©mafalda veiga
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

No fundo da matéria cresce uma vegetação obscura;

na noite da matéria florescem flores negras.

Elas já têm seu veludo

e a fórmula de seu perfume.

 

Gaston Bachelard.

A Água e os Sonhos

 

 

Sonho esta extraordinária e trágica aventura

de partir através o mar da escuridão,

para desembarcar na terra onde fulgura

a seiva que alimenta a árvore do clarão

 

Teixeira de Pascoaes.

O Pequeno Livro dos Sonhos

 

 

Introdução

 

Foges em companhia de ti próprio:

é de alma que precisas de mudar,

não de clima

 

Annaeus Seneca

Pensamentos

 

 

Este trabalho pretende estudar alguns elementos presentes no imaginário da compositora e cantora portuguesa Mafalda Veiga. Não temos a intenção de propor um julgamento qualitativo sobre a densidade das imagens utilizadas por esta artista. Inclusive, evitamos identificar categorias do seu imaginário material de ordem superficial e profunda ou, como diria Bachelard, distinguir o volume e a superfície da substância1 com a valorização do primeiro sobre o segundo. Utilizamos como principal fonte para a nossa análise, A Psicanálise do Fogo e A Água e os Sonhos, ambos de Gaston Bachelard além de, em escala menor, As Estruturas Antropológicas do Imaginário de Gilbert Durand.

Um dos nossos critérios para realizar a análise foi a criação de uma personagem guiada numa trama narrativa, com o imaginário emanando de algumas das canções de Mafalda Veiga, numa ordem cronológica por nós imposta. Assim, a personagem, quase invisível, vai tomando forma racional e sensitiva a partir do discurso proferido pelas canções na sequência. Inicialmente, nas secções Cambiante Partida e Navegando nos Mares de Si, propomos um caminho por onde esta autora mostra as várias faces de sua liquidez, desperta as personalidades da água utilizadas em momentos compositivos distintos, despeja o sentir variado de uma alma humana nos diversos compartimentos do devaneio hídrico. Porém, não ficamos restritos às características hídricas do seu imaginário. Depois da jornada iniciada pelas secções precedentes, a autora faz uma breve parada nas margens por onde correm as águas e, Descansando num Pedaço de Terra, aborda algumas canções que servem de objecto para a manifestação do imaginário da matéria telúrica, por exemplo. No prosseguimento da jornada, reservamos a secção No Leito Variado das Águas, dando uma pincelada em outras características dessa substância. Por fim, Quando a Fonte Cessa... O Fogo! é o porto de destino por onde ficamos.

Para tal análise, não consideramos cada canção em toda a sua potencialidade, isto é, reservamos nosso olhar apenas para a face literária de cada obra e deixamos de lado os efeitos da análise da música propriamente dita: ritmo, melodia e harmonia. Ao deixarmos de lado esta face musical, os efeitos proporcionados pela união entre letra e música passam a ser desconsiderados. Decidimos descrever resumidamente a importância desses elementos musicais, apenas na composição Planície, inserida na secção Descansando num Pedaço de Terra. Quanto à origem das letras, queremos explicar que todas elas aqui presentes, foram retiradas do site oficial da compositora na internet. Logo, assumimos que estejam correctas e contenham a essência da criação original.

Declaramo-nos conscientes de que a sombra distante da ficção por nós criada para conduzir a nossa análise, não se trata de nenhuma obra elaborada e digna de recursos sofisticados da arte narrativa. Apenas serve, em alguns momentos, como tecido conector da narrativa crítica, que é o objecto principal deste trabalho. Entretanto, como toda ficção, esta possui uma personagem abstracta fictícia e, por vezes, utilizamos substantivos diversos para referirmo-nos a ela, que podem ser assumidos como sinónimos, entre os quais: ser, sujeito, compositora, autora e outros que envolvem o nome da artista em estudo. Com excepção da primeira secção, onde realizamos propositadamente a utilização destes substantivos numa ordem que serve para representar a personagem disforme ganhando corporalidade e identidade, estes sinónimos encontram-se utilizados de forma aleatória. Por fim, mesmo nos declarando criadores de uma quase-ficção nesses moldes informais, dedicamos a secção Crítica ao Itinerário Proposto, para tentarmos realizar uma análise sobre a possível personalidade textual, formada ao longo do itinerário seguido. Enfim, desfechamos o trabalho com a Conclusão e anexamos no final, uma lista das músicas utilizadas.

 

 

 

Cambiante Partida

 

 

...sonhámos de tudo o que há sem regresso
Quem guardará o passado?...

 

Mafalda Veiga,

Cidade

 

 

O po[n][r]to de partida por onde iniciamos o nosso itinerário, sobre o imaginário contido em algumas canções de Mafalda Veiga, é o lugar mais íntimo de cada um. Mais particular do que a cidade natal, onde cada um nasceu; mais privativo do que a própria casa, guardiã das reminiscências e travessuras de infância; mais minimamente secreto do que o próprio quarto, com sua cama, suas gavetas, suas cómodas e seus objectos pessoais. Seria o lugar onde o ser se esconde, dentro de sua constituição material; a sua própria alma, seus pensamentos e devaneios, onde nascem os dilemas existenciais e as suas representações através das imagens poéticas. Nossa proposta de partida é a de aniquilação de todo o espaço exterior. O universo único onde as coisas do mundo existirão e acontecerão inicialmente, será o universo interno dos diversos sujeitos poéticos de Mafalda Veiga. E, apesar deste local ser um po[n][r]to de partida, constatamos que não se trata de uma demarcação estática. Lá dentro, a vida ferve e, por isso, irá fervilhar mais tarde, cá fora. O desejo de mobilidade mostra-nos presente, um pulular interior inicialmente com idiossincrasias fluidas, o que nos sugere convocar o devir heraclitiano e vesti-lo com a luva-irmã das reflexões psicanalíticas bachelardianas2. Heráclito também partiu da constatação do incessante devir das coisas, quando afirmou que não é possível descer duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes numa substância morta no mesmo estado; pela velocidade do movimento, tudo se dissipa e se recompõe de novo, tudo vem e vai3. Isso é o que poderemos constatar, pelo menos na boa parte do cancioneiro desta autora que nos chegará às mãos através deste trabalho. Desta forma, justificamos a nossa necessidade em denominar este início de viagem, dando sentido ambíguo ao grafar duplamente o vocábulo e, consequentemente, a expressão: po[n][r]to de partida.

Sendo água desde o início, faremos o ser partir de um porto localizado Nalgum Lugar Perdido, onde a veneração pelo sonhado mundo interior é declarada. Lá, o movimento está quase ausente. O estado é de sono profundo, uma espacialização no âmago se alarga invisível, através do desejo de existência de um local impoluto. O ser deseja este local para alguém, porém, para nós, há um espelho; o ser deseja e busca um local para si.

Por um instante, declara reconhecer o mundo exterior, mas calmamente o nega, o põe de lado. O mundo fora está esquecido e, mesmo na escuridão do sono, há uma luz absoluta, um brilho lunar suave, que realiza e preserva o paraíso perdido. Ambos os mundos são regidos por tempos distintos:

 

Olhar-te um pouco, enquanto acaba a noite
Enquanto ainda nenhum gesto te magoa
E o mundo fora aquilo que sonhas nesse lugar só teu

Olhar-te um pouco, como se fosse sempre
Até ao fim do tempo, até amanhecer
E a luz deixar entrar o mundo inteiro e o sonho se esconder

Nalgum lugar perdido vou procurar sempre por ti
Há sempre no escuro um brilho, um luar...
Nalgum lugar esquecido eu vou esperar sempre por ti

 

Todo sono, excepto o último sono que acomete os homens, é seguido de um despertar, que colocará, a qualquer instante, o sonolento sonhador em contacto com o cosmos. Mas ainda não é hora de despertar; é hora apenas de saber-se livre de algum sintoma de realidade que pulsa do lado de fora. É hora de manter a utopia ainda ilusoriamente viva e além sustentada:

 

Enquanto dormes, por um momento à noite
É um tempo ausente que te deixa demorar
Sem guerras nem batalhas para vencer, nem dias para rasgar
Eu fico um pouco, por dentro dos desejos
Por mil caminhos que são mastros e horizontes
Tão livres como estrelas sobre os mares e atalhos pelos montes

 

Reconhecer essa realidade exterior é interagir, mesmo que subtilmente, com a mesma. Na vida adormecida, o tempo é diferenciado, parece inexistir; mas o tempo que reina é o externo e o contacto com esta substância fluida, perturba o sujeito e os seus tranquilos devaneios. O sujeito está preso em definir o conceito de liberdade, no sentido de um desprendimento dos efeitos temporais, através de imagens que comparam liberdade com estrelas sobre os mares e atalhos pelos montes. Ao fazê-lo, o sujeito depara-se com a sua Fragilidade cuja poesia, por desconsiderar a existência de qualquer espaço de reconhecimento exterior, começa a transmitir os conflitos existenciais. A realidade interior e a consciência de que tudo flui lá fora, incomoda, dá vertigem e fragiliza o sujeito, a ponto de incitá-lo, de fazê-lo almejar a petrificação da liquidez temporal:

 

Talvez pudesse o tempo parar
Quando tudo em nós se precipita
Quando a vida nos desgarra os sentidos
E não espera, ai quem dera.

 

Segundo Heráclito, a guerra é mãe e rainha de todas as coisas; alguns transforma em deuses, outros, em homens; de alguns faz escravos, de outros, homens livres. Tomando consciência desta realidade, a compositora procura um canto, um local, um espaço, onde pudesse simplesmente ficar. Aqui continua a busca, em nossa ficção, por algum indício de espaço poético; insistindo no invólucro do corpo, a compositora quer [se] encontrar, lá dentro, [n]algum lugar perdido, associando as avaliações de liberdade a vagas imagens do mundo real. O corpo espacial, porém, ainda está ralo e disforme; sua existência ainda é vaga, sua aparência é cambiante. A transformação e a efemeridade dos sentimentos de cada um, às vezes são dolorosas verdades para se aceitar e nem as promessas o fixam, com sua âncora:

 

Houvesse um canto para se ficar
Longe da guerra feroz que nos domina
Se o amor fosse como um lugar a salvo
Sem medos, sem fragilidade

Tão bom pudesse o tempo parar
E voltar-se a preencher o vazio
É tão duro aprender que na vida
Nada se repete, nada se promete
E é tudo tão fugaz e tão breve.

 

A consciência do escoamento do tempo é tão forte, que começa a ser sentida em velocidade progressiva e a beirar o vertiginoso, incapacitando a autora de desfrutar das cores do mundo e apreender a sua própria cor, como se as correntes a impedissem de sustentar a sua própria personalidade; os sentimentos bons são descolados do espírito, são apagados e levados pelas correntes da água do tempo. A autora não consegue sustentar em si uma constância. As cores não ficam; a correnteza as leva. A vida desgarra os sentidos e não espera pela sonhadora que tem seus pensamentos despigmentados. Neste ponto, a autora explicita que o tempo é água e, mais do que isso, é água gravemente corrente:

 

Tão bom pudesse o tempo parar
E encharcar-me de azul e de longe
Acalmar a raiva aflita da vertigem
Sentir o teu braço e poder ficar

 

E é tudo tão fugaz e tão breve
Como os reflexos da lua no rio
Tudo aquilo que se agarra e já fugiu
É tudo tão fugaz e tão breve.

 

         Estas palavras representam em nossa ficção, o susto inicial da nossa Mafalda ao se deparar com o pensamento heraclitiano e constatá-lo e experimentá-lo e senti-lo. Numa imagem, um tanto inclinada a uma consciência racionalizada, a nossa Mafalda despigmentada gostaria de ser pintada de azul, ao que nos parece uma tentativa de conter a coloração fluida da água (e mesmo do ar), sugerindo uma metamorfose através das propriedades desses elementos. Este choque inicial parece que é seguido de uma depuração e reflexão conformada em Morrer para ser Preciso. A ponte de ligação com o poema anterior é a afirmação de que nada se promete pois, do contrário, se teria a negação da fluidez da vida que acabara de ser descoberta. O desejo de que o riso sempre habite em si é impossível. Não se pode extrair a felicidade de toda e qualquer ocasião. No passado, a nossa Mafalda julgava e desejava a imobilidade dos temperamentos e agora com a revelação, ela confessa como via o seu passado imóvel pois,

 

Ninguém disse que os dias eram nossos
Ninguém prometeu nada.
Fui eu que julguei que podia arrancar sempre
Mais uma madrugada.

Ninguém disse que o riso nos pertence
Ninguém prometeu nada.
Fui eu que julguei que podia arrancar sempre
Mais uma gargalhada.

A nossa Mafalda presa, até aqui, em seu mundo interior, percebe que o córrego da inexorabilidade só poderá ser seguido, virando-se a armadura da própria alma pelo avesso, como quem revira uma camisa e expõe ao mundo exterior, tudo o quanto estava do lado de dentro. Neste acto, Mafalda traz, para dentro de si, as impressões do mundo que tocavam o lado de fora de sua armadura e oferece sua alma, antes enclausurada, ao mundo exterior. Consagra a mistura dos mundos ao afirmar:

 

E deixar me devorar pelos sentidos,
E rasgar-me do mais fundo que há em mim
Emaranhar-me
no mundo, e morrer para ser preciso
Nunca por chegar ao fim.

 

Começamos a projectar aqui, em nossa cronologia proposta, um processo de emigração do mundo interior para o mundo exterior. Afim de se pesquisar a si próprio, é preciso pesquisar a natureza pois ela, segundo Heráclito, com efeito gosta de ocultar-se4. Logo, assiste-se, em Mafalda, a uma plácida consciência e aceitação da realidade móvel, após um período de angústia e vertigem devido à torrente experimentada ao isolar-se no eu incompatibilizado com o cosmos. Nesta óptica de calmaria, a mistura com o mundo desmistifica a fluidez universal, antes inimiga dela. Para obter a precisão da liberdade, Mafalda sugere a sua morte, pois desintegra-se no mundo; sua energia se espalha e se difunde com o mundo numa química existencial. Mafalda canta a música preceituada pelo cosmos ao misturar-se e Ficar Mais Perto do mesmo:

 

Depois talvez construir
Ou navegar os dias
Pressentir
Percorrer os caminhos que houver
Há sempre uma maneira de recomeçar
O que se quiser

 

Deixa-me assim refazer
Ou desfazer os rumos
Descobrir
Entender o destino que vier
Porque há sempre uma maneira de mudar
O que não se quer

 

Chegando mais perto e, quiçá unindo-se a esta fluidez universal, Mafalda poderá usufruir de suas características circulares, onde há possibilidade de se deslizar a embarcação para pontos simétricos, especulares, antifrásicos e a vida transforma-se nessa dança em feitura constante, revela essa guerra enriquecedora que Heráclito tanto nos falou: é a mesma coisa o vivo e o morto, o acordado e o dormente, o jovem e o velho: pois que cada um destes opostos, transformando-se, é o primeiro. O que é oposto une-se e o que diverge conjuga-se5. É a unidade que torna as oposições possíveis. A Homero que dissera: possa a discórdia desaparecer de entre os deuses e de entre os homens, Heráclito replica: Homero não se apercebe que pede a destruição do universo; se a sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam6.

Os contrários existem, mas há uma seta do tempo, apontando para um amanhã, onde Mafalda pode renascer. Esse primeiro contacto inspira Mafalda Veiga a se banhar nas correntes fluidas e beber de sua fonte com sugestões rejuvenescedoras, experimentando, contaminando-se e adquirindo para si, as propriedades da sua substância fluente:

 

Depois talvez na incerteza
Descobrir o que está certo
E no amor
No desamor
Virar a vida do avesso
Ficar mais fundo e mais perto do calor

 

Deixa-me só seguir o rumo de outro sentimento
Que acontecer
Nem tudo o que nos ata
Nos pode prender
Porque há sempre uma maneira de recomeçar
O que se quiser

 

Após o primeiro contacto com a substância a qual Mafalda Veiga se identifica, e provar da pluralidade hidrante, qual seria o próximo passo a seguir? Parece-nos indicativo, cada vez mais uma integração com o núcleo da substância em voga, para reafirmar sua própria constituição na constituição da matéria. Experimentar-se na matéria, que era antes renegada. Nesta integração, agora, Mafalda Veiga vê-se e se reconhece num Charco, onde a atmosfera angustiante da água molha a fantasia:

 

Se chover na madrugada em que eu procuro o meu caminho
Será vaga a nostalgia que outro charco faz viver
A canção lânguida e lenta de quem vai devagarinho
Em cada charco uma mágoa que não se pode esquecer

 

Aqui, a metamorfose é continuada, aprofundada e condensada. Para Heráclito, conhecer o mundo não esconde o risco e a dificuldade da pesquisa da natureza. Os que procuram ouro escavam muita terra, mas encontram pouco metal7, ou seja, nem sempre a integração com a fluidez da água, trará os bons frutos. Dessa forma, Mafalda Veiga experimenta outras faces da substância. Primeiramente, ela já se confunde com as sombras internas da matéria que a banha e a envolve. Mais a frente, na sua consciência, narra uma perturbação intimamente relacionada com a inconstância do imaginário da água, com o eterno movimento de busca, com a propriedade germinativa deste fluido:

 

Tenho ideias que não tenho, sentimentos que não sinto
Sou imagem de outra imagem que se fez não sei de quê
Procurando a minha rota, descobrindo o que não minto
E o que minto atiro fora para nascer outra vez

 

         Além disso, a noção de obra acabada é negada; não há determinação; através da negação, afirma-se uma reconstrução contínua sem finalização; afirma-se o regime sintético do imaginário. Na tentativa de se alcançar a estabilidade, na busca de um termo que lhe assegure uma definição fixa, ou seja, enraizada, o máximo atingido é a de um vegetal regido pelo destino das horas:

 

Não sou forte nem sou pedra nem sou muro levantado
Nem sou obra que se erga pouco a pouco, tempo afora
Antes sou como uma ideia que se despe do passado
Uma planta enraizada na sina da sua hora

 

         Mafalda Veiga desfecha esta canção consagrando-se água. Um vegetal que não pode se movimentar por estar enraizado e tem que suportar, imobilizado, a liquidez do tempo? Ou seria um vegetal enraizado no próprio solo temporal, que flui, se move, e leva o vegetal consigo? Está claro aqui, que esta liquidez não é da família das águas claras. Vem da água de um charco, mais profunda, sombria e densa, por pequena que seja a poça, do que a imensidão de um mar ou de um rio tranquilo e límpido. Como diria Bachelard, basta uma gota de escuridão para alastrar com angústia um oceano claro8:

 

Se chover na madrugada em que eu procuro o meu caminho
E eu cair em cada charco mas seguir por onde vou
Deixarei de olhar no rio de todos mas tão baixinho
Porque é mais profundo o charco onde o que vejo é o que sou

 

Eis o instante em que aquele ser introspectivo materializou-se. O instante em que o sujeito poético infante cresceu. O momento em que aquela compositora sonhadora, que se resguardara na doce ilusão dos sonhos, amadureceu na leitura do mundo onde tudo flui9. Em outro momento, ao vasculhar o problema do mundo físico, Heráclito o colocaria em unidade essencial com o problema do eu; e toda a conquista naquele campo se lhe apresenta, condicionada a investigação dirigida para si mesmo: estudei-me a mim mesmo10. Assim, o drama líquido revelou-se para a nossa autora. A matéria deixou-se valorizar no sentido do aprofundamento, onde aparece como insondável, como um mistério11, para a nossa Mafalda. Uma treva hidrante manifestou, ainda que parcialmente, a sua insone personalidade. Mafalda entrou na vigília do mundo real. Agora sim, Mafalda Veiga, já é hora de despertar para devaneios mais profundos.

 

 

 

Notas