Riobaldo, o narrador-personagem de Grande Sertão: Veredas (GSV) (2001), especulando junto ao seu interlocutor sobre a existência do diabo e sobre a possibilidade de um vivente negociar sua própria alma, vendendo-a ou trocando-a, narra um caso ocorrido, envolvendo dois comandados do bando de Antônio Dó, grande chefe jagunço de outros tempos. Chamavam-se Davidão e Faustino. Após muitas aventuras e desventuras, o medo de morrer se apossa de Davidão. Vislumbrando uma tentativa de escapar à ceifa da impiedosa morte, Davidão propõe a Faustino, a troco de dez contos de réis e em lei de feitiço, que, uma vez chegada sua hora fatal e definitiva, quem partiria em seu lugar seria o seu companheiro. Faustino aceitou de pronto a proposta, pois punha em dúvida a viabilidade metafísica deste tipo de acordo, porém, não colocava em questão o poder imanente do vil metal. Ato contínuo à realização desse inaudito contrato, o bando de Antônio Dó deu combate aos soldados do Major Alcides do Amaral. Fogo de guerra, do qual, Davidão e Faustino saíram sãos e salvos.

O ex-jagunço Riobaldo, agora um bem sucedido fazendeiro, informa ao seu ilustre convidado invisível que, tempos depois de ter ouvido este relato de outrem, narrou-o a um jovem da cidade grande que viera com outros camaradas para diversão de pescaria no rio São Francisco. Após ouvir o caso, o rapaz, a quem Riobaldo julgou demasiado inteligente, disse tratar-se de um tema de muita riqueza e profunda beleza, que deveria, inclusive, ser transformado em enredo de livro. Ponderou, no entanto, que a história "(...) precisava de um final sustante, caprichado" (ROSA, 2001, p. 101),

 

O final que ele daí imaginou, foi um: um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão, não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferraram numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia... (ROSA, 2001, p. 101).

 

Riobaldo revela ao seu interlocutor que ficou impressionado com a "(...) continuação inventada" (ROSA, 2001, p. 101) proposta pelo rapaz pescador. Pensou mesmo que, com essa criatividade no recontar os atos humanos, é possível "(...) encher este mundo de outros movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar" (ROSA, 2001, p. 101).

O herói rosiano ouve o ribombo surdo de sua perplexidade, ricocheteada no silêncio de seu interlocutor, e, circunspecto, especula sobre os motivos da ficção e da realidade: "No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso..." (ROSA, 2001, p. 101).

Compreendemos que o jovem pescador da cidade, ao propor um desfecho "sustante, caprichado" para o caso de Davidão e Faustino, queria construir uma narrativa que tivesse vigor, força e substância e que, ao mesmo tempo, assegurasse a presença da dúvida, do conflito e da tensão entre os personagens, mediante o recurso do suspense. Para tanto, e o termo "caprichado" dá conta disso, mister é o esforço e o apuro por parte do narrador  na recriação da história ouvida. Ou seja, há um trabalho artesanal a ser operado na linguagem, no sentido de que a história — curso da vida real —, se transforme em estória — narrativa ficcional —, donde a surpresa de Riobaldo com a transfiguração da realidade operada pela fabulação criada pelo jovem pescador: "A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe!" (ROSA, 2001, p. 101). Quando Riobaldo declara: "O final daí que ele imaginou", intui uma outra característica que lhe parece ser fundamental para o trabalho artesanal do fabulador: a imaginação. A partir de uma concepção fantasiosa ou figurada de situações da vida real, o narrador re-apresenta-as, preenchendo-as de sentidos outros, para além daqueles que caracterizam seus modos ordinários de ser, tencionando "encher este mundo de outros movimentos". Inevitável foi, então, para Riobaldo, fazer a comparação entre a "lerdeza de sarrafaçar" compreendido por ele como o trabalho mal feito, sem apuro e improvisado da vida cotidiana, e a "continuação inventada" da narrativa ficcional, ou seja, o trabalho artesanal, cuidadoso e concertado da construção fabular. O atento jagunço percebeu que um "(...) contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez" (ROSA, 2001, p. 433).

O protagonista de GSV atribui, dessa forma, certa inferioridade à tortuosidade da vida real em relação à "harmonia" do arranjo fabulatório, donde a sua obsessiva afirmação de que viver é muito perigoso, já que não lhe é possível optar por um, digamos, final feliz, porque a vida não tem um formato pronto e acabado e porque "Viver é um descuido prosseguido" (ROSA, 2001, p. 86).

Outra fala do narrador-personagem da obra maior rosiana que coloca a realidade vivida numa situação problemática é quando ele afirma: "A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe!" (ROSA, 2001, p. 101). Ele intui com isso que, se há uma verdade transitando pelo malparar da vida real, ela se encontra sempre obscurecida pelas nuvens negras do mal-viver, pelo viver perigoso, pois que não existem estacas indicativas para o melhor encaminhar da existência, já que "Esta vida está cheia de ocultos caminhos" (ROSA, 2001, p. 170). Por sua vez, o arranjo ficcional concebido pelo narrador de "alta instrução", ainda que exija de Riobaldo, o silêncio, a atenção e a decifração, permanece ali, pairando sobre sua perplexidade, e a transparência da verdade, nela encontrável, não conduz ao desnorteio, mas propõe uma reinvenção constante do humano viver.

Em outro momento de sua travessia sertanejo-metafísica, Riobaldo está de passagem, com o bando chefiado por Zé Bebelo, pelo Currais-do-Padre. Apesar da desolação do lugarejo, quanto à presença da intervenção humana, Riobaldo nos fornece uma curiosa informação:

 

Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava o 'Senclér das Ilhas', e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias (ROSA, 2001, p. 396).

 

Foi assim que, após um longo período de ações e movimentações de guerra  pela imensidão do sertão, Riobaldo defronta-se, outra vez, com o surpreendente e envolvente mundo da criatividade ficcional. Nesse caso, porém, não se tratava mais de uma narrativa oral, mas de uma expressão fabular impressa nas páginas de um livro.

O desdobrar-se na leitura desta obra encaminhou Riobaldo para um sentimento fruitivo e gozoso, ao usufruto de uma vivência, ao mesmo tempo, imaginativa e reflexiva, proporcionada pelo sentido fugidio das palavras. Gesto este que lhe requereu tempo e disponibilidade, portanto, repouso no plural, muito diferente do comportamento sisudo e carente de imagens, fruto das exigências racionalizantes e abstratas impostas pelos livros de estudo, com que Riobaldo tivera que lidar anteriormente.

Essa matéria inefável presente no romance lido por Riobaldo que o fez aprofundar-se com maior ênfase em suas especulações sobre as interfaces entre a realidade e a ficção; essa transfiguração do real em palavras, que justifica a sua insistente sentença de que viver é muito perigoso e que, assim sendo, é preciso aprender a viver, pois, segundo ele, "Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo" (ROSA, 2001, p. 601): é a matéria imponderável presente na re-apresentação da história humana em estórias sobre o ser humano e seu modo de viver. Tal matéria fez com que o desconfiado Riobaldo cresse e não cresse na existência do diabo, pois foi a partir de uma narrativa sobre a possibilidade de um pacto demoníaco transformar uma pessoa no que ela anseia por ser, é que fez com que ele, com contrato de sangue, empenhasse sua própria alma no alcance de tal intento. Essa é, então, segundo concebemos, a "matéria vertente" mobilizadora da saga riobaldiana, e que é apresentada pelas seguintes enigmáticas palavras:

 

Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando, não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (ROSA, 2001, p. 116, grifo nosso).

 

A matéria vertente se oculta, portanto, nos recônditos e nas reentrâncias da estória narrada. Em outras palavras, a matéria vertente não se constitui na estória em si mesma, esta é tão somente o veículo de sua trajetória e o âmbito de sua manifestação.

Riobaldo foi aos poucos tomando consciência da matéria vertente que suas próprias reminiscências ocultavam. Os fatos e eventos constituidores de sua narrativa, conforme ele os relatava ao seu invisível interlocutor, ganhavam um sentido que transcendia o "safado comum" (ROSA, 2001, p. 31) de seu cotidiano humano e mundano. O nível de transcendência por ele traduzida a partir de seu narrar erradio alcança o mais alto grau de inclinação metafísica no momento em que ele faz a seguinte declaração:

 

 

Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que, para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo que está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e visível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador — sua parte, que antes já foi inventada, num papel... (ROSA, 2001, p. 500).

 

 Dessa forma, em seu extenso narrar, ao mesmo tempo em que realiza o exercício arqueológico de mergulho em suas lembranças, o narrador-personagem de GSV opera também o esforço teleológico de encontrar o sentido de seu mover pelas veredas de dois sertões: aquele que o cerca — "O sertão é do tamanho do mundo" (ROSA, 2001, p. 89) — e aquele que se encontra dentro de seu próprio íntimo — "Sertão: é dentro da gente" (ROSA, 2001, p. 325). Porém, Riobaldo vem a descobrir que, para aquém da matéria arqué que sua memória proporciona e para além do télos que a sua perplexidade aponta, há uma terceira dimensão para a qual sua intuição o convoca: à escatologia incrustada no Grande Sertão, ou seja, o sertão transcendente, o sertão metafísico, aquele Sertão que "(...) não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena" (ROSA, 2001, p. 538).

O aperfeiçoamento simbólico traduzido pelo Grande Sertão, transcendente e metafísico, alcança sua mais alta possibilidade de prenhez de sentido quando se converte na Cidade de Deus, âmbito da incorruptibilidade e da ressurreição, lugar do "verdadeiro viver", onde Riobaldo pode livrar-se definitivamente das veredas do "viver perigoso". Eis aí, então, a matéria vertente da saga riobaldiana, segundo o exercício hermenêutico-simbólico que propomos neste ensaio, cuja melhor tradução reside no seguinte discurso epifânico de Riobaldo,

 

Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar — é todo contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave de se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dôr. E a vida do homem está presa encantoada — erra rumo (...). O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver — a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo (ROSA, 2001, p. 76).

 

A nosso ver, três constelações simbólicas justificam hermeneuticamente essa interpretação teofânica de Grande Sertão: Veredas que ora operamos: a ascencional, a espetacular e a diairética, conforme o trajeto antropológico do imaginário proposto pelo pensador francês contemporâneo Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas do imaginário (2002).

O itinerário riobaldiano estabelecido a partir do "viver perigoso" em direção ao "verdadeiro viver" — "Qual é o caminho certo da gente? Nem para frente nem para trás: só para cima" (ROSA, 2001, p. 110) — traz consigo imagens literárias que remetem aos símbolos ascencionais ou verticalizantes, portadores do pendor antropológico pelo metafísico, pelo transcendente, pelo enlevo espiritual, como bem traduz essa fala de Riobaldo, "Só o que a gente pode pensar em pé — isso é que vale" (ROSA, 2001, p. 307). Durand (2002) afirma que a tendência à verticalidade tem sua gênese na busca humana pela postura ereta, exercício este que exige ao homem um esforço descomunal, pois o anseio deste em distanciar-se da terra, elemento teofânico de cuja matéria foi criado, implica necessariamente em encarar a possibilidade constante e dorida da queda. O homem, embora tendo vindo do pó da terra, busca desigualar-se do raso de sua matéria formadora, alçando-se para o alto, inflado, pois, pelo fôlego de vida divino, a partir do qual se tornou alma vivente. A verticalização humana, dessa forma, estabelece um elo simbólico entre a terra e o céu, cuja mediação se dá pela espiritualidade, inefável matéria que faz do homem Imago Dei, ou como diria Riobaldo, "(...) sempre é o espírito que acerta" (ROSA, 2001, p. 141).

A ânsia do ser humano em superar sua materialidade com a completude metafísica consubstancia-se em sua escalada vertical contra a degenerescência provocada pela passagem do tempo e pela inexorabilidade da morte. Os símbolos ascencionais convocam, assim, à "(...) 'viagem imaginária mais real de todas' com que sonha a nostalgia inata da verticalidade pura, do desejo de evasão para o lugar hiper ou supraceleste (...)" (DURAND, 2002, p. 128). Podemos encontrar uma possível tradução metafórica dessa afirmação de Durand, nas seguintes palavras de Riobaldo: "Sertão: quem sabe dele é urubú, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas..." (ROSA, 2001, p. 590). Isomorficamente, então, o anseio humano pela verticalidade metafísica confunde-se com sua inveja ao modo de os pássaros ganharem as alturas com um simples par de asas, culminando, em última instância, no sonho da pureza alada angelical. Dessa maneira, segundo Durand, "A imaginação continua o impulso postural do corpo" (2002, p. 131), pois as imagens aladas suscitam nos homens o desejo de elevação e de sublimação. Em termos riobaldianos, "Lei asada é para as estrelas" (ROSA, 2001, p. 558).

Durand (2002), em suas pesquisas, encontra assimilações do símbolo ascencional no impulso para o alto que implica o arremesso da flecha, bem como com a sua descida veloz e reta ao solo, assemelhando-se à luminosidade de um raio que cai. Alia-se, então, ao gesto de elevação, a perspectiva da luminosidade, "(...) pela sua assimilação do raio, a flecha acrescenta os símbolos da pureza aos da luz, a retidão e a instantaneidade vão sempre de par com a iluminação" (DURAND, 2001, p. 134). Vemos, portanto, reunirem-se as características da ascensão, da pureza e da luz, elementos metafisicamente verticalizantes, em oposição aos elementos telúricos da queda, da mácula e das trevas, respectivamente.

Curiosamente, Durand (2002) encontra em seus estudos do símbolo uma correlação entre a balística e a transcendência. Dos Upanixades, por exemplo, o antropólogo recolhe a seguinte frase: "Toma o arco do Upanixade, essa arma poderosa, põe nele uma flecha afiada pela adoração, tende-o com um mental mergulhado no sentimento da unidade e penetra no Eterno como se atirasse para um alvo..." (apud DURAND, 2002, p. 134). Nesse sentido, o mirar e acertar o alvo vem a se tornar também um gesto simbólico que visa à transcendência, pois "O herói atirador emérito vem a substituir o homem pássaro" (DURAND, 2002, p. 134).

Há uma frase emblemática de Riobaldo que, de certa forma, traduz o seu modo erradio de trafegar pelas veredas de sua existência, "Medo de errar é que a minha paciência" (ROSA, 2001, p. 201). Na perplexidade dessa afirmativa revela-se a atitude de Riobaldo de, por muito tempo, estabelecer sua própria caminhada a partir de azimutes alheios. Assim foi na travessia do rio do-Chico, conduzido pelo misterioso Menino; iniciou-se na jagunçagem, orientado por seu primeiro chefe, Zé Bebelo; veio a se tornar um autêntico jagunço por conta do equívoco amor a Diadorim e pelo ódio deste a Hermógenes e alcançou a condição de chefe após o emblemático pacto demoníaco nas trevas das Veredas-Mortas. Somente quando se vê liberto de sua condição de pactário, pela morte sacrificial de Diadorim, é que o ex-jagunço Riobaldo passa a fazer suas próprias escolhas, fiando-se em suas próprias convicções, postado agora, é claro, ao lado de Deus. Entretanto, o desejo de acertar o alvo em sua vida, já se manifestava epifanicamente por meio de sua alta habilidade no manuseio das armas,

 

Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem: que vivo ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho. Por meu bom, de desde mocinho. Alemão Vupes pouco me ensinou. Naquele tempo, já eu era. Dono de qualquer cano de fogo: revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno, trabuco, clavinote ou rifle. Honras não conto alto, porque acho que acerto natural assim é de Deus, dom dado. (...). Seja? Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na idéia. O menos é no olho, compasso (ROSA, 2001, p. 178).

 

Em termos bíblicos, o dom natural de não errar, de acertar o alvo, já é uma dádiva divina, pois o ser humano é Imago Dei. Sendo imagem e semelhança divina, portanto, primeiramente espírito, as escolhas do homem provindas dessa condição o encaminharão sempre para o alto e para a luz, pois a pontaria que conduz ao acerto é um talento da idéia, ou seja, um atributo do espírito de Deus. O que menos importa para que o alvo seja alcançado, então, é o que os falíveis olhos humanos miram. Estes, ao contrário, podem, pela imersão abissal no reino da imanência, afogar-se em suas aparências quase sempre extraviadoras do caminho que conduz à Eternidade.

Mediante esses exemplos, podemos perceber que a atitude imaginativa da ascensão, que tem sua gênese no âmbito psicofisiológico humano, tende para as perspectivas metafísicas da purificação e da iluminação, ou seja, é em razão de um surpreendente isomorfismo que o processo de ascensão se une ao processo de luminosidade, como nessa fala epifânica de Riobaldo, "Sertão sendo do sol e dos pássaros: urubú, gavião — que sempre vôam às imensidões, por sobre..." (ROSA, 2001, p. 548, grifos nossos). Para Durand (2002), a constelação simbólica que envolve as imagens espetaculares faz convergir o luminoso, o solar, o puro, o branco, o real, o vertical, atributos esses que, em última instância se convertem em diversos adjetivos deidificadores. A própria descrição do Filho do Homem registrada pela revelação de João no Apocalipse dá conta dessa plêiade de tonalidades espetaculares:

 

A sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve, e os seus olhos como chama de fogo. Os seus pés eram semelhantes a latão reluzente, como que refinado numa fornalha, e a sua voz como a voz de muitas águas. Tinha ele na mão direita sete estrelas, e da sua boca saía uma espada de dois gumes. O seu rosto era como o sol, quando resplandece na sua força (Ap, 1:14-16).

 

Tal simbologia espetacular podemos ver matizada, de forma metafórica, no desejo de Riobaldo em livrar-se do "viver perigoso", como ele caracteriza as confusas imagens oferecidas pelo sertão imanente por onde transita, mediante a criação imaginária da Cidade de Deus na Terra,

 

Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando (ROSA, 2001, p. 75, grifos nossos).

 

Desse modo, podemos ver que, nessa vocação de Riobaldo, o isomorfismo da luminosidade e da ascensão condensa-se na simbólica da transcendência.

Segundo Durand (2002), os símbolos da transcendência reivindicam um processo dialético, ou seja, a mobilização profunda que os direciona é sempre polêmica, pois os coloca no constante combate aos seus contrários, "A ascensão é imaginada contra a queda e a luz contra as trevas" (DURAND, 2002, p. 158, grifos do autor). A conseqüência desse agon simbólico é que o alcance da dimensão transcendente exige, além de imagens ascencionais e espetaculares, os gestos de distinção, separação e purificação, caracterizadores dos símbolos diairéticos.  Em razão disso é que podemos falar que em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, o herói jagunço-metafísico, percorre um itinerário narrativo, cujo simbolismo se estabelece pela antítese das imagens, como bem ilustra esse seu esquizofrênico desejo,

 

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... (ROSA, 2001, p. 237).

 

Constrói-se, assim, como filha legítima do isomorfismo dos símbolos ascensionais, espetaculares e diairéticos, a imagem heróica do combatente posicionado contra os algozes das trevas e do abismo. Riobaldo traduz esse heroísmo transcendente por meio de uma contundente exclamação: "O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!" (ROSA, 2001, p. 35). A verticalidade ligada à transcendência agora se associa também à postura das armas erguidas num gesto agressivo visando separar o mal do bem. A arma com que o herói se municia torna-se, a um tempo, símbolo de poder e de purificação. O combate ao mal se reveste, então, de um caráter espiritual, posto que as armas simbolizam a potência de espiritualização (DURAND, 2002, p. 161). O próprio Cristo faz a seguinte declaração no evangelho de Mateus, "Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada" (Mt, 10:34). A espada torna-se, assim, o símbolo diairético por excelência, pois resguarda o sentido metafísico separador presente em todas as armas. Em GSV, a espada é minimizada em quicé que desempenha um papel fundamental de purificação, pois, por meio dela é que Hermógenes, a personificação do diabo, é extirpado do sertão pelas mãos de Diadorim, lugar-tenente do chefe Urutú-Branco, na derradeira batalha do Paredão, como confirma Riobaldo, quase no final de seu relato, já desarreado da jagunçagem e postado da banda de Deus,

 

Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem" (ROSA, 2001, p. 618, grifos nossos).

 

Essa assimilação das temáticas ascencionais, espetaculares e diairéticas "(...) marca a secreta tendência do pensamento humano que é, antes de mais, a de negar o existencial e o temporal [pois] supõe primeiro uma separação, uma purificação do domínio profano" (DURAND, 2002, p. 166). As imagens informadas pela narrativa riobaldiana se convertem, assim, num apelo à Soberania Celeste, no sentido de cortar com afiado gládio as amarras que prendem o ser humano à imanência, ou seja, à sua situação temporal, pois a simbologia que gravita em torno da elevação e da luminosidade são sempre acompanhadas pelo anseio purificador e "A transcendência, como a claridade, parece exigir sempre um esforço de distinção" (DURAND, 2002, p. 170).

Durand traduz essa tríade simbólica ascencional/espetacular/diairética como constituidora do Regime Diurno do imaginário, posto que tal regime se impõe na imagética humana como um pensamento contra a escuridão, ou seja, traduz-se numa postura ontológica adversária do semantismo das trevas, da animalidade, da queda, do tempo e da morte devoradores.

A nosso ver, o herói jagunço-metafísico Riobaldo assume essa postura do imaginário diurno de forma contundente, sobretudo, a partir do gesto conflituoso estabelecido entre ele e o mundo cujo embate é levado às últimas conseqüências. Tal atitude bélica — que podemos traduzir, em termos durandianos, numa atitude antitética, ou seja, uma atitude conflitual que encarna toda a estrutura da representação das imagens de sua narrativa, estabelecendo uma relação agônica entre o herói rosiano e o sertão — vem a ser, então, o background simbólico que faz de Grande Sertão: Veredas uma obra literária que anseia pela transcendência.

 

 

 

Referências 

 

 

 

julho, 2008