*

 

manhã de bruma
a imobilidade
de uma tempestade de plumas

 

 

acidente de trânsito

águas-marinhas
namorando
cacos-de-vidro

brilhos mesmos

 

*

 

cigarras geladas
uivam ao meio-dia

guinchos

embriagando
os últimos ventos
da paisagem

 

 

alto-relevo

as falhas da calçada aninham
as primeiras plumagens de outono
já castanhas, mesmo não sabendo piar
quando pisoteadas pelo vento

 

 

fibra ótica

olhos cerrados para ouvir
a caixinha de música
com todos o dourados
barrocos possíveis
sepultando a bailarina
enquanto aguardo
a chamada telefônica

 

*

 

mercúrio
passar das medidas

estação de ácidos antigos
coração dormindo

para acreditar nas pérolas

 

*

 

pele a incrustar-se em bronze
dia a tornear um tacho
sol das onze

 

 


retardatário

felizes estigmas
dos ventos de outono

se deixam
levados

álamos sejam louvados
mesmo que varridos
pelos garis

 

 

fonte

tirar de letra
tirar da letra

 

 

reforma

a casa
agora sem floreiras nas janelas,
mas naturezas-mortas nas paredes
de impenetrável argamassa

 

 

múltipla escolha

o chá da xícara de mergulhos acabou
as paredes nuas nos denunciam
nossos olhos não têm mais para onde fugir
me refugio, então, em tuas pupilas
até que um varrer de cílios
recomponha o instante

 

 

cenário para um contador de histórias

todo bilhete é pista emocional
medula arrepio
"é o lobo!"
"é o lobo!"

chá
romancistas franceses
castelos de cartas

o sol é um colírio mágico

 

*

 

lua
ver-se do céu
ilhada em poça

poço
ver do fundo
a luz do que posso

 

*

 

dentro do canto de um galo
que ronda a casa — soldado
cabe a manhã de domingo
a aurora atrás da bruma
o relório parado

 

 

casa

nossa casa é o melhor lugar do mundo
e por não estarmos sós no universo, e por estarmos
tão sós no universo, busco o melhor do mundo
em outras histórias.
mesmo no desconcerto, entre o cheiro de lençóis alheios,
um sofá antigo, único habitante de uma enorme sala vazia.
a vida, vem de uma maçã,
que mora há dois dias numa bolsa e logo mais será um beijo.
a insônia aposta com a madrugada
quem ouvirá primeiro o despertador.

(imagens de lena johansson e alan chambon, respectivamente).

 

Jane Sprenger Bodnar (Curitiba-PR, 31/10/1963). Formada em Comunicação Visual pela UFPR. Lançou em 1991, o objeto-poético Homeopoética — poemas em cápsulas — com os poetas Rollo de Resende e Fernando Zanella, hoje em sua 4a. edição. Textos publicados no extinto jornal Nicolau (PR) , Correio de Notícias (PR), Mulheres Emergentes (MG), Revista Textuale (Itália) e outros. Premiada diversas vezes no concurso Helena Kolody de Poesia além de outros concursos estaduais. Colaborou durante dois anos com o jornal A Notícia, de Joinville-SC, na coluna de poesia "Aprendiz de Jardim", além crônicas semanais. Em 2003 publicou o livro infantil Luísa Cuidadora de Planetas (edição de autor).