A
notícia correra a favela e num minuto os moradores já comentavam que, lá
embaixo, na farmácia, tinham prendido um tarado e estavam aguardando a
chegada da rádio-patrulha. Logo um monte de crianças curiosas descia o
morro em algazarra. Seguiam ávidas por observar de perto aquilo que
tantas vezes ouviram falar, mas que não tinham idéia exata do que
significava: um tarado. Bandos de mulheres principiavam também a descer,
já praguejando contra o desgraçado. Enraivecidas, proclamavam aos brados
que ele deveria morrer. Os homens, nervosos, iam despontando das portas
dos barracos e seguindo o cortejo, pescoços erguidos, como um predador
em busca de sua presa. A criançada, atenta a tudo o que se dizia,
cruzava na frente da turba, pulando de calçada em calçada. Ao verem
outros guris assustados com o movimento, e que ainda não sabiam direito
do ocorrido, corriam a avisar, mesmo sem entender muito bem sobre o que
estavam falando: "Um tarado! Prenderam um tarado!"
Um
menino, que se encontrava no banho quando a mãe avisou que estava saindo
para ver o ocorrido, chegou atrasado à porta da farmácia e já encontrou
o local apinhado de gente. Atravessou a multidão, esgueirando-se por
entre a aglomeração graças à sua estrema pequenez e magreza, malgrado as
tachações de mal-educado que ia recebendo, à medida que avançava.
Inquieto, achava-se arrebatado pela excitação de, finalmente, conhecer
de perto o ser monstruoso de que tanto ouvira falar no rádio, nos
programas policias. Esperava, com medo, deparar-se com os olhos
esbugalhados da fera, enojar-se com a visão da baba gosmenta a escorrer
da boca, enquanto mal conseguia respirar. Decidiu que não chegaria
perto, se não se certificasse de que estava com os pés e mãos bem presos
por alguma forte corrente. Talvez o tivessem amordaçado. Daí não poderia
ouvi-lo rosnando.
Finalmente
conseguiu alcançar a calçada da farmácia. Lá dentro, dois policiais
fardados conversavam com o farmacêutico. Tomou coragem e chegou bem
perto. Esticou o pescoço e olhou à direita, depois da parede. Pôde ver
então, um pouco atrás do balcão, sentado numa cadeira com os pés
amarrados por uma corda e as mãos algemadas para trás, um rapaz bastante
machucado. Tomou coragem e aproximou-se ainda mais. Um odor de suor e
medo invadiu-lhe as narinas. Um dos policiais pediu que se afastasse.
Recuou apenas um passo.
O
rapaz, descalço, mantinha um pé sobre o outro. Com o dedão do pé
direito, esfregava nervosamente o outro pé. Era negro, magro, quase
esquelético. O lábio havia sido partido por uma pancada. O olho inchado
escondia um olhar de bicho acuado. Falou alguma coisa. O policial
aproximou-se e perguntou o que tinha dito. O menino ouviu perfeitamente
quando disse: "Não fui eu...". O policial mandou que calasse e
sapecou-lhe um tapa na testa.
Teve
vontade de sentir pena do criminoso, mas lutou contra o sentimento que
se insurgia dentro dele. Bem a propósito, lembrou-se do apresentador do
programa policial gritando, no rádio, que "todo tarado é um bicho
indecente que merece, no mínimo, passar o resto da vida na cadeia". A
lembrança neutralizou o sentimento de pena e o menino tentou, de novo,
embora inutilmente, ter ódio da fera triste.
Meia
hora depois, a rádio-patrulha chegou e levou o criminoso, que partiu sob
uma imensa vaia e palavrões de todos os tipos. À noite, deitou-se para
dormir e a imagem do tarado não lhe saía da cabeça. Adormeceu
sentindo-lhe o cheiro de pavor e tendo na mente a imagem dos pés
descalços e sujos a se esfregarem nervosamente. Acordou na manhã
seguinte com absoluta certeza de que tinha havido algum engano. Ou o
homem que vira apanhando nada tinha feito, ou o tarado que o programa
policial descrevia era uma espécie de monstro muito diferente daquele
bicho esquelético e assustado que tinha
visto.