Solidão

 

 

Olhos de um cego

dentro da noite

dentro dos olhos

de outro cego

 

 

 

 

 

 

Grito

 

 

Um corpo é um cárcere

violenta o que somos

e o que não somos

até onde não estamos

Um cárcere onde

nos debatemos

contra o sangue

contra os ossos

Um corpo é um grito

de costas para a morte

 

 

 

 

 

 

O anjo e a orquídea

 

 

a Rosana Piccolo

 

 

Animal de assombros

a tua nudez

orquídea selvagem

acende os relâmpagos

 

 

 

 

 

 

Despedida

 

 

Nunca houve

despedida mais funda

mais violenta

que a tua

 

Era como perder o pai

a mãe

os irmãos

os filhos

os amigos todos

de uma só vez

 

 

 

 

 

 

Epifania

 

 

Em cada linha do teu corpo

o deus pousou a face

Todos os teus poros

podem ver os milagres

 

 

 

 

 

 

Aparição da poesia

 

 

As palavras voam

contra muros

esfacelam-se

contra espinhos

 

Na página branca

permanece apenas

uma réstia de sol

sopro de pólen

as duas mãos

fraturadas

 

 

 

 

 

 

Rapaz de sete corações de Lorca

 

 

Siete corazones tiengo

Pero el mio no lo encuentro

"Canción del muchacho de siete corazones"

Federico García Lorca

 

 

Um rapaz de sete corações

os cabelos esbatidos pelo vento

sete rosas tatuadas no torso nu

 

Dele escorre a fúria do sol

dele transborda a vida

amplitude da luz da manhã

 

Um rapaz de sete pétalas nos lábios

sorriso rasgado pelo azul

carrega um punhal entre as mãos

lâmina de sangue e mel

de onde jorra a plenitude do mundo

 

Um sicário que se fez menino

capaz de estrangular a noite

de assassinar com um afago

as sete noites de minha agonia

 

Um rapaz de sete rubras rosas

pétalas desarvoradas pelo mistério

corações tatuados no fogo

 

 

 

 

 

 

Selvagem aparição

 

 

Foi inesperada

a devastadora aparição

 

Nem o medo

muito menos

a solidão

poderiam proteger-me

de tamanha intempérie

 

Eu que desde há muito

só sabia soletrar

o sabor do não

vi-me repentinamente

despojado da terra

leve como pouso

como areia movediça

 

Eu que só conhecia

o deserto da dúvida

fui assolado

por essa chuva

de granizo

essa tormenta:

uma revoada

de andorinhas

no cio

 

Era um poema escrito

por asas e sopros

uma escritura sagrada

capaz de me comunicar

com o lado selvagem

da vida

 

Desnudo

sem ossos

vi-me sorrateiramente

em tudo o que grita

e canta

 

 

 

 

 

 

Franz Marc

 

1

Janela aberta

frente ao mar aberto

 

Súbito

o cavalo azul

salta

dentro do quarto

 

Uma safira ilumina

os quatro pontos cardeais

de todo meu ser

 

Dilata o coração

até onde não existo

 

 

 

2

Cavalo amarelo

contra a nudez

do meio-dia

 

Não há espaço no universo

onde floresça minha sombra

 

 

 

3

Chamejante ginete vermelho

de crinas azuis

contemplas

o rosto de Deus

o segredo impossível

da humana condição

 

De frente para o campo dourado

de costas para quem o fita

vês o que não se pode ver

faz-nos contemplar o indizível

 

Ante o animal de fogo

somos apenas nossos ossos fraturados

o mistério entre mistérios

 

 

 

 

 

 

 

Rilke e a bailadora andalusa

 

 

No meio da noite, nos braços da embriaguez,

contemplas essa bailadora  de ardentes

constelações, de mil gestos como pássaros

apunhalados pelo sol, pela vertigem do vinho.

Esfinge de desertos sedentos de luz,

pergaminho de rubis em vivo magma,

somente tal dádiva pode incendiar-te

na plenitude do teu ser; somente essa terrível

beleza sabe queimar as tuas feridas,

o teu ser anterior ao nascimento,

contemporâneo da eterna morte.

Rútilo em absoluto movimento,

esse rochedo evola-se em cristalina dança,

em vertiginoso frêmito: asa de uma suave

música a incinerar-te na agudeza do êxtase,

na beleza dos desastres. O rosto da bailadora

arde o teu olhar em viva labareda, em círculos

de um fogo concêntrico, infinito vórtice

em incêndios múltiplos. Dessa chama ressuscitas,

nela te inscreves, fazes de tua carne o bailado

das flamas, o frêmito das centelhas.

Desse sol insurges, a ele consagras tua frágil

humanidade, essa invencível muralha, serena

cordilheira. Dessa queimadura fazes a tua sede,

as brasas de latejante existência.

Longamente fitas o estertor dessa face,

desse sorriso a pulsar os relâmpagos...

Também teu rosto torna-se fogo,

cântico, fuga de violinos em fúria,

sopro de sementes em louvor.

Tão intimamente abraças esse vício,

tão completamente respiras a alquimia

dessa febre, que de tuas entranhas

faz-se a fome de um Deus selvagem.

 

 

 

 

 

 

Poema

 

Ergo as paredes desse poema

claro, transparente

como a nudez do dia.

Desenho, linha a linha,

a luz dessas palavras,

instante imaculado,

fecunda lâmina.

Nesse verbo me deito.

Nele me preparo para a morte.

Nesse vinho adormeço.

Nele me cicatrizo por inteiro.

Faço desses versos

a minha pele,

as minhas pernas.

Teço com esse sopro

as minhas vértebras,

o meu âmago.

Nas sílabas desse poema,

sustento a gravidade do mundo,

ergo o dia como uma coluna

de pássaros e árvores de âmbar.

Nas letras desse abismo,

escrevo esse silêncio vertical,

perfeito como o céu de maio.

Ergo as paredes desse texto,

como quem erige o próprio túmulo,

a mesma velha antiga eternidade.

 

 

outubro, 2025

 

 

Alexandre Bonafim é poeta, ficcionista, crítico literário e professor de literatura na Universidade Estadual de Goiás. Nasceu em Belo Horizonte e viveu a maior parte da vida em São Paulo. Atualmente reside em Goiânia. Mestre em estudos literários pela Unesp de Araraquara, doutor em literatura portuguesa pela USP e pós-doutor em tradução de poesia latino-americana pela Untref/Argentina. Possui dezenas de livros publicados, entre poesia, conto e crítica literária.

 

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