I
Para Horácio Costa
Eu morei muito tempo em uma casa estranha
casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
situada a dois passos
do beco-do-nunca-visto
perto do parque da caveira
onde os relógios são mudos.
Lá, onde os ventos são corcundas
e as pedras podem ser palavras
que podem ser estrelas
que podem ser os gritos de um surdo.
No Salão da Afetividade
nesta casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
viveiros de orquídeas, azaleias, damas-da-noite
servem de cenário para o retrato
em que a mulher de pele dourada
exibe os seus três seios.
Em cada mamilo, uma argola de prata.
Em seus tornozelos, correntinhas de prata.
Em seu umbigo, um anel de prata.
Senhora da prata
senhora de mim, senhora do alfenim.
No Salão da Invisibilidade
nesta casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
escrevi poemas para ninguém
escritos com a tinta de pequenas mortes
em páginas oceânicas do asperamente.
Poemas com o aroma do sal marinho
do mar noturno de São Salvador.
No Salão da Imparcialidade
nesta casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
ficaram as minhas coleções
de pensamentos rotos, adágios
provérbios, alumbramentos
sentenças de oradores romanos
e mestres de sânscrito
que visitei nas horas de agonia
em busca de algo que me aliviasse
da simples dor do existir.
Esta casa estranha em que morei
e que ainda está em mim
casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
situa-se numa cidade sobreposta
a outra cidade
que flutua no escuro
de outra cidade
numa região inabitável
onde talvez encontrareis meu nome
essa abstração em que disfarço
(talvez) a mera inexistência.
[2024]
II
Para Yi Sán
O que posso dizer enquanto que
o lobo multiplicado
em lobos
ou aquele que nasceu embaixo
da árvore
e fala o idioma dos lobos
se talvez entretanto ou quase.
O que posso dizer enquanto que
o lobo é a árvore ou a raiz
do quando
e o homem que nasceu
embaixo da árvore
engole uma duas três quatro
cinco muitas moscas
— fio de cobre descapado é uma canção
disse para mim Chapeuzinho Vermelho.
O que posso dizer enquanto que
o mago branco
ou negro ou quase
brinca com as suas cobras
e o trágico microscopista
em seu desnorteio
esquece as cinco primeiras letras
do alfabeto?
O que posso dizer enquanto que
o mundo, esse lugar
faminto, infame, infausto
lentamente se despedaça?
Flor de ameixa tua voz
meu amor com pele de búfala
e ternos escorpiões nas faces.
Pequenos ossos brancos
são o alimento da Morte.
[2024]
III
Penso em teu sexo
em tua caveira aberta
repousada na mão esquerda
de um paleontólogo louco.
Penso em tuas pernas abertas
mais claras ou mais escuras
do que em todos os mundos possíveis.
Penso com o corpo, a mente
os testículos, o esqueleto
com meus olhos que crocitam como corvos.
O Homem Mais Velho do Mundo
encontrou-me numa ponte de pedra
e disse a mais terrível de todas as palavras:
amor.
Por que estas flores cobertas de sombras
e esquadros?
Por que estas flores cobertas de peles
de homens queimados?
Aqui nós estamos em um longo poço sem fundo
e apesar de tudo nós dançamos.
[2024]
IV
Ils son em guerre avec l'humani
Claude Royet-Journoud
Eu poderia ter dito apenas vermelho
uma carta
quando menos se espera
ou o mapa da lua
aberto no escritório
enquanto mísseis voam sobre Gaza
teu corpo fragmentado
em um dois três cinco segundos
pedaços de carne
por toda parte
Eu poderia ter dito apenas vermelho
uma partitura
é algo inverossímil nesta era
algo como miríades
de corvos brancos
numa árvore aérea
estranho é o avesso de uma lagosta inócua
Eu poderia ter dito apenas vermelho
para a menina corcunda
que atravessa a rua
um ruído um eco
um latido
um som qualquer nesta Era de Kali
é algo ininteligível
disse para mim o miniaturista cego
tudo insanidade tudo insanidade
tudo insanity locura
folie kiôki bezumiye fēngkuáng
e a menina corcunda
joga pedrinhas no meio da calçada
dança sorri dança
sorri dança sorri
e depois
seu corpo nu estendido numa mesa
cirúrgica
enquanto mísseis voam sobre Gaza
flamingos
flertam com o apocalipse
[2024]
V
Why is the name changed
Gertrude Stein
A memória é um verme
que rói a carne
e as sombras.
É sempre
a extrema
cicatriz;
mundo
desmundo
sempre
a excessiva
intensidade
da voz.
***
Luz, ou
reflexo
do inferno?
Lilabi, biéli lilabi azel miol gliá luvi.
***
Acende
palavras
num tempo
de esqueletos.
Que sentido
há
nessa
irrisão?
Só desertos
dentro.
***
Pele
é um livro
escrito
em língua
de sombra.
Cada palavra
um seco
urro.
Lilabi, biéli lilabi azel miol gliá luvi.
***
Este
é tempo
de esqueletos;
tempo
de crianças
queimadas.
Sua história
é contada
no Livro
da Carne.
***
O dedo
do vento
vira as páginas
do livro
e a história
se desfaz.
Como os fios
da tenda
árabe
incinerada
por bombas
de fósforo
branco.
***
A história se derrama
como um rio
que transborda.
***
(A Casa Branca
dinamitada
por rebeldes
de outro Oriente.)
***
A memória é um verme
que rói a carne
e as sombras
intermitentemente.
[2024]
VI
War is not a metaphor
Charles Bernstein
A noite é o cão do silêncio
em
Ramalah.
A sombra do cão
roça o muro
do mundo.
Olhos
de poços
secos
língua-
estilhaço
de lua
quebrada.
O cão busca
a porta
para o lado
de dentro.
Existe
a porta?
Ele é o guardião
do silêncio
que lateja.
Sua alma
é um saco
de pedras
que afundam
na noite.
Mesmo assim
Ele busca
a luz
que o engoliu.
A noite é o cão do silêncio
em Ramalah.
[2024]
VII
Um filósofo faminto
é como um poeta
que come nacos de nuvem.
Ele observa espelhos, coelhos
limbos, cabeças de alfinete
ou folhas secas de outono
com seus grandes olhos de sépia
e bebe a angústia e a gagueira no gargalo
da garrafa sem nada. Ele conta os dedos
de suas mãos, pares e ímpares, e pensa:
"Eu não estou louco, eu não estou louco"
e imagina que ao seu lado estão Cabeça de Rato,
Rolo de Corda, Treme Terra e outros amigos
da penitenciária, não mais vivendo entre os vivos,
mortos-vivos ou quase. "Estou aqui por engano",
dizia a si mesmo o filósofo com fome:
"Eu não bombardeei Beirute, nem tenho amigos árabes
ou judeus; não hasteei a bandeira nazista em Kiev
nem cometi o atentado terrorista nas ruas de Caracas"
dizia o filósofo sem filosofia. "Venho de uma minúscula
ilha do continente africano, um lugar sem nome,
deslocado do mapa múndi, e tudo o que sei
é afinar as cordas de violoncelos".
"Por que estou recluso aqui, nesse portal sem portões
nesse cubículo onde desmortos atormentam os meus pesadelos
com choques elétricos na genitália e cassetetes?
Não há anjos aqui, nem anjos brancos, nem anjos negros,
nem mesmo anjos descoloridos por anos e anos de miséria".
Esta é a confissão do filósofo com fome, que por conta e risco
imaginou outros mundos possíveis. Esqueletos dançam
em sua mente, esqueletos, cavalos, rabinos ensandecidos
que pisoteiam, em sonhos, suas clavículas, suas omoplatas
até transformá-las em um punhado branco de pó.
O que mais haveria a dizer sobre ele?
Não sabemos seu nome, idade, estado civil, número de identidade
ou outras minúcias descarnadas do rio da vida;
se ele viveu num cortiço inundado por águas lamacentas
se ele tinha um cão que morreu afogado
se o seu colchão rangia à noite, perturbando seus nervos
ou se ele bateu carteiras e roubou relógios na Praça da Sé.
Tudo o que sabemos sobre ele é que será executado
com uma bala na nuca antes de completar trinta anos de idade.
Esta é a história de Cabeza de Serpiente Emplumada
e nada mais sabemos a seu respeito.
[2024]
VIII
odnafiec azerepsa asse soxor sovert — agec zov amu
odnafiec.
oeum on sadicroter sarugif
serovrá ed sarbmos
alhof
alerama
— lategev mubla mu ed
atlas aref a ilad
odnatlas átse
atnac aref a illad
odnatnac átse
sagitna ed litárop oãvort
arovínrac a ale
atsicisum a ale
olabmícvialc ues moc
saluítuc ed
orafíp ues
lahnipse aludem ed
açemoc iuqa
ossecrop otnel o
oãçarupus ad
rahlo o odot rimusnoc éta
elep a rezafdes e
atelosbo.
ram od oãçirapased a éte
oce um sanepa
odadraug
oigóler on
oditnes zaf siam adan euqrop
adautat atorag a essid
oruces on
solezonrot
solerama
oditnes zaf siam adan eueqrop
augníl a moc essid
solimam so
siatineg so
asioc amugla oaten
ossi uodum
avler ed ahlof
otlafsa on iac
etal oãc mu
arbmos aus arap
[2005]
IX
(Fósforo branco)
Para Emir Mourad
Fósforo branco ácido ilumina escombro escárnio nos céus do Líbano.
Talhos retalhos de torsos retorcidos
ossos negrume carcaças.
Corpos enfileirados peles requeimadas
de carne sucata
nos campos de refugiados
em Sabra e Chatila.
Esta é a hora do morticínio.
Farpas fiapos nacos de membros desmembrados
e o aroma escuro escuro da hora lenta lenta de um dia que nunca termina.
Nenhum Kaddish para os filhos da escrava Agar
nenhuma lágrima para Ismael.
Apenas o silêncio de talhos retalhos peles farpas fiapos
e o escuro escuro.
Esta é uma história
exilada da história,
que eu e você não devemos saber:
por isso cala o escombro cala o negrume cala a sucata do morticínio.
É preciso calar
a matraca dos jornais;
sim, é preciso fechar os livros, fechar para sempre os livros
e condenar os mortos à perene desmemória
(em algum sítio
mefistofáustico
de Tel Aviv,
que moveu a macabra máquina da morte,
a estrela de David
se converte
em nova suástica)
Porém, eu e você não nos calamos,
eu e você não iremos esquecer,
eu e você somos o cedro do Líbano, a oliveira da Palestina,
o pão fresco nas mesas da Síria.
Houve aqui uma página infame da história,
mas eu e você recusamos o silêncio,
recusamos o esquecimento,
recusamos o perdão.
[2013]
X
(Deir Yassim)
Não somos os ossos de ninguém
Vasko Popa
Nenhuma lápide
para os mortos
em Deir Yassim
episódio rasurado da história
suas casas demolidas
suas ruas desfiguradas
renomeadas em hebraico
120 homens e mulheres
executados
pela garra curva de Moloch
o que tudo devora
na esquina dos ventos
formigas míopes avançam
em sentido anti-horário.
[2014, ano 66 da Nakba]
XI
Para Reynaldo Jimènez
Tão imensamente tudo
(ou quase).
Amor (é)
onde
cérberos
devoram
cérberos:
flores
brancas (da lua)
apodrecem
(em jade)
sombras
de mono-
carvoeiros.
Seria talvez
canção:
firula ou nada:
(apodrecem
em jade)
(mordem a
si
mesmos)
flores brancas (da lua)
enquanto
um anão
(albino)
come palavras
num
banco
de jardim:
come
aparina
clívia
prímula
prímula
flange
calicanto
e outras palavras
fúteis.
(Seria talvez
canção?)
Um cadáver
foi ao banco
(flores brancas)
(da lua)
(apodrecem
em jade)
e pediu
duas vezes
a mesma
esmola.
Ratos democratas
mordem ratos
republicanos
numa piscina
de merda
(seria canção?)
enquanto
mono-carvoeiros
fodem (com fúria) numa árvore
e não há mais nada
a dizer.
[2024]
XII
Árvores corcundas
em um jardim
de escuros.
Onde os dedos;
não, onde os olhos;
não, onde os lábios;
não, onde o onde
sereias ou morteiros
bruxas desenterradas
ou jaspeados cogumelos.
Tatuagem esse indistinto
idioma desconexo;
nauri nauri nauen nauá
nauri nauri nauen nauen
medos meio mortos
ou não, medos dedos
num monólogo a duas
vozes; a três vozes;
a quatro ou nenhuma.
Hidra, melro, drone, apicum:
qual é a minha voz?
Tatuagem esse indistinto
idioma, desconexo;
nauri nauri nauen nauá
nauri nauri nauen nauen
qual é a minha voz?
Favos, grânulos, aroeira
aroeira, aroeira, erva-picão.
A palavra: corte, incisão
on sense? Qual é a minha
língua? Qual é o meu eu?
O que eu sei:
Pato Donald foi a Cuba
cansado do American Reich
e abriu um pequeno comércio
de tralhas e bugigangas
na Praça da Revolução.
[2024]
março, 2025
Claudio Daniel é poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo/SP. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Foi editor, por vinte anos, da revista eletrônica Zunái. Atualmente, é editor da revista impressa GROU Cultura e Arte e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética. Publicou diversos livros de poesia, ensaio e ficção, entre eles Cadernos bestiais: breviário da tragédia brasileira, Portão 7, Marabô Obatalá, Sete olhos & outros poemas e Dialeto açafrão (sob a lua de Gaza), todos de poesia, o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo e os romances Mojubá e A casa das encantadas.
Mais Claudio Daniel na Germina
> Poesia
> Poemas dos Cadernos Bestiais [segundo volume]