©sguimas [com imagem de dan cross]
 

 

 

 

*

 

 

É preciso escrever

veja só o glamour da criação poética

a folha branca sobre a máquina de lavar

o mijo do cão cego absorvendo o jornal

a cabeça sustentando a mão

o pensamento na ponta do dedo

a bebida sabor artificial de morango —

não contém glúten —

o saco de lixo fedendo muitíssimo

o dia acontecendo do outro lado da janela

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Voltar para o fim

pode ser a princípio, assim, pra quem vê

de longe, um contrassenso

depois de ter andado muitas léguas

a quatro pernas e dois corações

As léguas adiante podem ser

tiranas e solitárias

o passo mais pesado

a carga mais pesada

o caminho mais longo

Voltar para o fim

com um só coração nas mãos

pode ser a única via possível pra seguir

quando não se tem asas

 

 

 

 

 

 

*

 

 

É preciso viver o luto

por aqueles que morreram

e ainda viventes nas nossas

mentes vagam entre os vãos

Deixar doer a humana dor

que rompe entre ruínas

Deixar arder a fenda necessária

Esperar que chegue ao fim

o jogo de tabuleiro

entre Deus e o Diabo

e na Missa de Sétimo Dia

celebrar a perda

do que nunca se teve

 

 

 

 

 

 

*

 

 

É preciso aceitar como troféu

as batatas

E nem era preciso ser poeta

nem sei quando sentença

tão trágica me foi decretada

Lutar contra isso

não tive força

aceitei com a passividade

de um cão cego adormecido

Aí escrevi

escrevi nos cadernos

escrevi no verso

escrevi na xerox do texto teórico

escrevi nos vãos de textos críticos

em bula de remédio

guardanapo

receita médica de psicotrópico

E no final de cada poema

soube que venci e levei pra casa

as batatas

que fritei e comi com pouco sal e

catchup

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Como pode aos homens ser

concedido o contínuo perdão

pelo que chamam de equívoco

enquanto apressadamente

nos empurram sobre

a tez rubra do fogo?

Será preciso queimar até as cinzas

pra renascer como mártir

dessa eterna inquisição?

Será preciso estampar uma cicatriz

no meio da cara pra que sejamos

dignas de uma mísera compaixão?

Será mesmo preciso montar

no lombo duma vassoura

pra escapar da culpa

há séculos impingida?

Não. Não faz séculos. Foi ontem

amarrada num tronco EU-fumaça

subindo aos céus sufocando

as Narinas Divinas

enquanto a deus das mulheres

chora a sua impotência

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Outro dia me disseram

pra não levar a fama sem deitar na cama

Deitei na cama feita sob medida

Deitei e não previ minha cidadela tomada

Troia arrasada em chamas

É preciso

depois de naufragar

Fundar nova cidade

nem que seja a toque de lira

E no descanso, sem fama ou glória

ao se deitar em qualquer cama

Lembrar

ao fechar um olho

É preciso manter o outro aberto

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Não me venham com essa

de que perdoar é preciso

bem que aprendi a oração

mas não sou obrigada a rezar

Eu que não almejo o céu

Ofereço, setenta vezes sete,

a ferrugem do silêncio

perdoai é o caralho

eles sabem muito bem o que fazem

 

 

 

 

 

 

Poesia coisa nenhuma, não mexe com quem tá quieto ou ainda nota de esclarecimento

 

 

Às vezes, não raro, ou quase sempre

nem tudo é sobre nós

é sobre colonização

é sobre imposição pelo poder

é sobre transferência de responsabilidade

 

Nunca acreditei em monarquia

mas se por força do destino

tivesse eu nascido rainha

papagaio seria livre pra voar

e as bestas, ah, as bestas não seriam

usadas como burros de carga

nem comeriam mato seco

na minha corte o bobo seria a realeza

e não gastaria a merda

que artista transforma em ouro

com quem não vale a pena

gastar nem o sopro da bufa

é preciso economizar

 

 

 

 

 

 

*

 

 

É preciso saber quando o amor acaba

como quem sabe a fome

buscar outra palavra melhor

de dizer aos desavisados

num idioma antiguíssimo

Arregalar a boca até a úvula

mesmo sem voz

erguer a mão e apenas

acenar num estreito adeus

 

É preciso saber

quando se vive apenas de morada

em coração alheio

quando o olhar já não é promessa

e apenas reflete a sina dos que amam

quando dois corpos se ladeiam

na precisão matemática de retas

paralelas sem nunca mais

 

É preciso saber

partir é melhor do que

ficar como quem está

eternamente indo

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Saber da solidão das roupas

esquecidas no varal

das que caem e permanecem

sem qualquer umidade

É preciso estar atenta ao tempo

à dureza da vida

quando o amaciante acaba

 

 

 

 

 

 

*

 

 

É difícil entregar-se às águas

quando a vida resiste e persiste e insiste

mesmo com os bolsos carregados de pedra

com um corpo muito humano

programado para perpetuar

Aí a água vem (im) prevista

e alaga tudo dizendo

que desgraça pouca

para os pobres é bobagem

Aí querer afogar-se diante

das misérias do mundo

torna-se um ato ainda

mais criminoso — há quem diga piedoso —

enquanto o outro luta

Quando se luta a luta vã

Vitória é desistir

 

 

 

 

 

 

Tanatose

 

 

Quando se sabe presa

bicho que é bicho foge

é que fugir nem sempre

é correr, se esconder do alcance

das vistas do predador

pode ser desencorajá-lo

se fingir de morto

num estado estático

diminuir o ritmo cardíaco

feder feito carne

em decomposição

escrever um livro

 

 

[De Tanatose ou breve estudo das necessidades do fim, Urutau, 2024]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Thaise Monteiro é poeta, atriz, palhaça, vocalizadora de poesia, produtora e cantora. Nascida em Campo Grande/MS, é goiana, desde os dois anos de idade. Fundou, em 2006, a Cia. de Arte Poesia que Gira, em que realiza atividades como atriz e desenvolve o projeto Bibliofuscoteca. Atua também no audiovisual e em outros grupos teatrais da capital goiana. É professora e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Autora de Modus Operandi (RF Editora), Equinócio(Autopublicação, vencedor do Prêmio Hugo de Carvalho Ramos),À moda de 22(Patuá, vencedor do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922, oferecido, em 2018, pelo Ministério da Cultura), do livro-objetoA casa da rua 1013(Mondru, 2ª ed), Sobressalto quedas e outros voos (Patuá) e de Tanatose ou breve estudo das necessidades do fim (Urutau).

 

 

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