©brad rickerby

 

 

 

 

AMOR AMOR

derramo assim em sua boca
lábara palavra líquida ardente lava espessa ao fim
luminescente rum leite de sílabas sabor
de duro travo um pouco amarga
eu sei você diria
mas não que apague o último sorriso
e o que me capta o olhar
em que se foram enfim
se foram

lábia de constelações na sua boca
acende

 

 

ANTES DA TREVA OS NAUFRÁGIOS,

angras retinas onde
em mim sangra a neblina in-
tensa em que a noite ancha
                                   se inclina
ao brilho fátuo (sobre) de outros olhos-mina
                         de estrelas-lumes
(mira) onde sobejam
                 escolhos

luz artificial (intrusa) sob a (mesma) neblina
oscila

 


(LÁ) DENTRO

em ti retinam sombras
e a luz-espaço
entre a razão já deslocada
a um deslugar onde há
esperas todas desarrumadas esperas
ilícitas azuis
faustas esperas burilando outras
esperas desmesuradas e
ásperas assim
assim

esperas

 


EXISTIR
 
séquito de naus (súbitas naus) de rizes esporadas a pro-
mover o arresto
inapelável arresto malgrado todo zêlo
e o orbitar da coleção de coisas
despiciendas

 


ANTES DO APOCALIPSE

ao que de dentro da névoa retorquiu
mínimo
impenetrável
o Afogado:
"já não me cripta mais
o que te acende num meio dia de sombras devastadas
onde plantavas simetrias da Verdade
e eu
lívido arauto das estrelas frias
fixas ancestrais orava incréu ao vento peregrino:
ensina-me a passar
ensina-me a passar"

 


RIGOR SECRETO

fiel depositário das horas malsãs
em que me perco e me perdendo tudo esqueço
vou sonegando à vida o vil e injusto preço
que de pagar um dia revelou-me as cãs

um chá amargo e frio acende meus sentidos
e cava no fundo de mim que não tem fundo
um outro abismo onde erram os meus passos de chumbo
nos ázimos dias tão cálidos dias perdidos

quantas estrelas se apagaram nesse abismo
que do mar aziago era o limite impuro
a linha indiscernível traço mais escuro

e nos espaços do soneto em que sofismo
resvalo pelo vício imponho a cerca bruta
da qual o rigor e o som nenhum ouvido escuta

 


INVENTÁRIO DAS PERDAS
 
meus versos são banais e eu negocio
um prazo a mais, um sentimento urgente
mesmo que vá ficar inadimplente
e este meu coração reste vazio.

acreditavam ser a terra plana
acabar este mar de forma abrupta
e novas ilusões que a vida oculta
na palavra que salva e na que engana

(a palavra rejeita a força bruta
o capital, o mercado e outras delícias
que o olho vê e o coração perscruta)

ando correndo atrás do prejuízo e
não sei ainda de fato o que preciso:
de vinho, de ambrosia ou de cicuta?

 


DA DISSIMULAÇÃO

escrevo, é certo, mais para ocultar
faço sonetos não sei bem por que
coloco em versos o que ninguém vê
ou sequer sente, nem quer escutar;

desloco este Parnaso até o inferno
onde vou me danar sem alforria
persigo — cego — o rastro da Poesia
e o que de mim pudera ser eterno;

me oculto no soneto, essa façanha
de todas a menor, a mais estranha
e até ao pensar o faço em decassílabos;

este meu coração que à alma empresto
a ela contamina e, assim, de resto
não chove nem faz sol e a hora é incerta.

 


CARNE DE PESCOÇO

me ancoro na Virtude, amo o Vício
e o Caminho já não me captura.
Perdi o senso e ainda que sentisse
o mal na pele ao largo da Ventura

contra a Natura e em franco desespero
barganharia um tácito armistício.
Largo a Fortuna, a previsão, o esmero
e ando sorrindo aos cravos do suplício.

De fato em nada mais eu acredito
e assim destilo, em gotas, a ironia
quer no lato sentido quer no estrito;

recolho as armas, ponho o meu pijama
e vou sonhar com a Musa, essa vadia
que (há muito tempo já) não mais me engana.

 


INTRAVENOSA

eu odeio sonetos e à mão cheia
despejo mais sonetos por aí
não sei que praga é essa em minha veia
não sei e se soubera me esqueci

vim de apagar-me: o palco é um insulto
a uma alma que habita no sereno
mas o que nego a mim em mim avulto
e ainda que morra afogo-me em veneno

eu vivo em tese e em tese me abandono
me nego e me apago no soneto
como este que me dá ainda mais sono

não sei se escrevo já o que o olho inventa
ou o que a vida trouxer reinterpreto:
qual a palavra que me representa?

 


O NOME DO JOGO
 
...e eis que sigo pistas falsas entre abismos
labirintos de névoas esculpidas como fossem cadafalsos
e caio no breu sem trégua o breu que arranha
o cais bem mais que a água impura onde afundei
meus pés atrás de sombras baças
 
toca-me então o lábio frio e invado inquieto
salas escuras de pedra antúrio e pedra
nácar e pedra onde dormem
os sonhos que larguei na primavera
 
sucumbe agora em mim um vago ardor que amava tanto
e amplia os vastos territórios onde a lua
na luz negra de um destino (cruel?) me iluminava
 
extenso amor sem sombras nem lembranças
que o presente nunca remunera

 

 

 

 

Aldemar Norek (Rio de Janeiro, 1963). Arquiteto, casado, duas filhas — Ayssa e Beatriz —, participa dos eventos Dizer Poesia e Letras Poéticas, no Rio de Janeiro, onde vive. Inédito.