Josefina não gostava de teatro. Nem de circo. Ela
gostava de novelas, de crianças, de bichos, de banana amassada, de
espirrar, de arrumar o cabelo no salão da esquina, de passear no
conversível de seu namorado rico e feioso, de cornear seu namorado rico
e feioso com o bonitão do jipe velho, de dar banho no seu cocker
spaniel, de fazer tricô e sexo anal, de ouvir pagode e confissões das
amigas, de ler Jane Austen e bula de remédio, de comer quiabo ensopado e
pizza de tomate seco, de se embebedar com coquetéis de frutas sem
álcool, de dançar tango, de comprar roupas de grife, de roer o esmalte
vermelho das unhas, de pentear macacos, de arrotar em sala de aula, de
ser sempre o centro das atenções, de implicar com sua irmã paraplégica,
de beijar com língua, de cozinhar língua com batatas, de plantar
bananeira na sala, de andar nua pela casa, de seduzir o primo com
síndrome de down, de usar saias curtíssimas, de mostrar os peitos na
janela, de peidar em elevador, de visitar velhinhos em asilos, de catar
coquinhos na estrada, de contar histórias, de escrever poemas idiotas,
enfim, Josefina gostava de um monte de coisas. Mas não gostava de
teatro. Nem de circo.
Josefina achava que tanto o teatro quanto o circo
eram constrangedores, mas por razões diversas. O circo a deixava
constrangida por sua precariedade e seu jeitão de pobre (Josefina também
não gostava de pobre). As cadeiras de última categoria, a lona velha e
imundíssima, a serragem que grudava nos sapatos e nas calças do
mestre-de-cerimônia, os tigres, leões e elefantes magros, maltratados e
de caras tristes, as crianças remelentas da platéia, o ranger da
estrutura mal-montada do trapezista, tudo isso deixava Josefina com
vergonha, pelos outros. Quanto mais brilho eles acrescentam a suas
roupas, quanto mais luxo eles tentam forjar com a iluminação e com
remendos de cenário, mais a pobreza e a miséria são ressaltadas,
costumava filosofar Josefina.
O teatro, por sua vez, a deixava constragida pela
própria estrutura da representação. É direto demais, perto demais da
platéia, dá até para sentir a respiração dos atores, reclamava Josefina.
Se quiser, posso até tocar neles, posso subir no palco e bater neles,
bater até eles pedirem penico, e isso me assusta, completava. Para
Josefina, o teatro carecia de mediação, não havia ali intermediários.
Faltava algo que se interpussesse entre a platéia e os atores no palco,
algo que os afastasse e, desta forma, tornasse a relação entre público e
personagens mais distanciada e menos constrangedora. Bom mesmo, segundo
ela, era o cinema, em que os atores, graças a Deus, eram apenas imagens
projetadas numa tela.
Certa feita, sua amiga Imaculada tentou mais uma vez
levar a arisca Josefina ao teatro. Vamos lá, vai ser legal, e o ator,
aquele gostoso, sabe?, aparece nu, disse Imaculada para convencer
Josefina. E Josefina, já extenuada das recusas semanais aos convites da
amiga e em vista da possibilidade de ver aquele ator gostoso nu tão
próximo e sem mediações, topou. Porém, fez Imaculada jurar pela vida de
seu gato preto que esta peça não era do feitio de uma dessas montagens
moderninhas a que as duas assistiram há cinco anos, na última vez em que
Josefina estivera num teatro e tivera de ser retirada de lá numa maca,
em estado de choque: como boa parte da platéia, Josefina só se
preocupara em fugir dos tonéis com fogo que os atores lançavam contra o
público e, numa de suas corridas desesperadas, acabou batendo com a
cabeça numa trave e desmaiando. Imagina!, não tem nada a ver com aquela,
garantiu Imaculada. Tranqüilizada, Josefina só pensava agora em se
emperiquitar.
Quando chegaram ao teatro, um pequeno teatro de não
mais de 200 lugares, Josefina gritou, sacudiu os braços, amassou o
vestido novo e, por fim, ameaçou ir embora ao descobrir que suas
poltronas eram na primeira fila, que era por demais próxima do palco. A
paciente Imaculada relevava os "sua vaca, sua desgraçada, sua gorda
celulitosa, não quero mais ser sua amiga!!!" e argumentava que aqueles
eram os únicos lugares vagos que ela havia encontrado, mas que seria
tudo ótimo, porque o ator, além de gostoso, era muito bom ator e o
roteirista era espetacular, o diretor, um deus etc., etc., etc. Aos
poucos, Josefina foi se acalmando e, finalmente, sentou. Imaculada
suspirou, revirou os olhos e sentou também. O espetáculo
começou.
A peça era medonha, mas Josefina, contrariando todas
as expectativas, parecia estar adorando. Talvez porque, quando não
estava sem roupas, a malha que o ator gostoso usava marcava-lhe o
membro, e isso excitava a jovem Josefina. Ou talvez ainda porque a jovem
Josefina, por ser jovem, não tivesse lá muito senso crítico. Mas estas
especulações não vêm ao caso. O que interessa é que a peça era medonha e
Josefina, contrariando todas as expectativas, parecia estar adorando.
Observava fascinada os movimentos dos atores. Nas partes musicais,
chegava até mesmo a entreabrir os lábios. Lacrimejava feliz quando o tal
ator gostoso, numa malha de soldado e com uma enorme espada na mão,
saltava da direita para a esquerda no palco enquanto cantava uma
musiquinha ridícula sobre os males da guerra. Saltava aqui, saltava lá,
emendava umas piruetas toscas, ao mesmo tempo em que agitava sua espada
para cima, para baixo e para os dois lados.
Foi aí, em meio a um destes movimentos, que o ator
gostoso — totalmente sem querer — esticou o braço para além
dos limites do palco, levantou a espada e decepou a cabeça de Josefina,
que caiu rolando pelo teatro. Mesmo com o sangue espirrando do corpo da
moça como um chafariz e manchando-lhe a malha, o ator gostoso continuou
a pular, a dançar e a cantar. Imaculada tentava, sem sucesso, recolocar
a cabeça de Josefina no lugar. E a platéia, extasiada com a veracidade
do número, aplaudia enfaticamente.