Sentimentos carimbados — o amor em tempos de pandemia, de Tarsilla Couto de Brito, de 2020, é um poema — e caso se queira, um conjunto de breves poemas — enredado na atualidade mundial. É um poema de amor fora do convencional, sem declarações nem metáforas sentimentais, embora seja um poema muito sentido (emocionado). O livro, que é um poema-livro (ou um livro de breves poemas, como movimentos em torno de um leitmotiv), trata do fim do amor, mais a rigor, de enquanto o amor morre, no entanto, sem propriamente se deter em quando pessoas de um casal deixam de amar, em quando há traição, nem em quando, devido a algum desentendimento, entre pesos e medidas, não vale mais apenas manter a vida amorosa. Já disse, não é convencional.

O poema-livro de Tarsilla Couto de Brito começa com: "1. O amor acaba/ a mancha de água sanitária/ no tapete 'casa de gente feliz'/ aumenta", produzindo uma ambiguidade entre o amor acabar aquela mancha e aquela mancha terminar crescendo porque o amor acaba. A mancha causada pela água sanitária indica que o produto não limpou nada, pois, coadunou-se com, por assim dizer, resíduos do que deveria ser filtrado. Sentimentos carimbados, de imediato, apresenta-se como poema a vida em casa, mostrando um elemento cotidiano que, de praxe, não é associado ao amor. Um tanto adiante, no andamento de um terço do poema — há trinta movimentos ao todo —, diz-se: "10. O amor acabará/ o amor comerá o reboco das paredes de nossa casa,/ encherá os buracos das ruas, derrubará postes, entortará portões,/ quebrará uma das pernas da criança que joga amarelinha na calçada". Em associação ao movimento 1., a mancha de água sanitária agora se torna um ácido. No caso de 10., no entanto, pontua-se o fim do amor para o futuro, mas ainda dizendo de como o amor se desfaz destruindo a vida doméstica, o cotidiano de um casal, para então, destruindo mais ainda, o amor ganhar as ruas, que dá em destruir todo o ambiente em volta de onde vive o casal.

Tarsilla Couto de Brito, no entanto, não faz Sentimentos carimbados se limitar ao fim do amor na ambiência doméstica, e isso, certamente, para não cair no convencional de falar do amor em poesia, sobre intimidades de um casal. No movimento 3., o poema diz: "O amor acabou/ você nunca disse/ eu li no diário oficial da união". Agora marcando o passado, e o poema todo transita entre os tempos presente, passado e futuro, o fim do amor, assim como o próprio amor, é apresentado como uma instituição, que envolve acordos, um contrato, e por isso, no final, termina registrado em um documento oficial. O amor, assim como seu fim, indica Sentimentos carimbados, é uma política de vida, e como toda política, afeta as pessoas envolvidas. É de notar-se que a voz de mulher declarando a descoberta do fim do amor em 10. é sentida, quem sabe, ressentida. Diante do senso de que o amor é uma política de vida, entre o viver doméstico e o viver social, diante da descoberta do fim do amor em 10., logo a seguir, no movimento 11., o poema diz: "Anúncio de doação:/ preciso me desfazer/ de sentimentos carimbados/ em bom estado de conservação/ interessados ligar para/ +55 62 81158801". Os "sentimentos carimbados", como variação da locução coloquial "figura (ou figurinha) carimbada", implicam aquilo que provavelmente era um ressentimento como ressentimento de fato, afinal, o engastar-se decorrente da vida amorosa e seu fim é algo que vive, pulsa, enquanto o amor acaba, é algo de fato "em bom estado de conservação".

Que há ressentimento em Sentimentos carimbados, e que está "em bom estado de conservação", pode-se muito bem flagrar no movimento 17., que diz: "Raiva não passa/ só muda o corte de cabelo", que é um caso de chamar muita atenção em como é elaborado, pois, produz uma artesania de linguagem a partir de dois lugares-comuns, o que mostra uma habilidade de impressionar da parte da poeta. Antes de 17., ainda como expressão de ressentimento "em bom estado de conservação", há o movimento 14., dizendo: "O amor acabava/ com a gente/ brincava/ de morto vivo morto", que também resulta de um trabalho de artesania da linguagem a partir de lugares-comuns. E do "morto vivo morto", em 14., convém pontuar que antes, no movimento 13., diz-se: "Balanço do isolamento social por prevenção à covid-19. 151o dia de quarentena. insônia, enxaqueca, automedicação, ansiedade, tabagismo, compulsão, taquicardia, coceira, dormência no braço esquerdo, alopecia, falta de ar, medo de morrer, alcoolismo e divórcio. tudo dentro das estatísticas". Esse é, por assim dizer, o movimento-chave do poema.

No ano de produção e publicação de Sentimentos carimbados, 2020, a quantidade de divórcios registrada no Brasil foi de 331,2 mil. Em 2021, a quantidade avançou para 386,8 mil. E em 2022, para 420 mil. Em paralelo, há os casos não judiciais notificados, mas em quantidade decrescente em relação aos casos judiciais entre 2020 e 2022. Foram em torno de 79 mil divórcios em 2020, em torno de 76,6 mil em 2021, e em torno de 68,7 mil em 2022. De todo modo, os divórcios foram crescentes naquele interstício, correspondente ao ano de lockdown mais severo (2020, com em torno de 410,2 mil divórcios ao todo), ao ano do início da vacinação (2021, com em torno de 445 mil ao todo) e ao ano de processual fim do lockdown (2022, com em torno de 488,7 mil ao todo). A sociedade brasileira, em nenhum, e não somente nos termos quantitativos, mas também percentuais, nunca passou por tantos divórcios, e todos os dados apresentados, decorrentes de estudos dos IBGE, são como foram os casos de mortandade, bem como de adoecimento sem mortandade (com e sem sequelas) por Covid-19: subnotificações.

Ao implicar que o amor, aliás, nem o amor escapa (escapou) da Covid-19, como se sabe, causada pelo Sars-CoV-2 (ou novo Coronavírus), do contrário do que se possa pensar, o livro de Tarsilla Couto de Brito não é uma obra datada, pois, transitando entre a vida doméstica e a vida social de um casal, media a relação amorosa pelo contexto político, produzindo de resultado uma imagem alegórica do amor como um acontecimento da vida material. Foi dito, há ressentimento no livro, logo, há sentimentalidade, uma sentimentalidade afetada, dorida, mas não há nada daquele romantismo de idealizar o amor. Se alguém se ocupar em comparar Sentimentos carimbados à produção de romances brasileiros durante o século XIX, poderá observar frequentemente o casamento constituído como um acordo, um negócio. Se mais se quiser observar sobre Sentimentos carimbados como um livro que não é datado, pode-se pesquisar momentos de crise econômica, que são momentos de grande tensão política, mapeando-se dados de divórcios.

O caso mais pontuado sobre a crise entre casais, levando ao fim da vida amorosa, durante o período pandêmico, foi sobre o convívio de vinte e quatro horas por dia entre pessoas com vida conjugal, seja com registro cartorial (casamento e união estável) ou não. Não faltaram profissionais de psiquiatria, psicologia e psicanálise, mas também de sociologia e antropologia social, para dizer, de modo variado e por diferentes abordagens, sobre o fim devido à vida diária meses a fio, dia após dia, hora após hora. E há, nisso, que Tarsilla Couto de Brito não deixou escapar em Sentimentos carimbados, certos comportamentos intensificados durante o lockdown, como o tabagismo e o alcoolismo, na maioria dos casos, em mãos contrárias entre as pessoas casadas. Tarsilla Couto de Brito mostra que o amor, não por si, mas porque é vivido por pessoas, não é isento das conjunturas, dos contextos, logo, não escapa de contingências, do imprevisível, do fortuito, e por isto e aquilo, não escapa das consequências de participação familiar, comunitária, social da vida. A Covid-19 não deu trégua, e governos extremados, de política genocida, pobricidas como o governo brasileiro do período pandêmico, potencializaram o poder de fogo da doença. Na vida em lockdown, tal potência foi produzindo hiatos, e os hiatos foram se tornando vácuos, ou como muito bem diz o poema de Tarsilla Couto de Brito no movimento 18.: "há um risco de ausência em cada espirro". Já na sequência, quer dizer, no movimento seguinte, o 19., diz: "seu quarto vazio/ uma interrogação/ a 21 metros de rostos sem máscaras", o que assinala um assombro diante da ausência se formando enquanto o amor, minguando — doente, sem máscara e não entubado —, cavouca as paredes, mancha o tapete da "casa de gente feliz".

O poema transita para a metalinguagem (comum na obra da poeta). No movimento 24., a pandemia, ainda no assombro, é relacionada a dois elementos marcantes de livro: a poesia e o amor. Os dois versos finais de 24. Dizem: "não há outra finalidade/ senão destruir todos os sentidos preconcebidos". No movimento seguinte, o 25., o assombro da pandemia ganha uma marca mais especificamente brasileira, dizendo: "quando isso acaba/eu & você/ a pandemia/ bolsonaro". A pandemia, por sua agente, a Covid-19, e o amor ganha forma metapoética novamente, embora sem a poesia objetivamente marcada, no movimento 27., que diz: "amores errados/ & alguém com covid-19/ estão sempre mais perto do que a gente queria". Convém destacar que o registro de ampersand (&) em 27. suscita uma discussão sobre a pandemia comercializada (como foi pelo governo brasileiro da época), e logo, vai em uma enxurrada tudo por ela causado, diga-se também aproveitado, como tirar lucro com a morte de milhares de pessoas e recrudescer valores conservadores (racismo, misoginia, xenofobia e outros). A ausência da poesia objetivamente naquele movimento, no entanto, não escapa do próximo, o 28., que em outras palavras, considera que os "amores errados" e "alguém com covid-19" estão mesmo naquela proximidade, pois, conforme o último verso de 28., como se em uma retomada de 27., diz-se: "a poesia sopra onde quer". Por sua vez, os movimentos finais, o 29. e o 30., mantêm o pavoroso assombro da doença, conforme dizem seus primeiros versos: "a negação da pandemia" e "entre a boca e a máscara".

A reedição, porque o livro está esgotado, de Sentimentos carimbados — o amor em tempos de pandemia, de Tarsilla Couto de Brito, é premente para o público não se esquecer do vivido durante a pandemia e para lidar com o amor sem idealizações, com mais consciência do que se sofre, para uma educação sentimental sobre o amor à parte de idealizações.

 

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O livro: Tarsilla Couto de Brito. Sentimentos carimbados.

Goiânia: Goiânia Clandestina, 2020.

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fevereiro, 2025

 

 

Jamesson Buarque é poeta, ficcionista e professor. Tem vários livros publicados e um tanto de premiação regional e nacional.

 

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