©pedro stephan
 
 
 
 
 

 

 

 

 

Rodrigo Leão - Proust era um arquiteto nato. Tinha a capacidade de descrever minuciosamente os ambientes por onde passou. Recriá-los. Subvertê-los. Mudá-los. Há algum paralelo possível entre a arquitetura proustiana e a poética do arquiteto Horácio Costa? O que a arquitetura "emprestou" ao poeta que você é?

 

Horácio Costa - De fato, nunca deixei de ser arquiteto. Há um traço arquitetônico na minha poesia: visualidade über alles, mas não só. Também há a apresentação dos poemas, digamos assim, muitas vezes polidos como se se tratasse de um projeto. O que mais ficou da arquitetura, entretanto, é a prática da citação, procedimento muito próprio da arquitetura pós-moderna. Li Ventura & Rauch — Complexidade & Contradição na Arquitetura — aos vinte anos. Tal leitura mudou a minha forma de ver o modernismo.

 

 

RL - Depois de estudar arquitetura, você se dedicou ao estudo de Letras. Estudou em universidades nos EUA. Qual a importância da formação acadêmica para um poeta? Poetas são bons professores? Professores são bons poetas?

 

HC - Cada poeta é um mundo. Eu queria me dedicar profissionalmente à literatura. Estava fascinado com a história da literatura, com os grandes autores do programa, como dizem os franceses. Tentei fazer mestrado na USP e a burocracia então não me permitiu. Fui rejeitado como estudante nas duas universidades nas quais dei aulas, a UNAM, no México, e a USP aqui. Mas depois elas me contrataram como professor. Vá entender-se a burocracia ibérica. É impossível.

 

Creio ser um bom professor. Me esforço bastante e ganho bem mal. Também creio ser um bom poeta. Ça arrive.

 

Em resumo, creio que para escrever a poesia que eu escrevo, estudar em Yale, na New York University, grandes instituições de ensino, foi importantíssimo. Mas não há regras. Um poeta pode também estar fascinado pela literatura, pela arte, como eu estive, e não necessitar dessa exposição organizada ao acervo da cultura.

 

 

RL - A fragmentação é uma característica da arte do século XX e em pleno século XXI, ainda fazemos uma arte bem fragmentada. Como você encara tal questão? É possível fazer uma arte inventiva, abrindo mão deste paradigma?

 

HC - A fragmentação é do sujeito, não da cultura. O indivíduo totalizador acabou no Renascimento. Não há como a cultura ignorar tal evidência. A fragmentariedade continuará, apesar dos saudosistas da unidade perdida. Mas também tem gente que quer, hoje em dia, que não se ensine a teoria evolucionista de Darwin, e que se persista numa interpretação literal da Bíblia. Tem cada louco que eu vou te contar.

 

 

RL - Em uma entrevista anterior você me disse que era um poeta pós-moderno. A modernidade, em sua busca pelo novo, não lhe parece insuperável? Não estamos condenados ao eterno modernismo? O que é ser um poeta pós-moderno?

 

HC - O modernismo acabou com a utopia de que a arte daria uma costura geral na sociedade e no sujeito. O novo é outra coisa. É mais estético do que ético. Estamos condenado ao presente cada vez mais elusivo que vivemos, não ao modernismo. Ser um poeta pós-moderno é ter consciência plena disso.

 

 

RL - Walter Benjamin dizia que o cinema é a maior das artes. É possível hierarquizar arte? Existe arte superior? Como o cinema, o teatro e a pintura influenciam o poeta e a poesia hoje em dia?

 

HC - A maior das artes é a que cada grande artista faz artisticamente. A hierarquização entre superior e inferior em arte é uma convenção de mercado, hélas. O cinema influencia tanto a poesia hoje em dia como as marés.

 

 

RL - Você tem um trabalho sobre a obra do Nobel José Saramago. Qual a sua principal área de interesse na prosa? Falta um Prêmio Nobel para a literatura brasileira? Para qual escritor (brasileiro vivo) daria um Nobel?      

 

HC - Falta um Nobel para a literatura brasileira sim. Não só um mas muitos. O Saramago fez um bom trabalho na prosa. Até os 58 anos se dedicou a diferentes formas e gêneros literários. Isso foi o que eu estudei na minha tese: a formação de Saramago, comme on devient Saramago. Meu interesse na prosa hoje em dia minguou, quase não leio mais prosa. Não tenho mais o saco para acompanhar as personagens, etc, sempre fico brigando com o livro, com vontade de mudar os parágrafos. A poesia cada vez mais é a minha forma de escrita e de leitura.

 

Para qual escritor? Provavelmente o Ubaldo. Mas o candidato ideal teria sido o Drummond. 

 

 

RL - Em seu mais recente livro, Ciclópico Olho, no poema "Rumo a Aqüiléia" você diz: "Dôo aos poetas fáceis, efeitos./Mas vim de tão longe, sou um//brasileiro". Quais os tipos de efeito um poeta fácil privilegia? É diferente ser um poeta brasileiro ou poeta é poeta em qualquer lugar do mundo? Você se considera um poeta hermético?

 

HC - Nós brasileiros não temos tanta exposição aos meandros da história do que os europeus, es eslavos, os árabes e os orientais, ou os judeus. Aqüiléia foi uma cidade enorme, o Patriarca de Aqüiléia era tão importante como o Bispo de Roma, isto é, o Papa, no fim do Império Romano. Eu sempre fui obcecado pela História, ao contrário da maior parte dos brasileiros. Sim, e sim, leio muito mais livros de história do que livros em prosa de ficção. A minha absorção pela história me dificulta jogar com efeitos fáceis. Não sou hermético mas sim difícil. Não me atrai a literatura fácil. E a "efectista", como se diz em espanhol, me dá preguiça: sinto-a descartável, na maior parte das vezes. Entretanto, muita vez me atraiu um verso ou um ícone econômico ou superficial. Mas fiquemos assim: A engenhosidade vazia me faz repeli-la.

 

Prefiro Camões a Gôngora e Gôngora a Marino.

 

 

RL - Rumo a Aqüiléia pode ser lido como a busca de uma Pasárgada pós-moderna?

 

HC - Não. Ao contrário da Pasárgada bandeiriana, Aqüiléia sim existe, em ruínas esparsas pelo campo inundado do Vêneto, e eu estive lá, e escrevi o poema sentado numa sarjeta, ao pé da estação de trens. O Bandeira, que nunca esteve no Irã e portanto em Pasárgada, e que talvez nem soubesse muito de Xerxes ou de Ciro, queria ser amigo do rei, e eu, ao contrario, o interpelo: o fantasma de Diocleciano, o grande unificador de Império do Ocidente, e cujas mulher e filha foram perseguidas pelos generais seus sucessores depois de sua morte em seu palácio em Split, atual Croácia, aparece no poema. Um brasileiro que ousa conversar com um imperador romano é excepcional nesta cultura nossa informal, e que recusa os grandes temas porque se sente tão e provavelmente erroneamente protegida pelos pequenos. É completamente diferente.

 

 

RL - Você utiliza a abreviação em alguns de seus poemas. Coloca "vc", ao invés de "você". É alguma influência da Internet? Como vê a utilização da Internet como meio de difusão de literatura de boa qualidade? O livro ainda é o Livro?

 

HC - A internet é um fato. Ninguém pode nem deve ignorá-lo. O internetês existe, já existe, em que pese o protesto putativo dos puristas. Quando indico o registro lingüístico da internet, o faço com a mesma liberdade e o mesmo olhar critico e paródico que tenho para tratar de (quase) tudo.

 

O Livro de Mallarmé não me interessa na prática, só na teoria. E a internet é regida pela pratica.

 

 

RL - O poema "Éter" é quase um soneto? As formas fixas vivem mesmo numa escrita tão inventiva?

 

HC - O poema "Éter" é quase um soneto. Muitas vezes escrevo quase sonetos. A forma do soneto vem com a nossa cultura letrada. Ignorá-la também é espúrio.

 

 

RL - Em "Breve AbandonaMos a CaMiseta da Moda", você utiliza o "M" maiúsculo como recurso. Em que se inspirou para compor tal peça? O poema pede o isomorfismo que há nele?

 

HC - M for Murder, M para Morte, M para Merda, M para Marilyn Monroe, M para Manuel meu Marido que se Matou, M para Muito.

 

 

RL - Seus poemas são escritos em cidades diferentes. Às vezes o mesmo poema passa pelo Brasil, México e EUA. Como é escrever sobre outras paisagens sob outros olhares, aspectos, cultura? O poeta, além de fingidor, é um viajante?

 

HC - Sou um homo viator. Mas agora, depois da cinqüentena, tenho enorme prazer em ficar parado. Quero viajar cada vez menos. Meus anos de jet lag acabaram, felizmente.

 

 

Introjetei este nomadismo em minha escritura. Não vou abandoná-lo nunca. Felizmente.

 

RL - Há uma certa vertente na poesia atual que abomina o cotidiano. Em alguns de seus poemas a memória do cotidiano está presente. Como é ir contra a corrente? 

 

HC - Sempre estive um pouco contra a corrente, não por determinação, mas por destino, se se quiser. É assim. Eu não pensei nunca em como deveria escrever algo. Sempre privilegiei escrever este algo, simplesmente.

 

 

RL - A morte é um tema recorrente em sua obra. Por que a morte? A morte é sublime?

 

HC - A morte é tudo, tanto quanto a vida. A categoria de sublime não se aplica a dados tão essenciais como esses, que são o que quisermos ter para qualificá-los, e ainda assim, sempre serão inqualificáveis.

 

 

RL - Como você encara o fato de muitos dos maiores escritores de todos os tempos serem homossexuais? Existe uma supremacia gay na literatura? Existe literatura feminina? Literatura gay? Literatura afro?

 

HC - A pergunta é irrespondível por mim, um homossexual militante. Se não acreditasse que a literatura não é um absoluto mas sim uma "casa de bonecas", hahaha, não militaria como poeta homossexual brasileiro no campo da cultura e da academia. 

 

O homossexual, para sê-lo, até hoje tem que assumir uma postura critica diante da vida e da sociedade, o que lhe  facilita desenvolver, quiçá, uma sensibilidade maior para com a criação artística. Se e quando a aceitação social for plena, veremos o quanto sem esta repressão histórica os homossexuais continuarão a prezar tanto o fato artístico.

 

 

RL - Você considera sua poesia neobarroca?

 

HC - Tanto quanto não a considero.

 

 

RL - Com quantas metáforas se faz um poema?

 

HC - Metáfora em grego quer dizer ônibus. Com quantos ônibus são os poemas feitos?

 

 

RL - A poesia precisa servir para alguma coisa? Pra que serve a poesia?

 

HC - A vida sempre mata. Entre o nascimento e a morte o homem faz. Entre outros afazeres, poesia. Se servir, serviu. Se não, vai pra puta que o/a pariu.

 

 

RL - Tem algum mote ou alguma epígrafe que está fazendo sua cabeça no momento?

 

HC - O demônio está triste. Acabei de inventar. Não é lindo?

 

 

RL - O poeta tem alguma função social? O poeta não tem papel na sociedade? Até que ponto a poesia pode interferir no mundo que nos cerca?

 

HC - A de fazer poesia e tratar de torná-la pública. A poesia é uma arte velha. Os versos de Horácio ou de Ausônio perduraram; aí estão, ao contrário das colunatas de Aqüiléia.

 

 

 

 
 
agosto, 2006
 
 
 
 
 
 

 

Canções do muro

                  

 

1

 

Quem botou o reboco neste muro

não tinha bom domínio de espátula,

ignorava a mescla correta da argamassa,

não era bom pedreiro.

 

Ou será tão-só o tempo o culpado

pela destruição do seu trabalho?

Não faz assim tantos anos

que levantaram este muro.

 

Pintaram-no de branco

e várias vezes repintaram-no,

de branco primeiro, depois só de tons ocres.

 

 

2

 

O sol batia a pino sobre o muro

que parecia estar ali

desde que é o mundo mundo:

os passantes não o percebiam mais.

 

Usaram-no como suporte

de campanhas políticas & publicitárias,

Kolynos & logos

& siglas & partidos

impressos com tinta barata.

 

 

3

 

Usaram-no também para grafites:

escreveram sobre rostos & restos

de affiches & argamassa

como se sobre uma folha em branco.

 

Virou a carne do muro

uma espécie de pasta: um Tàpies

esquecido num canto de cidade, obra in progress

de significado igual & forma instável

(do lado de lá, escondia-se /

esconde-se

o velho jardim de rosas).

 

 

4

 

Quem reparou na progressão das gretas

sobre a sua superfície & mediu

a deslavagem & a erosão milimétricos?

Quem leu as pautas que se formavam?

Quem viu o reboco cair como icebergs

no oceano da calçada?

 

A sós se desfazia /

se desfaz o muro,

sua música para ninguém cantada,

surdina para surdos, cantochão para o chão,

nu descendo a escada numa casa vazia,

natividade num museu antártico.

 

 

5

 

Por isso cantaria eu o muro?

Por isso eximiria eu

o pedreiro do mau reboco

de seu mau trabalho

de há quarenta & mais anos?

 

Sua obra resultou em obra d'arte

-que vive na retina, que não no espaço-,

mas não é esta a razão,

nem este poema a sua defesa

nem a épica do descobrimento súbito

do muro.

 

 

6

 

Canto o muro porque sim,

porque sua pele & a minha se assemelham

posto que também já tomei sol & tomei chuva,

posto que sobre o meu corpo discursos

& campanhas se imprimiram /

imprimi:

já tive tantas caras & sorri

como foram da minha vida os meses

& as idéias políticas ou não

que se sobrepuseram

umas sobre as outras.

 

 

7

 

Canto-o & dou-lhe olhos & ouvidos

para cantar-me a mim;

ao emprestar-lhe minha voz /

tomá-lo emprestado para a minha voz

 

canto-me a mim:

 

edificado por acaso numa esquina do tempo

(do outro lado, o velho jardim de rosas)

ruminando, cantarolando o que me apraz

(sim que há rosas, me disseram)

 

& os Tàpies, os topázios

sobre a minha pele

(& as pétalas)

 

 

8

 

& as fraturas

& os desmoronamentos

& as cantigas da gravidade

& o caminho ao pó

                           

o meu caminho

& o muro.

 

 

(Cidade do México, 25.VIII.96)

 

 

 

 

 

 

Exploração total do cisco

 

 

Vê-lo por todos os lados

como se fosse uma galáxia

sobre a mesa ou a lapela,

refulgindo branco ou gris

em sua intromissão ao

polido, ao virginal, contra

o lado ideal que tenta

narrar tudo sobre a vida.

O cisco: projetar-lhe arcos

triunfais e Boileaus

convidar para solenes

comporem-lhe elogios,

e entregar-lhe o Leão de Ouro,

o Oscar e, pour quoi pas?,

também

o estimado

Jabuti.

Tudo isto feito, olvidá-lo:

um cisco é um cisco é um cisco,

apenas

um

cisco.

 

 

(São Paulo, 24.VIII.99)

 

 

 

 

 

 

Breve abandonaMos a caMiseta da Moda

 

M for Murder

Mitema e Mitomania:

 

Marilyn Monroe, Mitos, talisMãs

que apertam o dedo como a aliança de casados:

 

sim, ele tinha um perfil como os da arte Nambam,

de bebedores de vinho em Honshu no XVI

 

(fujo do sol e ele me persegue como o prognatismo;

me persegue e, como já disse, dói no ver)

 

sim, ele tinha um perfil de bebedor de vinho a talagadas

e se posicionava colunável como um mito eppure stilita:

 

os poetas não sabem bem bem (M for M)

onde vão parar, se em

 

Meknès ou Mênfis

ou Memphis ou México

 

sabem (M) que há um nariz

que os guia para frente

 

freMte, freuMde, frêMito

seMpre aberto ao air-du-temps:

 

por exemplo, tome-se a Morte (M)

mitema egípcio se os há:

 

hay que juntar los enseres,

a panela de pressão predileta,

 

o melhor logo, a memória da boda,

a mais confortável caMiseta:

 

ora ela virá seMpre e caMicase

tornando o nariz uma Mina

 

(Bum; M): enfim,

not a whimper but a boom

 

 

(Lisboa, Portela do Sacavém, 29.IX.01)

 

 

 

 

 

 

Tire tudo da paisagem                                                                         

 

 

Tire tudo da paisagem,

o serpenteante rio de águas cristalinas,

a neve ocasional, os rebanhos

de branquíssimas ovelhas

que se escondem detrás

das bétulas e das coníferas,

tire as porteiras que dividem

os campos de aveia e de centeio,

tire as velhas casas de pedra

da paisagem,

tire os bulbos de narciso,

os bulbos de lírio, de íris,

os telhados, as chaminés, os pedregulhos,

pouco a pouco tire tudo da paisagem:

a irritante torre medieval,

a capela tardo-gótica,

os retábulos de têmpera sobre madeira,

as rimas, as baladas líricas,

a cozinha típica, os sapatos:

descalce a paisagem,

veja-a sem subterfúgios,

nua, reduzida, descalça.

 

Ainda assim, nota bem,

algo permanece

entre aquela paisagem

e a de agora:

o pio dos corvos,

o agouro dos corvos,

aquele martelar de gritos negros,

sobrevive, voa entre

a paisagem de ontem

e a que lês, queridíssimo

leitor. Não há como

tirar os corvos

deste poema.

 

 

(San Diego, La Crecenta, 7.VII.98)

 

 

 

 

 

 

No cemitério de Velestovo

 

Para Bogomil Gjuzel

 

 

Nos Bálcãs, é costume

vestir os túmulos

com a roupa dos mortos.

À esquerda observo

uma campa vestida de renda

preservada por um desgastado

plástico rosa e à direita

um túmulo de homem,

a lápide em forma de cruz

vestida com uma camisa

como se um hirto espantalho funéreo,

um pope esquelético,

que o gorro na trilobulada ponta da cruz,

azul e já esfarrapado,

desacralizasse.

 

Do cemitério de Velestovo

lá embaixo vê-se em toda extensão

a prata do Lago de Ohrid,

a principesca cidade

de vielas bizantinas

e arquitetura otomana

escudada contra a mole

do vazio e maciço castelo.

Na margem oposta do lago

sobem as montanhas da Albânia:

lá, em prováveis cemitérios simétricos,

serão diferentes os túmulos,

assim como as memórias que os vestem.

 

Aqui nesta encosta

não parece haver mais ninguém

ainda que sobre as campas,

perto das velhas fotografias

e ao pé das inscrições em cirílico

haja também traço de velas recentes.

Alguém as pôs lá, que não tenha partido

para austrálias e europas

com medo de que sobre o lago

se multipliquem de margem a margem

os cadáveres do crescente e da cruz.

 

O Cemitério de Velestovo

redime a paisagem:

persuasivamente silencioso

e reverso do cartão-postal,

instala-o de chofre no agora.

 

 

(Struga, 29.VIII.03)

 

 

 

 

 

 

Agora 

 

Num mundo de seis bilhões e meio

de bípedes mamíferos pithecus

há a árvore.

Uma de tantas.

 

Num universo de n estrelas n/x delas

com atmosfera

há este céu, azul.

Um de tantos.

 

Cisco ao redor de sóis

queima-se no devir histórico trans-histórico

a manhã.

Agora.

 

Repara na folha que ondula,

em simpatia repara.

Este ondular dá-se em teus olhos.

Por enquanto o oxigênio respira-te.

 

 

(Cidade do México, 1996)

 

 

 

 

 

 

 Eine kleine Nachtmusik

 

 

O antúrio, o heliotrópio e a flor da alcachofra,

o fósforo malva, a hidrângea e o agapanto,

o catálogo, o banco, o cabo e o lírio,

a India, a caixa de luz, o kilim e o oratório,

 

a cerâmica kamaiurá, a folha polilobulada,

a curva na parede, a Giudecca, as duas pétalas,

a garganta, o carpete e Catarina de Médicis,

a placa fria, a centúria, a vida aos pedaços.

 

Sobe a noite no Alto de Pinheiros. Mozart

não chegou aos quarenta, jamais descansou

nem na febre que o consumiu: seu suor

 

verteu-o num formigueiro de semicolcheias

que unifica os universos mais dissimilares.

E a límpida música noturna cose o todo.

 

 

(São Paulo, setembro de 1996)

 

 

 

 

 

 

Esse olhar que vara o crisântemo

 

esse olhar é meu.

Esse olhar que vara o amarelo

esse olhar é meu.

Esse olhar que de noite

perpassa

a noite

o amarelo

o crisântemo

o olhar mesmo

esse é meu olhar.

Vem embebido

do dono

mas é seu próprio

é sózinho.

Esse olhar não tem

dono ou base:

o Monte Ajusco

a Cordilheira do Atlas.

Esse olhar vara

por si:

a flor varada

depois dele

desfolha-se.

 

 

(São Paulo, 6.V.99)

 

 

(Do livro Ciclópico olho, inédito)

 
 
 
 
 
 
 

Horácio Costa (São Paulo-SP, 14/12/54). Formado em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP, 1978); Mestre em Letras (New York University, 1983), PhD em Yale (1994). Professor na UNAM (México), 1987-2001. Desde então, é professor da FFLCH-USP. Publicou 28 poemas 6 contos (São Paulo, 1981); Satori (São Paulo, 89; atualmente sendo traduzido ao espanhol), O livro dos Fracta (México e São Paulo, 90), The very short stories (São Paulo, 91; México, 95), O menino e o travesseiro (São Paulo, 93; re-edição 03; México, 98); Los jardines y los poetas (Caracas, 94), Quadragésimo (México, 96 e São Paulo, 99) e Fracta — antologia poética (São Paulo, 04). Livros de poesia por publicarem-se: Ciclópico Olho e Ravenalas. Traduziu e publicou Octavio Paz (Piedra de Sol/Pedra de Sol, Rio, 88), Elizabeth Bishop (Antologia Poética, São Paulo, 90), César Vallejo (Poemas Humanos; México, Rio e Lisboa, 92), Xavier Villaurrutia (Nocturnos; Lisboa, 94); por publicarem-se Xavier Villaurrutia (Poesia Completa, São Paulo) e Blanca Varela (Canto Vilão, São Paulo). Organizou dois eventos internacionais de poesia: "A palavra poética na América Latina, avaliação de uma geração" (São Paulo, Memorial da América Latina, 90; publicada em livro) e "O veículo da poesia" (São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade, 98). Outros livros: José Saramago: o período formativo (Lisboa, 97 e México, 03) e Mar abierto: ensayos sobre literatura brasileña, portuguesa e hispanoamericana (México, 01). Foi júri de vários certames literários na Venezuela, no México e no Brasil. Tem mais de 60 artigos publicados em livros e revistas internacionais. É assessor da Fapesp e da Capes. Tem poemas ou livros traduzidos ao espanhol, inglês, francês, romeno, macedônio e búlgaro. Atualmente é presidente da ABEH — Associação Brasileira de Estudos da Homocultura.

 

 

 
 

Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.