IGUANA, SALMO 69, MISSAL DAS PEDRAS

 

A iguana em meio ao juncal é bom,

o salmo 69 não é mau,

sem ser da mesma linhagem que a do salmo,

aquela em Abiquiu, segundo me confidenciam,

é Georgia O'Keeffe na Casa de Água.

 

Ela vai grafando linhas vazias

no dorso escamoso da iguana.

 

Folheia o missal das pedras,

e particularmente a brisa,

possui a técnica de o fazer,

do missal das pedras,

uma gravura de fino cristal.

 

 

 

 

 

 

CLAROS NOMES SERENOS

 

Georgia O'Keeffe abana moscas,

assídua freqüentadora da Casa de Água em Abiquiu,

vocifera claros nomes serenos.

 

Simplificada a Casa de Água

até ao rigor franciscano de uma gravura de Balthus,

e onde por único adorno,

além de tomos de Xenofonte numa estante de cedro,

há cactáceas em púcaros de barro.

 

A um recanto da Casa de Água,

a ler duas folhas de prosa,

aproxima da talha das abluções

o lado amargo da língua.

 

 

 

 

 

 

O EUCALIPTO DE HOKUSAI

 

No alto eucalipto,      

o vaso com essência de capim silvestre.

 

Quem o esqueceu na altura,

equilibrado na ramagem?

 

Foi Hokusai, sempre que chove nos dias,

inventa um eucalipto na neblina,

 

e, lá no cimo da árvore perfumada,

na fina ramagem abandona o vaso.

 

Se venta, do alto eucalipto cai

um poema com essência d'água.

 

 

 

 

 

 

VISITA À CASA DE ÁGUA

 

Lá encontrei várias de minhas culpas,

umas mais velhas, outras mais moças,

e todas ávidas que eu fosse

ao quarto escuro adormecer

 

na alma sóbria de um copo d'água,

na alma extinta de Georgia O'Keeffe,

que sempre me pareceu

a mais lânguida culpa moça.

 

Entre as culpas velhas,

uma bruxa de mil anos que escurece a sombra.

Esqueci pérola enferrujada

 

na crosta da ostra.

Suntuosa monja com torso de neve,

Georgia O'Keeffe tem o contorno físico da árvore.

 

 

 

 

 

 

LEVO CAPINZAIS D'UMA ÍNTIMA SOLEDADE

(Vaso corniforme)

 

Chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase!

Chovam abrasados no teu gelo!

Esguichos de unicórnio e quintal de cinamomos,

meu amor, minha concha, meu osso de Trakl.

 

Coroada de branca espuma a brisa, barcas o mar,

caixa-de-música o ar e água pura a fonte,

enquanto zaranza o vendaval e o quarto se acalma,

o crisantempo de Georgia O'Keeffe se alucina.

 

E que te orvalhem no jardim dos camaleões.

Durma até, durma, que eu te ressuscito.

E ao adormeceres comigo, sem que me toques,

 

possa a minha árvore branca

oxigenar a pura fonte no pedrento,

meu amor, meu labirinto incrustado de cornucópias.

 

 

 

 

 

 

ABRI-VOS, PORTAS DE OURO, ANTE MEUS AIS!

 

O que adorei até o osso, onde respira?

Ido, dissoluto, se estende ar suave

acima dos telhados da Casa de Água.

No Oldsmobile verde-claro da ilusão

 

passa Georgia O'Keeffe mariscando

portas d'ouro entre duas ondas do mar.

A çankha hindu afugenta demônios,

excita os deuses benévolos.

 

Toda devastação traz o germe de seu idílio.

O coroado nó de fogo e o jasmim

urdem o córrego nupcial.

 

Quassar a raiz das cactáceas no areento.

Na Casa de Água, à sombra de figueiras-bravas,

a barca de Bach nascente.

 

 

 

 

 

 

A PROPOSIÇÃO DE LOCKE

 

Naqueles antiqüíssimos dias de chuva,

em que os eucaliptos meditam cousas longas,

Georgia O'Keeffe deitada sob telhas de barro,

passa os dias com envelhecidos tomos de Arcipreste de Hita.

 

Coberta de barretes de colmo,

salpicada de tufos de saião e lascas de líquen,

a Casa de Água em Abiquiu

se esconde à sombra do alto capinzal.

 

Um dos tomos de Arcipreste de Hita

discute a proposição de Locke a respeito do vaso.

Para Locke o volume e a forma

 

estão realmente no vaso.

Já a cor, aroma, tepidez e frio

não estão.

 

 

 

 

 SE EU MESMO FOSSE O INVERNO SOMBRIO

(A cisterna — Opus 1)

 

 

            "Eu ouço a fonte dos tontos.

            Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais

            dentro dele".

            (Manoel de Barros)

 

 

Caí na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer

para escutar mel nas ostras,

para escutar a fonte dos tontos,

para escutar o sumo solar.

Consulto o relógio da corrente:

quadrado branco de fino vidro.

Aqui na cisterna tenho orgias de latim

e sou virgem de mulheres.

Meus olhos cobertos por vidros fumados,

de aros muito grossos e talvez prateados.

A cisterna mormacenta sufoca,

enquanto rememoro as cavilações

daquela noite de runas que vaticinou:

eu só poderia clarear o inverno sombrio,

se eu mesmo fosse o inverno sombrio.

 

 

 

 

 

 

ESTA É A CONFIANÇA QUE TEMOS EM DEUS:

SE LHE PEDIMOS ALGUMA COISA

SEGUNDO A SUA VONTADE,

ELE NOS OUVE.

(1 João 5, 14)

 

Pés de ouro equilibram-se em peixes.

Inciput erat verbum: no princípio era a palavra.

A palavra é clarabóia

sobre o pensamento escuro.

 

Jesus cita as antigas escrituras

para sugerir que somos deuses.

Na fontana fria lavar cabelos,

lavar cabelos na fontana fria.

 

Pés de pluma equilibram-se em águas.

Tenho confiança em Deus

e a Ele peço três coisas segundo a Sua vontade:

 

— a força da criança

— a força da poesia

— a força da música

 

 

 

 

 

 

A CHINESA DE CABEÇA PARA BAIXO

 

Penduro a chinesa de cabeça para baixo

depois que a torci, dela vazou água

penduro a chinesa de cabeça para baixo

eu mordo conchas tão finas

a chinesa, de cabeça para baixo,

morde conchas comigo

a brisa esvoaça a frágil chinesa

que não entontece mesmo de cabeça para baixo

eu nem diria que ela respira

eu nem diria que ela é morta

a toalha secando ao vento estival:

a efígie da chinesa na toalha de banho

 

 

 

 

 

 

DO LIVRO DE HORAS DE SÓROR DOLOROSA

SANTA CLARA DE ASSIS

 

Eu não cultivo

pássaros azulados em gaiolas de ouro:

rebebo, sim, o encharcar dos brejos,

aí se me acordo, suspendo uma folhagem.

 

Sob o chuvoso arco do mosteiro

se deu o que se deu — o isto é! —

avanço pela escadaria de pedra para espiar

parada, imersa na luz, Santa Clara de Assis.

 

Eu respiro

o sono tempestuoso das lianas durante o vendaval:

eu sou o ferrão escuro do escorpião eu sou

 

a cantaria barroca e o sino:

queimo com as palavras ferro e brasa

a pele translúcida dos anjos.

 

 

 

 

 

 

A PÁGINA 161

 

Li num pergaminho de astrofísica antiga

que à página 161 de qualquer livro há um grego que

súbito

vira para trás

e

nos

coloca

na palma da mão

uma

pérola

de

ouro

 

 

 

 

 

 

ÁGUA DE CACHORRO

 

Daqui é que se vislumbra

que  o mar é de cachorros d'água

— um encostado no outro —

 

se um latisse

acordava

 

canoas

 

 

 

 

 

 

HISTÓRIA VERÍDICA

 

A gorda e o cãozinho

não esperam outra música,

além da que emana dia após dia

 

do gramofone próximo ao aquário.

 

O peixe se afogou,

a gorda secou uma garrafa de rum,

sentou no cãozinho que dormia no sofá,

 

se atirou do décimo primeiro andar.

 

 

 

MEMÓRIA DE UM COPISTA

 

Eu fui um dos desenroladores de documentos

na biblioteca de Alexandria.

 

Copiei à mão 83 peças de Ésquilo,

os livros de Lívio,

também as "Bucólicas", de Virgílio.

 

Durante o incêndio consegui salvar apenas

a última frase de uma peça de Ésquilo que dizia:

Lapidem esse aquam fontis vivi.

 

 

 

 

 

 

O PEIXE SEM ESCAMAS

 

 

            "Também a luz em si mesma se perde".

            (Octavio Paz)

 

 

A curva irônica de Gauss:

relâmpagos de puro cristal aclaram

os dois jardins da Babilônia.

Um jardim é Quf: capacidade de escutar

a santidade de nossa natureza.

Outro jardim é criatura que ondula cristais sonoros:

o mar grego okeanós.

No ano 1004, em algum palácio do oriente,

dentro do quarto junto do pomar,

o califa al-Hakim proibiu a venda

do peixe sem escamas

e grafitou nos muros escalavrados

um estudo sobre ótica.

O califa al-Hakim convidou para a corte

o astrônomo al-Haytham que seguiu o rastro

da Teoria da Intromissão, de Aristóteles,

— segundo a qual a qualidade do que vemos

penetra surdamente no olho por meio do ar.

 

 

 

 

 

 

ENROLO OS MEUS CIGARROS COM AS FOLHAS FINAS

 

 

            "Se eu soubesse que a chuva só molhava,

            teria ficado mais tempo exposto a ela".

            (Álvaro de Souza)

 

 

Enrolo os meus cigarros com as folhas finas

de um pequeno livro de mortalhas.

Composição para ouvido:

eu preciso aprender a empurrar a chuva

 

até a vidraça onde a chuva quer molhar.

Escuto a nostalgia que a chuva

insiste em esquecer junto à porta.

Mais molhada que o mar,

 

a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas,

desfaz meus cabelos, minha cabeça,

a chuva só deixa intacto o gelo do coração

 

que teu sopro abrasaria.

A nuvem ia recitar uma ode,

mas deu branco na nuvem.

 

 

 

 

 

 

DANÇA HÚNGARA DE BRAHMS

 

 

            "Costumo pensar, então: este é um sonho,

            uma pura diversão da minha vontade,

            e já que tenho um poder ilimitado,

            vou produzir um tigre".

            (Jorge Luis Borges)

 

 

Não sei se sonho com gata ou peixe.

Se sonho com gata sem peixe,

escuto certo murmúrio renascentista

na "Dança Húngara", de Brahms.

Se sonho com peixe sem gata,

viro onda,

espumo,

quebrando-me na aresta do granito.

Se sonho sem gata e sem peixe,

saio das nuvens,

levanto a fronte

e escuto.

Se sonho com gata,

"e já que tenho um poder ilimitado",

ela se torna essa mulher envolta em óleo perfumado

com quem pratico o Kama Sutra.

 

 

 

 

 

 

A DANÇARINA DE SETE VÉUS

 

Prestes a comer o livro do anjo

— com gravuras do século I —

São João decide-se por um cardápio melhor

 

manda chamar

a dançarina de sete véus Anahad Shabad

que é a música sem música

 

ardência de água-viva

 

 

 

[Do livro Casa de água de Georgia O'Keeffe, inédito]

 

(imagens ©freyja | kowa | svetlana makovetskaya | jinju)

 

Fernando José Karl (Joinville/SC, 1961). Foi editor-assistente do jornal de cultura Nicolau, de 1989 a 1993. Entre suas obras devem ser citadas Diário estrangeiro, Travesseiro de pedra e Brisa em Bizâncio.