Clímace

 

quando me tocas

um pássaro germina

nas entranhas

 

tua boca acorda

canários insuspeitos que

me habitam as células

 

à deriva dos ossos

meu corpo estranho de si

 

pulsa trinados atávicos

 

 

 

 

 

 

Labirinto aquático

 

Nunca (me)

encontro à

saída do teu

olhar

 

 

 

 

 

 

Incomportável

 

seja âmbar

o poema

furtado aos

intestinos da

palavra e

flamante seja

luz que recende

para sempre

inescrita

 

 

 

 

 

 

 

Coreografia

 

Para Vera Sala

 

Desempalavra

o verso

aprisionado

entre as

pernas:

o gesto

invertebrado

da canção

inventa

bailarinas

 

 

 

 

 

 

À  Diva

 

Das estilhas de

Maria

espalhadas

pelo chão

brotaram

canários.

 

Das veias

coléricas

fluiu sangue

musical,

ira traduzida

em harmonia.

 

Das tantas

mulheres

silentes

vazou a diva:

voz que não

se Callas.

 

 

 

 

 

 

Chilis en nogadas:

 

pimentas, pimentas

vermelhescuras

picantes

mergulhadas no molho

de nozes.

À aspereza do creme

adiciona-se o sabor

das tuas mãos que

me alimentam.

A fantasia

 

 

 

A vingança dos objetos

 

I

 

na moringa

sobrevive o

calor das nossas

bocas

 

nenhuma água

aplacava

nossa sede.

 

 

II

 

não guardei

flores secas

entre páginas

da pele

 

alvejei

braços e pernas

 

teu perfume

já não é

música

para o meu

nariz.

 

 

III

 

alforriei

os teus canários

primeiro

depois

soltei os laços

do vestido

voei

 

 

IV

 

não um poema

que te cantasse

árvore pedra sino

antes um poema

que calasse

os rubis

na tua boca

de silêncio

e fome

um poema

que se negasse

 

 

V

 

no corpo

verde da árvore

à sombra petrificados

os nossos corpos

letras abraçadas

dentro do

coração

 

 

VI

 

não sobrevivemos

à árvore que

se demora

assombrados

de prematuros

agoras.

 

 

VII

 

já foi sangue

a saudade e

vinho e

carne maturada

já foi tango

e fome

 

hoje é

esse retrato

desencarnado que

não me vê.

 

 

VIII

 

a cidade

interminável

rua história rio

e nós

desatados navegando

escuros pomares.

 

 

IX

 

a cidade já

não procura nossas

esquinas

páginas virgens

onde

nos escrevemos

beijos

 

 

X

 

guardou-nos

o retrato

 

(como a cidade

cresceu!)

 

inútil procurar-nos

no enredo das

esquinas

 

as avenidas

orfanadas

de nossa sede

pendem secas

dos nossos olhos

 

 

XI

 

antes

a tua boca

rompendo manhãs

depois

rompida a costura

das noites dias

fraturados.

 
 
 
 
(imagem ©daniel barreau)
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Sandra Baldessin. Escritora, arte-educadora e consultora em Comunicação Escrita; realiza oficinas de formação de agentes de leitura; oficinas de criatividade e liberação de linguagens criativas com base na educação sensível; é contadora de histórias e realiza, também, oficinas de terapia literária. Em 2003, lançou A cidade: espaço de vivência cultural, ensaio abordando os cenários culturais da cidade de Rio Claro/SP; em 2001, publicou À flor do verso, coletânea de poemas. Está terminando de preparar mais três livros, a coletânea de contos Capitus?, os poemas da coletânea A vingança dos objetos e Didática do desejo, uma abordagem sobre como despertar o prazer pela leitura, fundamentado nas experiências das oficinas.