PROPÓSITO

Viver pouco mas
viver muito
Ser todo o pensamento
Toda a esperança
Toda a alegria
ou angústia — mas ser

Nunca morrer
enquanto viver

 


DA FINALIDADE DO TRABALHO

Não trago mensagem
na voz

Quando escrevo
é a vida que
exercito
para
que
tudo o que exista
em mim fique
escrito

Por isso não trago
mensagem na
voz

É missão de
quem escreve
apenas eternizar o que foi
                                  breve

 


PREDIÇÃO

Fazer da
busca o
ideal

Rasgar o ventre de
todas as noites
para encontrar
a aurora

O que não somos hoje
é o que há de nos
esmagar
           amanhã

 


SENTENÇA

Convém nos
iniciarmos
cedo
As coisas são demoradas

E não é bom
colher os frutos
quando a boca não
conseguir  mais
saboreá-los

 

 

 

 

MULHERES

Mulheres
mecanizadas
simulam
vozes

De passos duros
e roupas leves
alargam a tarde
de fumaça e
objetivos

Têm pressa — não
sonhos

Mulheres mecanizadas
geram filhos e
criam o
abstrato

 


ERRO

Edifiquei minha
casa sobre a
areia

Todo dia recomeço

 


LEMBRANÇA
 
Aquela casa enorme
me abraçava
 
forte
 
como um braço
aquela casa enorme
 
forte
 
me impelia me
        pedia

 

 
 

UM DIA
 
um dia eu
morrerei
de sol, de
vida acumulada
na convulsão
das ruas
 
um dia eu
morrerei e
não
podia:
 
há poemas
escorregando de meus dedos
e um vinho não
provado

 


UMA SUGESTÃO

Quem sabe indo a
Minas

Lembra

Há um céu farto de nuvens
na estrada levando a Minas
Um sonho se abrindo branco
algodão ao sol de Minas

Quem sabe indo a
Minas

Lembra

Há o embalo dos berços nas viagens

 


UM VISITANTE

Quem escreve
é
um visitante

Chega nas horas da noite
e toma o lugar do
sono
Chega à mesa do almoço
come a minha fome

Escreve
o que eu nunca supunha
Assina o meu nome

 


GABRIEL:


Ouse

Sair da casa do
abrigo

Ao relento
expor

O âmago as feridas
as risadas
Ouse
a dor:

ser caça e caçador

 


ENGANO

afinal
construímos prédios
casas jardins rosas
desabrocharam
trêmulas, afinal fomos
submissos às ocupações do dia
              às estações do ano
              à rotação da terra

Pensávamos ser esta a nossa pátria

 


RIO TIETÊ

O rio Tietê transborda

Sobre seu dorso
escuro
liso carrega
troncos latas. Detritos

O trânsito pára
Ninguém passa
Todos olham o rio
lento submisso à
demasia

O rio Tietê transborda
Devolve

 


AS CINCO CHAGAS

Tenho o corpo aberto
às cinco chagas de Cristo

Tenho a lucidez da agonia
e as chagas de Cristo
afundam
as palmas de minhas mãos

Tenho o corpo aberto alto
espírito me visita viaja
em  minhas veias
Ouça: há voz
nas cinco chagas de Cristo

Eu morro as mortes do mundo
(tenho o corpo aberto)
na lucidez da agonia
alto espírito
me visita
Creia: não é minha a voz que fala
tenho este dom e como estigma
as cinco chagas de Cristo

 


TRANSFORMAÇÃO

Anjo
dá guarda

Eu estou atravessando

Também me empresta
de tuas asas
o vôo

Que eu chegue a nenhum lugar

 

(imagens©ana maria mascarenhas)

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Eunice Arruda. Poeta, autora de doze livros publicados, entre eles: É tempo de noite (1960), O chão batido (1963), Invenções do desespero (1973), As pessoas, as palavras (1976), Mudança de lua (1986), Gabriel: (1990), Risco (1998). Há estações (2003) — selo Programa Nacional do Livro Didático. Pós-graduação em "Comunicação e Semiótica" pela PUC-SP. Prêmio no Concurso de Poesia Pablo Neruda, organizado pela Casa Latinoamericana, Buenos Aires, Argentina. Presença em antologias, com poemas publicados no Uruguai, França, Estados Unidos, Canadá. Fez parte da diretoria da União Brasileira de Escritores. Ministra oficinas de criação poética desde 1984, em locais como a Biblioteca Municipal "Mário de Andrade" e a "Oficina da Palavra" (Secretaria do Estado da Cultura). Coordenou os projetos "Tempo de Poesia/Década de 60" em 1995 e "Poesia 96/97", promovidos pela Secretaria  Municipal de São Paulo. Por tais iniciativas, recebeu o prêmio de Mérito Cultural conferido pela União Brasileira de Escritores/RJ.