Gesto

 

Cada gesto — braços não movimentam

meus pés contraídos pela sua permanência

 

como se você sumisse:

minha nudez teve pressa

 

 

 

 

 

 

Coisas que passam

 

O que passou

renasce

nas coisas que são

 

garganta do vento

cabelo aparelho

lençol travesseiro

jornal corredor

sapato moldura

limão beija-flor

açúcar boné

relógio adesivo

granito café

cimento torneira

livro esteira

metade da beira

 

O que ficou

renasce

nas coisas que vão

 

 

 

 

 

 

Matéria

 

De sobra

metros daquilo que perdi

presentes que sumiram

de presente para além

coisas que seriam para sempre

diluídas na matéria

a inocência perdida

de não saber perder

 

agora é uma conquista

 

 

 

 

 

 

Rito doméstico

 

Ir à padaria

num ritual

de quem escova os dentes

 

sanduíche  bebidas naturais

antes de mim

é preciso organizar a dispensa

pôr a mesa

pães frutas guaraná

 

peço que desliguem o espelho

enquanto sirvo o café

biscoitos leite manteiga

açúcar queijo requeijão

 

a geladeira cheia

retoca minha maquiagem

 

 

 

 

 

 

Segunda pessoa

 

No banho demorado

enumera frases

como quem ouve música

se desfaz

no diálogo da pele com a água

 

não desperdiça segredo

verdade para poucos não existe

prefere a festa

de não saber de nada:

 

quem amadurece

se conforma

 

 

 

 

 

 

*

 

Quando você falta

seu nome

fica escrito

no segundo  travesseiro

 

ele me ensina

que você retorna

quando apago a luz

 

 

 

Cabelos molhados

 

Fala de pés descalços

lê de braços abertos

desenha com os seios de fora

atende o telefone de costas

abre a geladeira de bruços

demora no banho sentada

ri de pernas cruzadas

esquece um nome deitada

beija com o braço esticado

sonha com as mãos no bolso

acorda de unhas pintadas

nasce de olhos fechados

anda de cabelos molhados

pensa com os cotovelos no chão

come de joelhos apoiados

repousa de qualquer maneira

 

 

 

 

 

 

*

 

Instante certeiro

   a flor

     do sono

 brota

    do travesseiro

 

 

 

 

 

 

Septoplastia

 

Ar

que a

narina não

inspira

e quando inspira

não respira:

se esvai pela curvatura

do septo — oxigênio obstruído pelo osso

 

num corte esquemático

o espéculo

reinaugura o nariz por dentro

em duas metades

simétricas

e as narinas agora inspiradas

respiram

a mesma ventania

 

 

 

 

 
 

Pela margem

 

Margem

sem

margem:

 

horizonte

sem

paragem

refluxo

da

viagem

vadiar

sem

vadiagem

 

margem

sem

margem:

 

horizonte

sem

viagem

vadiar

sem

 

paragem

visível

sem

linguagem

margem

sem

margem:

 

linguagem

sem

viagem

sem

paisagem

sem

refluxo

da margem

 

margem

da

margem

 

 

 

 

 

 

*

 

Crer

no

ser

que

em

vo

cres

ceu

ao

con

su

mir

o

esp

elho

 

 

 

 

 

 

O que pontua

 

Carícia

que desem

baraça o ins

tinto da malí

cia

 

(ciúme espr

eita mente zom

ba cora

ção pede a rec

eita) 

 

o resto

vai 

por on

de o qua

dril  pon

tua e o um

bigo ges

ticula

 

 
 
(imagens©guy bordin)
 

 

 

Diego Castilhos Petrarca (Porto Alegre-RS, 1980). Publicou 3 livros independentes — Nova música nossa (crônicas, 1998), Mesmo (poesia, 2003), Via cinemascope (poesia, 2004) — e um livro-xerox, Banda (poesia, 2002). Integrou, por editora convencional, as antologias Contos de oficina 25 (2000) e Poetas de alcance (2002). Venceu o concurso literário Um Olhar sobre Iberê, em 2002, e foi destaque do concurso Revelação Literária Palcohabitasul, na Feira do livro de Porto Alegre, participando da antologia Revelação literária na feira (2005). Publicou poemas em jornais (Zero Hora) e revistas (MTV). Escreve os blogues  Palavrauma (pessoal) e Miralume (coletivo). Colabora com o jornal literário O Casulo. Participa de saraus, compondo, em 2002, o Grupo Vozes da Senzala. É licenciado em Letras.