1

palavra não é coisa
que se diga
quem toma a palavra
pela coisa
diz palavra com palavra
mas não diz coisa com coisa
a palavra pode ser pesada
a coisa, leve
e vice-versa não é coisa alguma
a palavra coisa
não é a coisa palavra
palavra e coisa
jamais serão a mesma coisa

 

 

2

juro dizer a meia-verdade
a meia-mentira
o centauro por inteiro
 
nada mais que a sedução da sereia
o passo em falso, verdadeiro
na beira de um desfiladeiro

juro com a mão direita
sobre a bíblia
e a mão esquerda abanando

em nome de Deus, de Zeus
de Oxalá ou da besta

juro que os que quiserem
somente a verdade
vão perder o melhor da festa

 

 

3

Drummond e Cecília
saíram de circulação
ela sorrindo na nota de cem
ele sério, na de cinqüenta
acima do valor literário
o valor monetário

duas notas dignas de nota
uma Cecília por dois Drummonds
quem troca

 

 

4

sempre que volto pro mar
o mar volta pra mim

no mar trocam de lugar
o início o meio e o fim

não vá lhe perguntar
como onde e quando

enquanto eu ia indo
o mar vinha voltando

 

 

5

O Hóspede

                            para Mario Quintana

O hóspede sabe que nada é seu:
um quarto, uma janela,
a rua que se perde onde o chão vira céu.

Ele entendeu que tudo está de passagem
e não adianta arame, areia, cimento,
casa de madeira, de palha, de vento.

Não lhe peçam assinatura
de proprietário no papel.
O hóspede tem outra escritura, a dos seus versos.

O universo é o seu hotel.

 

 

6

um dia o espelho
me devolverá um velho
tomara que eu valha
o tempo que o tempo
levou no trabalho
de esculpir a minha cara

um dia o espelho
me devolverá o vazio
quem sabe eu já esteja
morrendo de frio
e quem chegar perto
pra ver se respiro
vai ver pelas marcas
que virei um vampiro

 

 

7

estava aqui agora mesmo
onde fui parar
entre o movimento e o momento
num contratempo, um alugar
paina planando no vento
mosca de tarde no bar
se não me engano era eu mesmo
esse que saiu pra passear
ponte pênsil do pensamento
lá vou eu ou o que seja
um instante fora do ar

 

 

8

não quero mais de um poeta
que a sua letra
palavra presa na página
borboleta
nem quero saber da sua vida
da verdade que nunca foi dita
mesmo por ele
que tudo que viveu duvida
não revirem a sua cova
o seu arquivo
é no seu livro que o poeta está enterrado
vivo

 

 

9

falei a palavra mundo
pensando que nela
cabia o mundo
falei pra meio mundo
pensando que falava
pra todo mundo
não mudei o mundo
mas também
não é o fim do mundo

 

 

10

nem tudo termina de uma vez
cupins roem lentamente a tua casa
pedaço por pedaço
mas tem também as implosões
num tapa, castelo de cartas,
o velho mercado some do mapa
(replay: num tapa, castelo de cartas,
o velho mercado some do mapa)
isso quando não tiram algo invisível da gente
e tudo vem abaixo

 

(Poemas do livro Palavra Mágica)

 

 

(ilustrações de m. korb)

 

Ricardo Silvestrin (Porto Alegre, 1963). Poeta. Formado em Letras, UFRGS/1985. Professor de Literatura do Curso de Pós-Graduação da UniRitter, Universidade Ritter dos Reis (Módulo de Teoria e Prática da Poesia, Curso de Pós-Graduação Lato Sensu, Práticas Textuais). Diretor de Criação e Estratégia da agência de publicidade Globalcomm. Editor da ameop — ame o poema editora. Colunista do Segundo Caderno do Jornal Zero Hora. Integra o grupo musical os poETs.

Publicações
Viagem do olhos
. Poesia. Porto Alegre: Coolírica, 1985; Bashô um santo em mim. Haicais. Porto Alegre: ed. Tchê, 1988; O Baú do Gogó. Poesia, infantil. Porto Alegre: ed. Sulina, 1988; Quase eu. Poesia. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, Col. Petit Poa, 1992; Palavra mágica. Poesia. São Paulo/Porto Alegre: Massao Ohno/IEL, 1995; Pequenas observações sobre a vida em outros planetas. Poesia, infantil. 1ª edição Porto Alegre: ed. Projeto, 1998. 2ª edição São Paulo: ed. Salamandra, 2004; É tudo invenção. Poesia, infantil. São Paulo: ed. Ática, 2003 (um dos livros selecionados para representar o Brasil na 41th Bologna Book Fair — 2004, integra a biblioteca básica escolar recomendada pela FNJIL); ex, Peri, mental. Poesia. Porto Alegre: editora ameop, 2004.

Antologias
100 haicaístas brasileiros. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1990; Conversa com verso. Poesia, infantil. Org. Marô Barbier. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1992; Livro da Tribo. Poesia. Org. Décio Antunes. São Paulo: Editora da Tribo, 1996. Frogpond. Antologia mundial de haicai. New York: edição Haiku Society of America,  2000; Jornadas Literárias de Passo Fundo, 20 anos de história. Volume de poesia. Org. Tânia Rösing. Passo Fundo: ed. UPF, 2001; Antologia do Sul. Poesia. Org. Dilan Camargo. Porto Alegre: edição Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2001; Fazedores de amanhecer. Poesia, infantil. Org. Heloisa Prieto. São Paulo: ed. Salamandra (PNBE), 2003.

Ensaios
A morte de Macunaíma
. Porto Alegre: revista Porto & Vírgula, 1992; Mario Quintana — da poesia da arquitetura à arquitetura da poesia. Porto Alegre: revista Porto & Vírgula, 2002; "— O que é que você quer ser quando crescer? — Poeta polifônico". Ensaio sobre a poesia de Waly Salomão. Porto Alegre: revista Porto & Vírgula, 2003; Letras — matéria-prima da poesia. Prefácio para o livro "O Batalhão das Letras", de Mario Quintana, nova edição da Editora Globo, 2005.

Premiações
Prêmio do Encontro Brasileiro de Haicai, 2° lugar, São Paulo, 1987; Prêmio Açorianos, melhor livro de poesia editado no RS em 1995 — livro Palavra mágica; Prêmio Açorianos, melhor livro infantil editado no RS em 1998 — livro Pequenas observações sobre a vida em outros planetas.

CD
Música legal com letra bacana — os poETs
. São Paulo: YB Gravadora, 2004.