a cidade imaginária
(Poema inspirado em uma parábola budista de mesmo nome)
 

a busca principia e se finda no coração
na longa jornada, dia a dia, se oficia
e ao final nos brinda com a claridão
 
no meio do caminho de minha vida
viajante que sou por sendas selváticas
ouço falar de cidade tão querida
 
com dadivosos tesouros e benefícios enfáticos
sua existência — nutriente da procura
leva-me adiante em ofício tão errático
 
encontrá-la, amacia o ferro-vida que perdura
habitá-la, ultrapassa o mundo-lida já tão lábil
desposá-la, é a felizcidade em sua tessitura
 
se até aqui nada me havia sido fácil
agora verei do que realmente o laço é feito
em nada me adiantou ter sido hábil
 
tal estrada abriga horrores em seu leito
terríveis desertos, terra inóspita e dardejante
falta-me ar, me dá sede, a derrota arde-me no peito
 
corpo em espírito antes tão flamejante
arrefece exausto e amedrontado foge
— chega de tempestades e sol escaldante!
 
queria eu estar nesta hora que consome
a reviver instantes da memória
lugares que vivi e o deleite que me some
 
porém, o sábio mestre da vitória
com hábeis meios de uma melodia
soa o canto que nos leva à glória
 
aquele que conhece o caminho — o guia
presença que em si é a ênfase do tesouro
disciplina o ser e as almas tão vadias
 
em meio ao sofrimento vislumbro o ouro
a imensidão do desejo em seu oásis
a alegria reluzente, as dores em sumidouro
 
o cansaço esvanece — um desenho a lápis
os contornos da dor desaparecem na fumaça
tudo esqueço, retornar ou desistir — jamais!
 
sob meus pés a exuberância se enlaça
revela-se íntegra uma cidade tão fantástica
o paraíso em delícias nos perpassa
 
o guia, com sua voz  sonora e dramática
diz que não,  estávamos no meio da jornada
a cidade é imaginária, pura névoa carmática
 
 
 

lenguaje

 
        aos meus irmãos
 

otero creado de cúmulos
tegumentos enrigidecidos
esencias exteriorizadas
 
depósito antiquísimo
de cosas que no deterioran
 
plástico lleno de esperma
restos que no evaporan
interiores de madreperla
 
cosas no transformadas
en objetos de adorno
 
palabras no específicas
lamelibranquios
lámina de sentidos
 
horno donde se calcina
la memoria
 
fábrica de desmundos
meos de civilizaciones
todo lo que el tiempo
no olvida ni envanece
 
 
 

somenos
 

se no hoje contemplamos o ontem
o que dizer do amanhã que nos almeja?
 
se no tanque afogamos a rã
o que fazer da morte que sobeja?
 
se no vôo a libélula se espanta
o que escrever com o sangue que goteja?
 
                                        (25/11/04)
 
 
 

sambaqui
 
 
aquí en mi samba
caben todos los dolores:
es mi retiro de destierros
suelo de don nadie
depositario de mis errores
 
todos los huesos
sin nombre
 
todos los nombres
sin boca
 
todas las bocas
sin lengua
 
¿qué hacer entonces
con las palabras?
depositarlas aquí
vomitarlas
como se vomita
una buba
 
 
 

hábito
 

habito
este mundo
 
ave del paraíso
sin piernas
 
borrador
que no posa
 
nunca
 
 
 

©thinkstock
 
 

corazón
 
 
aquí
en este lugar donde
el aire enrarecido arde
rehago mi inventario
de sombras
 
aquí
en este lugar como
la hecatombe en mi pecho actúa
dibujo garabatos
en matices
 
aquí
en este lugar cuando
el patio de mi casa yace
se encuentra la matriz
del universo
 
aquí
en el corazón de este lugar
con ojos húmedos a encararme
aquel chico que un día
fui
 
aquí
en este lugar donde
en este lugar como
en este lugar cuando
en este lugar
aquí
 
 
 

yo
 
un ser
atónito como un dios
absorto
 
en mi rostro
hay gotas de un mar
muerto
 
 
 

palimpsesto
 
toda poesía ya
escrita
 
no se equipara
a toda poesía
 
inscrita
la poesía yace
 
 
 

(Versões ao espanhol de Adriana de Almeida)
 
 
 
Edson Cruz é baiano de Ilhéus, poeta e músico, estudante de língua e literatura grega, co-editor do Cronópios e da revista Mnemozine.