história 

Na cidade em que nasci
havia um bicho morto em cada sala
mas nunca se falou a respeito
os meninos cavávamos buracos nos quintais
as meninas penteavam bonecas
como em qualquer lugar do mundo
nas salas o bicho morto apodrecia
as tripas cobertas de moscas
(os anos cobertos de culpas)
e ninguém dizia nada
mais tarde bebíamos cerveja
as brincadeiras eram junto com as meninas
a noite aliviava o dia
das janelas o sangue podre
(ninguém tocava no assunto)
escorria lento e seco
e a cidade fedia era já insuportável

parti à noite
embora sem dúvidas chorasse
Fabrício Corsaletti: Nasci em Santo Anastácio, interior de SP, em 1978. Sou formado em Letras pela USP. Publiquei os livros Movediço (2001) e O Sobrevivente (2003), o primeiro pela Labortexto, o segundo pela Hedra (como parte da coleção A Preguiça Editorial). Fiz letras para a banda de rock Barra Mundo. Sou editor de poesia da revista Ácaro.
despedidas de praxe
peixe

Uma carapaça seca
uma armadura fosca
um aquário vazio
um peixe de pó se debate
se desfaz
desaparece
fica só a sensação de sede
de deserto
na garganta

Onde o sol anterior?
mágoa

Esta noite já foi melhor
esta mesma noite única
vencedora do passado
em algum momento foi melhor

Ou meu coração já foi melhor?

volta de santo anastácio

bela e mal vestida
o menino de cinco anos
deita a cabeça na sua
coxa direita e dorme
ela não dá um sorriso
uma lágrima razoável
olha friamente através da janela
e eu sinto uma piedade imensa
por essa mulher,
que confundo com amor
um dia ela também já foi
— à maneira dessas meninas bonitas e alegres
que não me interessam —
uma devoradora de céus

tenso

rolo de arame farpado
tora de peroba
de aroeira
todas as formigas
do couro da minha cabeça
meu queixo
minha mão
meu pau meu punho
meus tensos dentes


Amo aquela mulher
desde o momento
em que a vi mijando
descontrolada em pé

aquela mulher
era o puro amor

antes as águas libertavam
não os olhos de açude

a ruiva molhada
da sala de bate-papo
sumiu