Descubro o vinho

Descubro o vinho

do teu corpo,

Doce

Pássaro,

Que me trouxe:

Motivos para sonhar.

      Vinho,

Ave de aroma

       Doce,

Que vinho não fosse:

Assim mesmo

Viria me embriagar.

 

 

 

 

 

 

Talvez eu não mais a encontre

 

Talvez eu não mais a encontre

e seja desta forma o tempo nosso açoite.

Esvaziada a ampulheta tida como minha

e a tua ainda siga respirando outros caminhos.

Quem sabe a partida ou o esvaziar não seja linha

um círculo enredado em nossa forma de avistar os dias.

quem sabe eu queira um recomeço e lance as mãos para

contar o tempo com o inverso da ampulheta. Areia e silêncio

desenharão o estar de minha mão em teu detido tempo

ou no reter da esperança de alheias vidas que interceptam

o roçar suave da solidão que tenho na carícia que anseias.

 

 

 

 

 

 

 

Interruptor

 

As dores de uma vida:

Não avisam.

Arrebatam.

Paralisam.

Quero lançar-me,

De sobreaviso,

Cuidar-lhes,

Interromper

A sinistra

Forma,

De nos açoitarem.

 

As dores de uma vida:

Cristalizam.

Matam.

Pulverizam.

Quero pedir,

Que outra vez,

Não me assaltem.

Interruptor

De dores

Me desejo.

 

 

 

 

 

 

 

Novelos e gatos

 

Fatos, não são, brincadeiras.

As brincadeiras, outros atos.

No, artefato das asneiras,

Um sonoro, quebrar de pratos.

 

Novelos, não são, gatos.

Ainda que, enredados,

Parecem, eu diria, mosaicos,

Suas brincadeiras, já são fatos.

 

 

Te vejo, observar-me.

Por quanto tempo, ainda,

Estarei eu, a enredar-me,

Na dúvida, que tomo como minha?

 

 

(Do livro Instantâneo enlace)

 

 

 

Súplica

 

Me ames.

Farias

o inevitável

se o amor ponderado

não fosse

o imponderável

se o amor

não fosse

o temporário

se o impossível

não fosse

o necessário

se meu sempre

não fosse

o embora.

 

 

 

 

 

 

Raspagem

 

A espátula da arte é o olhar.

E este a pedra bruta.

Há o tempo de lapidar...

forja do espelho na indissoluta

maneira de ora perceber

ora calar.

 

 

 

 

 

 

 

Quem sou

 

Na metade da vida,

Sou homem, cantor e ferida.

Na outra,

A águia em mim

Devora-me os olhos

E, sou céu, nuvem e o sem-fim.

 

 

 

 

 

 

Vertical

 

Nem todo silêncio é calado

Nem todo salgado suor

é sagrado;

 

Nem todo calar usurpado

É consentir;

 

Nem todo que suga

o faz

em meio à fuga veloz;

 

Nem todo que ri

É um de nós

Mas todo que chora

Um dia já foi.

 

 

(Do livro Nem todo o silêncio é calado)

 

 

 

 

Apesar dos pesares

 

Passa, passo por passo,

Passa, passa, fica,

Fica, poça passo,

Passo quando fico

 

Fico a fitar-te.

Fito, sem teu grito,

De forma, que não passe

A gritar-me, grito

 

Passo a deixar-me

Íngreme.

Escala-me

De silêncios, meus abismos.

 

 

 

 

 

 

Outubro

 

Este é um livro.

Até tem nome.

Então, digo, repito,

Outubro, não há de faltar-me.

 

Se haverão flores

Ou folhas secas.

Outubro, quero pisar-lhe,

Suavemente,

Não há de faltar-me.

 

O meu amor, por este Outubro,

É o Outubro, do meu amor.

A senda do que vem.

A fenda por onde vai.

A secura por florescer.

A florescida por secar.

 

Outubro, aonde vais?

Quem somos, dois ou mais?

Meu pés e somos nós.

Não há Outubro que eu perca.

Somente o antes e o depois de mim.

 

 

 

 

 

 

*

 

Há silêncios bem-vindos,

outros indecifráveis,

alguns polidos e esperados,

há os indesejáveis.

Há silêncios de hora inteira,

outros de uma vida a devorá-la.

Há os de esperar-lhe. Há os de desprezar-lhe.

E se tanto silêncio há... Há o de silenciar-me...

Para escutar o que seu silêncio diz,

além das palavras silenciadas.

 

 

 

 

 

 

Meninas e Meninos

 

Sou de poucas palavras.

Falo por demais.

Calo, as que falavas.

Falo até calar.

 

Canso de cansado.

Canso por cansar.

Falo e já não falo.

Falo que não falas.

Falo que não calas.

Fala que não falhas.

Se falo, falho.

Se falho,

Por que falas?

 

Se calas,

Não quero.

Se falas,

Não quero.

 

Por que calas?

Por que falas?

 

Aço, meu silêncio.

Aço, teu falar.

Aço, fundo corte.

Aço, um brilhar.

 

Fala-me

Átrio e ampulheta:

Nosso falar.

Nosso calar.

 

Calado falas.

Falando, calas?

Calada, falo.

Falando, calo?

 

As flores várias.

Sigo a espinhar-me.

 

 

 

(Do Livro dos silêncios)

 

 

 

 

(imagem ©gk & vikki hart)

 

 

 

 

 

 

 

 

Júlio Almada (15/06/1969, Curitiba-PR). Poeta, escritor e professor universitário. Publicou O livro dos silêncios (Editora Corifeu, 2006. Tem alguns livros inéditos, dentre eles, Instantâneo enlace (poemas, 2003) e Nem todo silêncio é calado (poemas, 2005). Mais em sua página pessoal: www.julioalmada.net