza humana. O artista póstero possuidor dessa potência irá, necessariamente, negar aquilo que é atribuído como o gênio ou o talento de um determinado artista precursor, afirmando que ele também, ao realizar a sua obra, foi mobilizado pela mesma força demoníaca. A demonização estabeleceria, assim, uma condição de igualdade entre o artista precursor e o artista póstero, já que a força criativa de ambos não seria exclusiva e singular a cada um deles, mas uma herança demoníaca que os mesmos teriam recebido por simplesmente serem humanos. Como afirma Bloom,

 

O que faz do homem um poeta é uma força demoníaca, porque é uma força que distribui e que divide (que é o significado da palavra daimon). Ela distribui nossas fortunas e divide nossos talentos, oferecendo uma compensação por tudo que tira de nós. A divisão leva à ordem, confere conhecimento, desorganiza o já conhecido e nos abençoa com uma ignorância capaz de criar uma nova ordem. Os demônios constroem pela ruptura (...) (1991, p. 138).

 

A nosso ver, esse embate é estabelecido de forma ostensiva por Visconti quando opta pela utilização do recurso do flash back para apresentar o dilema psicológico por que passa Aschembach após conhecer Tadzio. Para a representação dessa tensão, o cineasta italiano inclui a presença de uma personagem (Alfred) que se passa por amigo de Aschembach, mas que pode ser considerado também, julgamos, como o próprio alter ego de Visconti, dado o polêmico e acalorado debate que os personagens antagonizam acerca de temas como a beleza, o corpo e o espírito, o imanente e o transcendente. Parece-nos mesmo que Visconti se inclui na própria obra para fazer valer o seu ponto de vista em relação ao que Mann vela metaforicamente em sua narrativa. Vejamos alguns trechos desse diálogo entre Alfred e Aschembach sempre apresentado em flash back e, às vezes em off, ao longo do filme:

 

Alfred: Beleza. Quer dizer sua concepção espiritual.

Aschembach: Nega a habilidade do artista criar do espírito?

Alfred: Isto é exatamente o que nego!

Aschembach: De acordo com você, nosso trabalho como artista é...

Alfred: Trabalho, exatamente. Acredita na beleza como produto de um trabalho?

Aschembach: Acredito. É assim que a beleza nasce. Espontaneamente. Sem ajuda de nosso trabalho. Ela pré-existe à nossa presunção como artistas.

Alfred: Seu erro é considerar a vida, a realidade como uma limitação.

Aschembach: Mas não é assim? A realidade só nos perturba e degrada. Às vezes acho que os artistas preferem ser caçadores atirando no escuro. Não sabem qual o alvo, nem se o acertaram. Mas não pode esperar que a vida ilumine seu alvo ou que o fixe. A criação de beleza e pureza é um ato espiritual.

Alfred: Não Gustav. A beleza pertence aos sentidos. Somente aos sentidos. Não pode chegar ao espírito.

Aschembach: Através dos sentidos. Não pode.  Somente pelo domínio completo dos sentidos que se pode alcançar a sabedoria, a verdade e a dignidade humana.

Alfred: Sabedoria? Dignidade humana? E para que isto serve? O talento é Dom divino. Não! Não! É uma aflição divina! Um pecaminoso, mórbido clarão de dons naturais.

Aschembach: Eu rejeito as demoníacas virtudes da arte.

Alfred: E está errado. O mal é uma necessidade. É o alimento do talento!

Aschembach: Sabe de uma coisa, a arte é a maior fonte de educação e o artista tem que ser exemplar. Ele tem que ser um modelo de equilíbrio e força.

Alfred: Mas a arte é ambígüa. E a música é a mais ambígüa das artes. É ambigüidade tornada ciência (MV, grifos nossos).

 

Essa intervenção de Visconti na obra de Mann é realizada através de um redobramento em que o autor, o narrador, a personagem, o leitor e o crítico se revezam nas falas e nos pontos de vista, mobilizados por uma contundente ironia e ambigüidade. Podemos perceber no tenso diálogo acima descrito, o embate histórico e atemporal entre o inteligível e o sensorial; entre a razão e a emoção; entre o conteúdo e a forma; entre o romantismo e o realismo; entre o idealismo e o empirismo; entre o subjetivismo e o objetivismo e, vemos passar, diante de nossos olhos, a própria seqüência do longo filme da história da humanidade, com os personagens agora transmutados em Platão e Aristóteles, em Descartes e Bacon, em Goethe e Nietzsche, em Hegel e Marx.

Dessa forma, Visconti busca igualar-se a Mann em sua realização artística ao apresentar Alfred como o seu fiel interlocutor para denunciar as fragilidades dos argumentos e da fé de Aschembach, ilustrada por sua própria ambigüidade. Com isso, o cineasta italiano busca atingir a própria condição do escritor alemão, que, por um lado, no auge do modernismo literário busca manter-se num estágio pré-moderno, próximo mesmo de um anacrônico romantismo, pois, segundo Craig, "Era crescente a idéia de Mann, mesmo sendo uma figura monumental, seria um escritor antiquado, sem nada a dizer à geração pós-guerra" (2005, p. 32). E, por outro lado, acusa o homoerotismo platônico de Mann, sublimado em sua própria obra e imperdoavelmente velado na vida real, já que Visconti foi assumidamente um bissexual. Porém, sem dúvida alguma, o que Visconti irá de fato demonizar na obra de Mann é a sua aristocracia decadente, ridicularizada desde as iniciais "GvA" (Gustav von Aschembach, título de nobreza que lhe foi conferido quando do seu qüinquaségimo aniversário) gravadas em suas malas e maletas de viagem, até nos gestos menosprezadores com que ele trata os funcionários do porto e do hotel, traços esses que o cineasta italiano vê presentes também na figura politicamente conservadora e pessimista quanto às promessas da democracia, como era Thomas Mann. Assim, ao demonizar obra e autor, Visconti busca dessacralizar a ambos, remetendo, dessa forma, a realização artística, não a uma genialidade aristocrática, portanto, um privilégio dos melhores, mas a um potencial humano demasiado humano, portanto, democrático (e demoníaco), fruto do labor e da dedicação de cada um, pois, como vaticina Bloom, "A demonização, ou Contra-Sublime é uma batalha entre Orgulho e Orgulho, e temporariamente quem vence é a força do novo" (1991, p. 139). Podemos supor, inclusive, o sutil sorriso irônico no canto dos lábios de Visconti ao ler e depois recriar a viagem decadente de Aschembach, desde a atmosfera asséptica e apolínea de Munique até a ambiência ambivalente de beleza e obscuridade dionisíaca de Veneza. Nas palavras de Nestrovski,

 

Vista como um todo, a novela descreve um lento processo de inversão: Aschembach vai se transformar aos poucos naquela persona mais desprezada por ele mesmo, no início, e isto se dará, perversamente, ao seguir até o fim o seu próprio e mais íntimo credo. Este "moralista da realização", que virara as costas ao conhecimento, em favor da forma da forma "além do bem e do mal" — sofrerá, agora, a mais completa demonização, perdendo o mundo pelo desejo, pela sedução de um menino (1994, p. 89).

 

 

b.                 Askesis ou o artista criando-se a si mesmo

 

A angústia da influência tem na askesis um de seus aspectos mais terríveis e, talvez, uma característica de improvável realização. Tomemos essa citação de Bloom como ponto de fuga:

 

A sublimação poética é uma askesis, uma forma de purgação aspirando a um estado de isolamento, como seu objetivo imediato. Intoxicado pelo vigor de uma força repressiva, de um Contra-Sublime próprio e pessoal, o poeta forte, em sua elevação demoníaca, conquista a autoridade de fazer retornar essa energia sobre si, e alcança assim, a um custo doloroso, sua mais clara vitória no embate com os grandes mortos (1991, p. 156).

 

Temos aqui a retomada do eterno retorno do parricídio primordial apontado por Freud: o filho quer igualar-se ao pai em poder e divinização e não há alternativa para a consumação dessa realização, a não ser arrebatando-lhe o trono, o cetro e a musa. Ou seja, além da matar o pai é preciso que o filho também destrua o que há do pai dentro de si. O filho quer criar-se a si mesmo purgando-se dos valores e dos pendores paternos. Trata-se de uma luta terrível em favor de si e contra si mesmo, pois, a morte física do pai não significa, necessariamente, sua morte espiritual. Portanto, é preciso matar a aura do pai todos os dias e não há como praticar essa destruição paterna diária sem também, aos poucos, o filho auto-destruir-se.

Como Visconti realiza a askesis em relação a Mann? Só podemos imaginar essa ocorrência no âmbito mesmo da recriação fílmica, pois, o cineasta italiano já reconhece o seu precursor no momento mesmo em que escolhe uma de suas obras para deslê-la em outra semiose. Como então não confundir a askesis, a purgação ou a atitude solipsista, com um clinamem, ou seja, um desvio que o artista póstero realiza na obra do artista precursor?

Quando mencionamos, no início desse tópico, que a askesis possui uma característica própria de irrealização, é porque é quase impossível pensar um marco zero em qualquer realização artística. Nesse aspecto, aliamo-nos à mesma perplexidade de Bloom acerca da condição do artista póstero quando questiona:

 

Mas como poderiam chegar ao mais profundo de todos os prazeres, o êxtase da prioridade, de se criar a si mesmo, de uma autonomia garantida, se seu caminho rumo ao Verdadeiro Sujeito e as suas Verdadeiras Identidades deve sempre passar através do sujeito e da identidade do precursor? (1991, p. 156).

 

É levando em conta esse caráter de polêmica e de irresolução da askesis que a hipostasiaremos na atitude de Visconti em recriar, através da semiose fílmica, a linguagem literária de Morte em Veneza de Mann.

Seguindo uma análise do filme feita por Arthur Nestrovski acerca da opção de Visconti em apresentar Aschembach não como escritor, mas como compositor, atentamos para o seguinte argumento:

 

(...) essa transformação da literatura em música já aponta, de um lado, para elementos subjacentes no próprio texto; e de outro, é o que permite a Visconti a invenção de um estilo, ou descoberta do cinema como suporte da música. Situado numa zona limítrofe, entre literatura, cinema e música, ele reencena, então, à sua maneira, as ambivalências e um significado dessa morte em Veneza (1994, p. 87) (grifos nossos).

 

Esse breve trecho da análise de Nestrovski acenou-nos para a possibilidade de encontrar a askesis realizada por Visconti na obra de Mann, amparados, sobretudo, pelos grifos que destacamos: a) a invenção de um estilo, b) a descoberta do cinema como suporte da música e, c) a originalidade da reencenação de um determinado tema (no caso, a morte), tendo a música como narradora.

Nesse sentido, a askesis realizada por Visconti dar-se-ia a partir não da recriação fílmica da obra literária de Mann, mas da elevação de uma terceira linguagem artística, nesse caso, a música, como a autêntica narradora, tensionadora e doadora de sentido à obra recriada. A linguagem cinematográfica, nessa situação, seria um luxuoso suporte para uma performance que só a música seria capaz de alcançar. Dessa forma, o cineasta italiano, como artista póstero, anularia a força criativa de Mann, como artista precursor, pela impossibilidade de sua obra literária, ao ser lida, vir acompanhada de uma trilha sonora embalada pela poderosa música de Mahler, por exemplo. A originalidade de Visconti estaria, então, na recriação fílmica de Morte em Veneza, como uma elegia veneziana, a partir do espírito da música (NESTROVSKI, 1994). Assim, o Adagietto de Mahler acompanhará a chegada do protagonista à Veneza, bem como, servirá como a trilha de seu último suspiro ao apreciar a imagem apolínea de Tadzio apontando para o infinito; a canção dos músicos de rua desnudará o tom irônico e insinuante dos sentimentos do protagonista pelo belo e jovem polonês; o acalanto de Modest Petrovich Mussorgski (1839-1881) entoado pela hóspede russa na seqüência final do filme anunciará, em suave elegia, a decadência e a aproximação da morte de um trôpego e exausto Aschembach; os suaves acordes de Pour Elise, darão ambiência à ambivalência de Aschembach, com a seqüência criada por Visconti, em que Tadzio e a prostituta Esmeralda, em cenas diferentes, estudam a peça de Beethoven (1770-1827). Nestrovski, numa argumentação conclusiva sobre o relevo que Visconti dá à música em sua recriação fílmica, diz, (vale aqui a reiteração dessa citação já feita por nós anteriormente): "Mais que a câmara, mais do que a imagem, é a música aqui o princípio de organização, o verdadeiro narrador do filme" (1994, p. 90).

 

 

c.                  Apophrades ou a permanente sombra do artista precursor

 

Cinqüenta e nove anos separam a edição do livro Morte em Veneza, de Thomas Mann, do lançamento do filme Morte em Veneza, de Luchino Visconti. Considerado um dos melhores trabalhos do cineasta, a recriação fílmica da obra literária do escritor alemão tornou-se um clássico do cinema moderno italiano. Nestrovski chega mesmo a afirmar que "A identificação entre o filme de Visconti (...) e a novela de Thomas Mann (...) é tão forte, hoje, que só com algum esforço vai-se lembrar que o Aschembach original é um escritor, e não, como no filme, um compositor" (1994, p. 87). Mas para a discussão que ora desenvolvemos, tendo a noção de Angústia da Influência como condutora, a pergunta que fica é: por que Visconti retoma uma obra literária tão distanciada de seu contexto para recriá-la em uma nova linguagem, a fílmica? É verdade que Morte em Veneza não foi a sua primeira recriação cinematográfica, ele havia realizado antes, em 1942, Ossessinone, recriação não autorizada da obra O carteiro toca sempre duas vezes, de James M. Cain (1892-1977) e Il Gattopardo, de 1963, exuberante filmagem a partir do romance homônimo de Giuseppe de Lampedusa (1896-1957). Esse fato, no entanto, não desqualifica a nossa pergunta, se levarmos em consideração a relevância de Visconti ter escolhido a obra de Mann e não outra, o que implica, necessariamente, na eleição de um precursor, como afirma Borges na epígrafe desse artigo: "todo escritor cria seus precursores" (apud BLOOM, 1991, p. 12).

Segundo Bloom,

 

Empédocles sustentava que nossa psique, na morte, retornava ao fogo de onde saiu. Mas nosso daimon, de uma só vez nossa culpa e nosso potencial divindade, não vem a nós do fogo, mas dos precursores. O que foi roubado deve ser restituído: o daimon nunca foi roubado, mas sim recebido como uma herança transmitida na morte ao efebo, ao poeta tardio capaz de aceitar simultaneamente tanto o crime quanto a divindade (1991, p. 181).

 

Nesse sentido, os apophrades, considerados como dias infaustos e de má-sorte, são os dias em que os mortos revisitam as suas antigas moradas.

Visconti realiza o seu filme Morte em Veneza em 1971 e sua morte dá-se em Roma, em 1976, aos 70 anos. Portanto, cinco anos separam o lançamento do filme de seu ocaso existencial. Queremos dizer com isso, que Morte em Veneza é fruto da maturidade de Visconti. Trata-se de uma realização muito mais pessoal que vinculada a um engajamento político e social como foram La terra trema – Episodio del mare (1948) (atendendo a uma solicitação do Partido Comunista Italiano) e Rocco ei i suoi fratelli (1960) (documentando as dificuldades da classe trabalhadora). Morte em Veneza, ao contrário, é a realização de um diretor de cinema septuagenário que vê romper no horizonte o seu entardecer como homem e como artista. Porém, como artista, ainda pode tentar ludibriar Cronos e adiar para sempre a sua entrada no barco de Caronte. Como Visconti realiza essa fábula? Fazendo prevalecer a resistência de seu antidestino, ou seja, de sua própria realização artística. A obra de arte que permanece é a sua maneira de permanecer vivo. No entanto, Visconti quer permanecer vivo no mesmo panteão em que outros grandes nomes da arte também permanecem e, a melhor forma de alcançar isso é revisitando-lhes as obras, para que nelas possa imprimir sua própria marca. É dessa forma que a sombra de Mann abrigará Visconti à maneira de um anjo de longas asas. Como vaticina Bloom, "Mas nossos poetas fortes, aqueles poetas capazes de se desdobrar em sua própria força, vivem, de sua parte, onde têm vivido seus precursores nos últimos trezentos anos, sob a sombra do Querubim Cobridor" (1991, p. 198).

O filho, na proximidade de sua morte, que reconciliar-se com o pai morto. Para isso, convida o seu espírito a retornar ao seu antigo lar. Mas o convite não é para que o pai reassuma o seu lugar como uma figura central de poder e de divinização. O filho que ter o direito de dividir essa glória ao lado do pai. A idéia é que no final das contas, pai e filho sejam confundidos em sua força criadora e artística. Duas últimas citações de Bloom dão conta dessa tensa reconciliação entre filho e pai ou entre o artista póstero e o artista precursor:

 

(...) a maior ironia da razão revisionária dos apophrades é que o poeta mais recente, face à iminência da morte, se esforçará para subverter a imortalidade de seus precursores, como se a sobrevida de qualquer poeta pudesse ser metaforicamente prolongada à custa de outra (1991, p. 194).

 

E, finalmente,

 

Quando um poeta vislumbra seu fim, precisa de alguma evidência robusta de que seus poemas não são poesia morta, e procura, então, evidências de ter sido eleito para realizar as profecias dos precursores, pela recriação fundamental dessas profecias em seu próprio e inconfundível idioma. É esta a magia curiosa dos apophrades (1991, p. 195) (grifos nossos).

 

Terá Visconti realizado, através de seu próprio e inconfundível idioma, o cinema, a profecia literária de Mann?

 

 

 

 

Referências Bibliográficas 

 

 

 

março, 2008