Réstia de
luz
Ainda ontem, entrei sem querer naquela
pensão
barata (mas limpa e asseada )
onde nos encontrávamos felizes
nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
eu juro. Procurava uma
peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando
dei por mim, estava bem na porta.
Quem havia de resistir?
Na penumbra furtiva do corredor,
o coração
descarrilou ate o quarto
17 que me aguardava calado como
uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca;
um criado mudo;
duas cadeiras puídas de palhinha; e a
bacia de
louça cor-de-rosa em que te
lavavas, depois, ocultando teu
gesto,
constrangida, para não te banalizares —
tua aura de
deusa profanada por
essa intimidade prosaica.
Quanta vez, este teu recato ante a
promiscuidade me
excitou, te enlacei
por detrás e te trouxe de volta ao
tumulto da cama! Tu sempre resistias.
Você é louco, menino?
Ele chega cedo
do trabalho. Olhe aquela réstia de luz
na
persiana como engatinha sorrateira
a caminho da noite. Mas
resistias um
resistir indeciso, querendo mesmo te
entregares,
e desta vez, com mais volúpia.
É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes
depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu
jeito recatado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi
num
desses dias em que sentimos a terra
tremer embaixo de nós
e até pensamos
que era o trem.
Lá estava a réstia de
luz que engatinhava pela
persiana,
prestes a engendrar a noite. Não sei
se foi ele, se
fui eu ou o que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.
Faz bastante tempo que nos vimos. Foi
no meio da
rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma
coisa,
conversar. Era um final de tarde. Tinhas
pressa. O que
a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, em pé,
diga.
Eu tentei reviver em minhas trôpegas
palavras
nossos momentos de esplendor; cerzir
retalhos do
passado como uma colcha de
delírio. Tu ouviste calada e no
final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um
sorriso didático e nada teu.
Com um ar preocupado, consultaste teu
relógio e
foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo
curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era
outra pessoa. No
quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz
desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da
tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da
eternidade.
Nossa Senhora dos Pecados
Não a vós adoro,
Nossa Senhora dos Pecados
mas
aos meus pecados.
Por eles vos tive; e neles.
Por eles vos vi
em
Rafael.
Murilo
Angélico
Tintoretto,
nos vossos braços um menino lascivo.
Nossa Senhora
dos Pecados sois;
dos meus pecados sois
os meus pecados
sois
meus
sóis.
Ode Estática
Olha, Denise, se tu fores ao passado,
anos
quarenta, lá no interior,
haverás de estar comigo e
contigo
naquele colóquio que jamais esqueço.
Se bem mereço,
estaremos juntos no quintal.
Lembras-te da hera no muro
alto
ao pé do qual brincávamos em horas preguiçosas?
Dos
canteiros de dálias, chapéus de couro
e margaridas amarelas? As
sombras da tarde,
obedecendo aos telhados e cornijas,
traçavam
formas imprevistas no cimento —
tu mostravas a mim esses
desenhos
que descrevias em contornos de intensas
fantasias.
Como as nuvens redondas num céu sempre
azul de
sertão. O mundo era calmo.
O tempo lento. Lembro-me do
vento,
açoitando as folhas pequenas de um pé de
sapoti.
Lembras-te também? Vejo tudo como numa
fotografia.
Vês? Tudo arrumado como a fazer pose
para a câmara
de nossos mais recônditos refluxos,
olhos sutis dó nosso
sentimento
(alcançam muito mais que um telescópio).
Prefiro
crer que lembres. Não sei a quantas andas,
talvez casada com o
Dr. Fulano de Tal, rica, gorda,
quiçá adúltera; ou tocando piano
a tarde toda
como uma santa. Não importa. Importa é que
em
alguma célula de teu cérebro essas coisas
haverão de estar
arquivadas e por um motivo
qualquer serão tiradas do
inconsciente,
nem que eu tenha de ficar famoso e meus
versos
de correr o mundo. Lembrarás então — como
eu me lembro
— daquele menino tímido:
tu me dizias que eu era bonito; até
acariciavas
meu cabelo mas minha timidez não se dissipava.
O
primeiro dia em que nos beijamos,
escondidos atrás do tronco
bojudo de uma mangueira,
foste, tu, Denise, que tomaste a
iniciativa,
premindo teus lábios contra os meus,
nada mais que
um leve roçar de peles curiosas.
E tanto afligiu-me a consciência
de um ato pecaminoso
que Domingo na Igreja da Matriz tudo contei
ao padre.
Tu deves-te recordar pois no mesmo dia, o teu
recato
impediu-te de ir ao confessionário — assim disseste
a
mim com um sorriso sutil — como eram os teus.
Mas nosso beijo
apressado abriu caminho
a caravelas nos mares dos sentidos,
descobertas
de cheiros e de gostos; de tatos e contatos; de
visões.
Tudo escondido. Lembras? Do esquisito sabor
de
cumplicidade e de segredo? O mundo
ignorante derrotado num
simples trocar de olhos.
tua mãe na sala tricotando
ingenuidade
e nós dois na sala de costura atrás das
cortinas,
os corações palpitando de medo e de emoção.
Tu, mais
velha do que eu um pouco,
incentivavas meus avanços nos
territórios secretos,
onde se esconde um cobiçado tesouro,
jóias
de nome estranho; e correspondias com carícias
que eu
nunca imaginara. Mais do que eu,
tu querias tudo, todo o encanto
que esse esconso
universo a nós dois ofertava. Não temias
os
temores que temem as mulheres tementes.
Desejavas todos os
mistérios e surpresas
que colhíamos na penumbra azulada daquela
sala de costura. O primeiro dia em que te vi sem roupa
foi
tão solene que até hoje nunca digo nua.
Eu me lembro. Era
segunda-feira. A tarde descambava.
Nós dois na sala de costura.
Tua mãe cochilava.
Tu já beiravas os doze anos, onze tinha
eu.
Não sei qual demônio de mim se apossou.
Pedi e me negaste,
primeiro com pudor;
depois com esquivanças, rudezas e
desdém;
nervoso, eu insisti, com rogos e com súplicas;
e pouco
a pouco tu calaste, sem me responderes:
numa ousadia, da qual não
suspeitava,
fui doce e vagarosamente mobilizando
laços,
presilhas e botões — ela não resistiu, como
eu até
esperava. Súbito fez-se o encanto — Sus — era
um fascínio; eu
quis gritar, ela tapou-me a boca.
Ah, nesse dia começou uma era.
Ah, nesse
dia eu descobri um mundo.
Desde os cumes pontiagudos
dos teus seios,
às colinas arqueadas do teu dorso,
até as
penugens macias de teu vale —
tudo banhado pelo azulado da
penumbra
no ambiente lascivo da sala de costura.
Um verdadeiro
quadro de Velásquez,
se Velásquez pintasse meninas nuas.
Se tu
fores, pois, ao passado, minha Denise
de então, anos quarenta, do
interior
que sempre falou mais alto em mim do que capital,
se
tu fores lá como espero, renovas nossas juras
que já são eternas;
abraça-me e me beija
detrás daquela mangueira; me leva pela mão à
sala
de costura e permanece nua, cravada na distância
dos
acidentes breves, dos odores doces,
na visão parada do teu corpo
tenro
que é o corpo ausente em que te procuro
em todos os
caminhos, pelo mundo todo,
em todas as mulheres.
O Enfado de Tereu
Me irrita a paranóia dos pássaros
quando ruflam de
mim
fuga e aflição
me irrita.
Jamais ousaria caçá-los
para me deliciar
com a frágil obscenidade
de seus
cadáveres
dourados ao fogo com tempero e requinte.
No passado,
confesso que já consumi
dessas que se caçam perdizes. Mas
foi
há muito tempo. Jamais mastigaria
um lírico colibri
Ou
este bem-te-vi
que fugiu de mim agora, tão amarelo.
O Barco Bêbado
Mostrou o poema a seu amigo,
com a certeza
adolescente
de que ninguém, na França,
poderia estar fazendo
igual.
(E, provavelmente, estava certo)
Depois, mudou as armas; mudou
de ramo. Arranjou uma
mulher.
E se acabou,
como a esfuziante flor do hibiscus
que
dura um dia, murcha e cai no chão.
(Há coisas grandes demais para os dezoito anos)
The Small Wee Hours
É nas horas pequenas, mais pequenas,
começo e final
de cada dia,
que mais vibrante vem a mim,
vibrando, a tua
imagem,
cor de sonho, resgate
de um passado de esplendor.
Corre o dia. Cresce a luta.
Cruzam ares e
mares
os petardos invisíveis
do amanhã
que se armam
hoje
e hoje são despedidos.
No barulho e fumaça
da cidade
assaltada
de pavor e sacrifício.
Só nas horas pequenas, mais pequenas,
é que tua
imagem vibra
e me estremece.
Poema Desnatal
Será Natal também em Kabul
quando chegar o dia. Mas
pouco
importa. Será Natal. A fome e a
miséria prosseguirão o
seu presépio.
Não importa. Será Natal. A solidão
estará
solitariamente só e solitária.
A solidão estará tudo menos
solidária.
Mas será Natal.
No Brasil, em Portugal.
Na Groenlândia, na
Tailândia.
Na Nigéria, na Libéria.
Na Desunião
Soviética.
Na paranóia norte-americana.
Na prosperidade
germânica.
Na voracidade nipônica.
No imperativo
britânico.
No desterror do golfo.
E no horror supremo do lugar
onde o menino nasceu —
Pipocam no ar os petardos,
rasgam céus outros
cometas,
matracam metralhadoras,
balas assobiam.
E em cada milímetro do solo sagrado
explode uma
bomba
em comemoração pelos mortos de Belém.
Em verdade não ficou pedra sobre pedra,
nem há de
ficar. Está escrito.
Quando os peixes se dispersam pelo
mar,
dificilmente nadam para trás.
A roda roda para trás e eis a hora do Aquário.
Do
Espírito Santo. Ruáh. De todas as
confluências. E será sempre
Natal
em todas as partes deste aprazível
planeta, mesmo
naquelas em que
os meninos de Liverpool são mais
conhecidos
que o menino de Nazaré.
Será Natal. Nascerá um menino.
E nele, por ele, com
ele nascerão
todos os meninos que houve, há e haverá
de
nascer. Nascerá um menino,
determinação segura de
prosseguir.
Ninguém sabe. Nem para onde.
Nasceu, viu e
venceu.
Venceu o tigre dente de sabre.
Venceu o gelo, a
inundação.
O ciclone, o terremoto, o vulcão.
Venceu os ares,
os mares, a noite.
Venceu o outro. Venceu até a si mesmo
(sem
constância, todavia). Mas lutou
contra suas certezas, essas
mesmas
certezas de que é feita sua ignorância,
seu medo. E
venceu-as. Venceu o medo
quando se fez imperioso e
necessário.
Veio de longe, do escuro, esse menino,
essa menina
a lhe enxugar os olhos. A
lhe dizer o que ninguém sabe nem
pode
dizer. A lhe dar o colo, o sexo, o útero
benfazejo, o
seio farto, e a palmada
na hora certa da traquinagem errada.
Menino e menina os criou. E nascem
todos os dias em
um Natal cotidiano.
Nascem, vêem e vencem.
Em mais uma etapa
da aventura que
começou quando, atraído pela lua,
um ser
emergiu do mar e rastejou pela praia,
atraído pela lua, périplo
pelas estrelas
de meninos e meninas
a nascer todos os
dias
em ininterruptos Natais. Amém.
Normal Ode
A poesia é a loucura organizada.
Nunca apenas a
loucura. Seu discurso caótico.
Seu desenho anárquico. Geografia
convulsa
de ignorância e desespero. Suas
lucubrações
vertiginosas sobre todos os absurdos.
Seu abraço
grotesco. Sua sala de estar
ornamentada com excrescências
rococós.
Seu Horror, sua Ira, seu Destempero, sua Degola.
seu
tempo que se desenfreia nas cordas
febris de violoncelos
desafinados.
Sua constante, surda, pertinaz, traiçoeira e
laboriosa
escalada até os píncaros nevados do Poder,
de
onde excrita Onipotência,
urina fel e comanda com a mão
direita
os que, em transe, os cabelos revoltos,
soltam pelos
campos e mares
os Cavalos do Medo e do Terror.
Donzela
sinistra que crispa nos olhos
os projetos, símbolos e
instrumentos da Devastação.
Eia Loucura! Eia Insensatez! Eia
todos os caminhos
que se enrijeceram para transformar a
Natureza
em Desrazão quando a loucura vê a Razão
no seu
espelho e imediatamente abre o Dicionário
pensando que encontrará
a Poesia
como um ovo de macuco num ninho de colibri.
Falo da
loucura e de seus irmãos mais gêmeos e fortes,
os Desmandos da
Razão.
Nunca das afecções da mente
identificadas pelos
psiquiatras
que sabem, com suas exceções, domá-las com
álcoois
ou sais extremamente simples. Talvez
fale dos próprios
psiquiatras, empolgados
pela possibilidade de entender o sistema
límbico
quimicamente; frustrados por não poderem
contrariar o
livre arbítrio
do ácido desoxi-ribo-nucleico
com a onipotência
científica do século XIX
que se nutre soturnamente
da
ingenuidade de Kant enquanto o rejeita.
São eles, os empertigados
psiquiatras,
os que desejam à socapa que todos nós tenhamos
o
fígado no cérebro,
para nos injetarem extrato hepático
que de
nada adiantaria
mas pelo menos não teria efeito
colateral:
Salve, salve, três vezes salve
esses aplicados
Sacerdotes da Loucura,
na mão esquerda uma seringa
hipodérmica;
na mão direita um tratado de Farmacologia
como se
o ser humano fosse apenas
esse emaranhado físico-bio-químico que
eles não
entendem ou uma simples máquina de desejar
como
querem outros. Isso tudo é Loucura.
Com a Loucura se faz
psiquiatria
e se vive muito bem dela.
Mas ninguém faz poesia
só com a Loucura. Nem
com a Insensatez. Muito menos com a
Razão
caminhando numa reta inexorável
de onde nem a desvia a
Morte, como o búfalo
mesmo ferido. Nada é reto.
Opte-se pela
reta e no máximo chegar-se-á a ser
um poeta concretista, assim
mesmo, em caixa baixa,
para usar seus códigos contra
eles
essas serpentes que criaram
e que hoje lhes mordem sem
que o percebam.
A redundância, por vezes, não é defeito,
dizia
um célebre publicitário alemão,
ou nunca é — convence, suaviza,
refresca, revigora.
Tudo que sei dizer. Falta-me
uma boa
memória para números e nomes.
E as pessoas só dão
credibilidade
a quem sabe manipular números e nomes. Eu
mesmo
nunca contei aquela história do filósofo Zen
que
publicou um livro no Ocidente,
com o prefácio elucidativo de
Jung
e deu uma entrevista nos jornais da época,
dizendo que
Jung não entendia nada de Zen.
Quem entende? Eu? Eu não. Eu não
entendo
outras coisas, quanto mais
de Zen Budismo. Imaginem.
Logo eu
que, quando estou com fome preocupo-me
com os
carboidratos justamente porque
não quero ficar bojudo
como
esses monges orientais
que ficam milionários nos Estados
Unidos,
pregando abstinência dos bens materiais
e de toda a
carne, e suas discípulas
retribuem iniciando-os nas delícias
supremas
dos chocolates suíços e do "strawberry cheese cake"
;
logo eu que, quando estou com sede bebo vinho
branco
brasileiro ou chileno — amaldiçoando o bolso
porque não
posso beber um Chateau Laffite,
safra 1972. Logo eu que, quando
estou com
vontade de escrever um poema
tenho que dar aula de
literatura numa universidade
federal que nem sabe se isso existe.
Aula de literatura.
Como se alguém pudesse, em verdade, dar
aula
de literatura. Nem que fosse para justificar
a existência
do barroco baiano.
Mas olhem, antes que me esqueça. Nunca
contei
essa história porque não consigo me lembrar do nome
do
engenhoso filósofo Zen. Mas é isso mesmo.
Até Freud não explicou
nada.
Jung mesmo, ele nunca entendeu e incinerou
seu
pensamento à luz de preconceitos científicos
que hoje são
execrados pela ciência. Como fez
com Reich que não teve para onde
correr.
Morreu só, exilado em si mesmo.
Como todos os gênios.
Freud nada explica.
nem sequer os que forjaram metáforas
fulgurantes
em cima de suas conclusões precipitadas
quando não
levianas. Quem melhor
elaborou seu pensamento e dele fez
poesia,
ele simplesmente desdenhou
"desculpe, Monsieur Breton,
mas nada entendo
de literatura; como o senhor não entendeu
meu
conceito de Inconsciente". E agora?
Que será de milhões de
palavras drapejando no papel?
Que será de milhões de telas
penduradas nos olhos?
E tudo o mais? Hein? Que será?
E foi
justamente esse pesquisador lotado em Viena
que tentou tapar os
buracos da alma humana.
Dá pra entender? Ou é mesmo
Surrealismo?
Para mim é apenas um pequeno capítulo
da novela
do Absurdo. Ninguém
explica nada. Não há o que explicar. As
coisas
são o que são. Convém, todavia, frisar
que sou apenas
um funcionário da Literatura
e que nunca fiz mal a ninguém.
Mesmo
quando belisco a pele por vezes sensível
de algum
Sacerdote da Loucura.
Sempre quis fazer poesia,
organizando
todo o caos que já encontrei
quando cheguei,
desprevenido, a esse planeta azul
que amo como poucos;
organizando assim meu caos
interior, eis o melhor que fiz da
minha e da de todos
loucura, fruto de minha imaginação e
ansiedade.
A flor carnívora desses
versos.