©sguimas com imagens de Pedro Pousada e Lu Lessa Ventarola ("desatina")

para a exposição "Refrações Camonianas", em Portugal

 

 
 

 
 


 

Perante o absoluto da tua presença

imaterial e aconchegante

sacio a mais básica das necessidades

João Pedro Azul

 

O poeta é o guardador de uma metamorfose

Elias Canetti

 

 

"Ninguém existe sozinho, nem escreve sozinho. Existimos e escrevemos com outros vivos, mas também com outros mortos, pois mortos e vivos constituem o mesmo pó, uns e outros, como nos lembra Padre António Vieira num dos seus sermões. É uma corrente de luz, esta, passada de mão em mão — e, se os ossos se tornarão impreterivelmente cinza, o fogo permanecerá" (Dias, 2022, p. 27). Este é o começo de um dos testemunhos pessoais da Antologia Refracções Camonianas em Poetas Novíssimos do século XXI organizada por Maria Bochicchio, José Carlos Seabra Pereira e Cristina Zhou e em fase de publicação pelo Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e a Universidade de Coimbra. O texto testemunho de Inês Dias intitula-se Subflumina e alude à imagem de um rio subterrâneo "que corre na literatura portuguesa, com a sua aluvião de melancolia e música" (Dias, 2023, p. 27). Rio conectado, na sua fluidez a uma metáfora outra, a de uma corrente de luz, que vai de Camões a Pessoa, chegando até nós numa fluidez que não pode ser interrompida: "Podem tentar abafá-lo com acordos ortográficos, políticas educativas, poemas de festival ou de carreira, mas felizmente é muito difícil calar um rio. E o marulhar do seu caudal continua a pressentir-se noutros tempos, noutras vozes". (Dias, 2023, p. 27).

A ideia de uma corrente fluvial, e de uma corrente de luz que nos atravessa e continua, adere-se também a uma outra, de Fernando Pessoa, que nos lembra que qualquer começo puro é também uma ficção: atentemos às imagens que no poema "Ano Novo" nos referem a vitalidade da fluidez:

 

Ano Novo

 

Ficção de que começa alguma coisa!

Nada começa: tudo continua.

Na fluida e incerta essência misteriosa

Da vida, flui em sombra a água nua.

 

Curvas do rio escondem só o movimento.

O mesmo rio flui onde se vê.

Começar só começa em pensamento

 

(Pessoa, Obra édita: Arquivo Pessoa)

 

As imagens de movimento e fluidez que o poema invoca destabilizam uma ideia fixa de um começo, começo também de uma criação original. Se um texto começar do zero é também, em si, uma ficção, a transmutação de imagens, as reflexões criadas e a imaginação são o motor de um diálogo impessoal com o qual crescemos juntos, esta a imagem central do testemunho poético de Inês Dias. É importante lembrar aqui o poema "Lavoisier" de Carlos de Oliveira: "Na poesia, / natureza variável / das palavras, / nada se perde / ou cria, / tudo se transforma: / cada poema, / no seu perfil / incerto / e caligráfico, / já sonha /outra forma". (Oliveira, 2011, p. 27). Se na linguagem e na poesia, nada se perde ou transforma, cada poema é também, em si, uma transmutação que desequilibra a figura de um génio original: "ninguém existe sozinho nem escreve sozinho" (Dias, 2022, p. 27). A Natureza variável de um poema é em si revitalizadora continuamente do passado e da tradição, Diante desta aceção a proposta deste projeto de Maria Bochicchio, José Carlos Seabra Pereira e Cristina Zhou é a de incentivar o diálogo criativo com Luís Vaz de Camões nas gerações mais recentes da poesia portuguesa do século XXI.

Como ponto de partida, de um projeto em construção, a Antologia integra 17 poetas: André Domingues, Bruno M. Silva, Catarina Santiago Costa, Inês Dias, Joana de Bastos Rodrigues, João Bosco da Silva, João Pedro Azul, José Pedro Moreira, Lígia Reyes, Luís Felício, Mafalda Sofia Gomes, Miguel Queiroz, Nuno Brito, Nuno F. Silva, Pedro Craveiro, Pedro Ludgero e Sara F. Costa. Para além do diálogo criativo que os poetas estabeleceram com a poesia de Camões, foi pedido a cada um dos poetas um testemunho pessoal em que refletissem sobre a relevância de Camões na sua criação, mas também o contacto com Camões enquanto símbolo, figura e homem, possibilitando também uma releitura e reflexão sobre o texto poético: "Enquanto olho para a folha onde escrevi este poema, vejo, com relativa facilidade, o rapaz frágil que eu erradamente suponha ser, na Praia dos Banhos, em Vila do Conde" (Azul, 2022, p. 39). Desta forma a Antologia invoca uma leitura a duas camadas e velocidades, que permite pensar mais amplamente e profundamente a importância de Camões na poesia portuguesa mais atual.

Entre os 17 testemunhos pessoais, com incidência em "Subflumina" de Inês Dias, os autores refletem fortemente sobre a importância de preservar e incentivar uma corrente de contacto com a poesia Camoniana, mas também ponderam no seu testemunho fortemente o papel da educação. Será difícil dissociar a influência de Camões sem pensar o papel educação, e por isso a forte preponderância das memórias da infância tanto nos poemas como nos testemunhos pessoais, por exemplo em João Bosco da Silva ou Joana Bastos Rodrigues. Nos dois casos parte-se uma alusão a um herói"Campeão de natação" (Bosco da Silva, 2022, p. 35), que edifica "de um só braço /a ilha inteira" (Bastos Rodrigues, 2022, p. 30). Sobre a ideia de um superpoder outro reflete ainda no seu testemunho João Pedro Azul:

 

Não muito distante de uma tarde como essa, na velhinha Escola C+S Saúl Dias, numa aula de Português. descobri que afinal havia super-heróis de carne e osso, e que o super-poder que este tinha ao seu dispor era o de usar a língua como nenhum outro o tinha conseguido para contar os feitos da nossa história. Embora não possuísse ainda as ferramentas para perceber a dimensão daquela obra, o deslumbramento que ela me produzia era mais do que evidente. E toda aquela criatividade cumprindo regras tão matemáticas. Eis o impossível, para mim. (Azul, 2022, p. 39).

 

A uma figura mitificada e omnipresente impõe-se, no entanto, um olhar humanizante sobre as quais as gerações mais recentes da poesia portuguesa vão refletir. Se a presença de Camões na cultura portuguesa e na própria estrutura e tecido material e imaterial do país é total: "Perante o absoluto da tua presença / imaterial e aconchegante /sacio a mais básica das necessidades" (Azul, 2022, p. 38), há um caminho humanizante que as gerações mais recentes estabelecem no seu diálogo, sobre isto nos diria Joana Bastos Rodrigues no seu testemunho pessoal:

 

Durante grande parte da minha vida, Camões não foi mais do que um capítulo da matéria escolar obrigatória, um conjunto de linhas de exaltação de um povo e de um país quando eu não tinha ainda mundo suficiente para compreender nenhuma destas ideias. Recordo a desadequação física ao texto, o quão difícil era dobrar a língua e emitir sons que tanto me eram estranhos quanto se desprendiam automaticamente para longe da boca — ouvia-os, embriagados, a baloiçar entre sentidos, de costas voltadas ao século em que habito. No entanto, algo despontou na minha sensibilidade durante esse processo iniciático: o braço erguido e inabalável de um homem que num severo naufrágio em águas longínquas, teve a noção clara — a acção clara — do que de si próprio tinha de ser salvo. Aprendi nos minutos desse gesto a devoção às palavras assinaladas, ficou-me a terra à vista da Poesia. (Bastos Rodrigues, 2022, p. 31)

 

Como matéria escolar obrigatória Joana Bastos Rodrigues põe em tensão a edificação do cânone, e nisso da estatuária: "A uma figura com tal sentido épico nunca soube perdoar a ausência de retrato fotográfico" (Bastos Rodrigues, 2022, p. 31). O esforço imperante é então regressar a um contacto mais profundo com a figura de Camões, removida a estátua o exercício é o de estabelecer um retrato humano, "tentar abarcar a carne e o osso do País" (Bastos Rodrigues, 2022, p. 31), para isso Joana Bastos Rodrigues aponta a rixa de 16 de Junho de 1552 invocando um retrato não tão objeto de mitificação, regressando à carne e osso, de um herói que se quer mais próximo e menos construído enquanto estátua.

Se o absoluto da presença de Camões, voltando a João Pedro Azul é imaterial, ele não deixa também de ser também profundamente material, nas estátuas das cidades, nos largos, nos nomes das avenidas, vias, ruas, nos nomes das escolas, bibliotecas, livrarias, papelarias, etc. Dessa mesma presença material de Camões no espaço que habitamos nos fala Catarina Santiago Costa ao lembrar o busto de Camões que se encontra atrás de um aquário na Leitaria Garrett:

 

A Leitaria Moderna é modesta no recheio e na decoração, pese embora a excelência dos seus salgados e canja de galinha. Uma das paredes rosa-vivo, à direita de quem entra, ostenta oito telas brancas com naperons coloridos dispostas em losango. Na parede oposta, um lenço minhoto vermelho e potes de barro em miniatura. No balcão (minúsculo, para que não sobrem dúvidas), reservou-se, ao lado da máquina de chocolates accionada por moedas e rotação de torniquete, um espaço tão exíguo quanto o que a leitaria ocupa no Largo de São Cristóvão para um aquário com pedrinhas, pastilhas de vidro, uma alga artificial no fundo e dois peixes laranja. Mas, para esta que vos escreve, o mais inusitado é o busto de Camões que foi colocado detrás do recipiente. O efeito de lupa da água e o ilusionismo óptico tornam o poeta num Adamastor que assombra os peixinhos e domina o aquário. Eis um dos destinos que a fortuna reservou ao embaixador da língua portuguesa, ao paradigma do poeta aventureiro que dá o corpo ao manifesto e só mede as palavras na hora das melopeias, fonopeias e logopeias. De Camões, nenhum português faz pouco, por mais pragas que lhe tenha rogado no ensino secundário. É nosso, conta-nos, canta-nos, identifica-nos. É o nosso antepassado culto e heróico. Uma vez que os mitos também envelhecem, como não sentir ternura perante o busto de Luís Vaz na leitaria do tradicional bairro de Lisboa, apesar de nada ter de épico? (Santiago Costa, 2022, p. 23)

 

A figura de busto atrás de um aquário de uma leitaria mostra o esforço de apresentar um épico humanizado e de um símbolo materialmente entranhado em tudo, o esforço que a poesia mais recente faz é o de olhar de frente oferecendo novas dimensões à leitura de Camões num diálogo criativo que pensa através desta antologia a poesia de Camões a partir de dentro, nesse sentido o diálogo que aqui se faz é mais plural e por isso vivo, mostrando novas escalas para um contacto criativo olhando humanamente o sublime nos olhos Camões apare-nos revitalizado num rio que se quer contínuo para as palavras de Inês Dias: "é impossível calar um rio" e o diálogo criativo que esta antologia traz não só oferece um conjunto plural de contactos criativos com a obra de Camões mas incentiva também futuros diálogos que estabelecem pontes reflexivas e imagéticas de uma grande sinceridade e transparência para com uma obra humana e plural de valor universal. A nível formal e temático os poemas da antologia vão assumir uma grande amplitude de experimentação, Pedro Ludgero usará a forma do soneto para o diálogo criativo: "Poema sempre a jusante", e formas como o poema em prosa serão amplamente usadas, Nuno F. Silva reivindica o tema da Ilha dos Amores para um diálogo com o tema das ilhas, espaços urbanos, maioritariamente criados no século XIX, onde a precariedade se encontra escondida pelos edifícios que dão para rua, o ato de sair da ilha revitalizado para outros contextos do nosso tempo atual através do qual a mais recente poesia portuguesa procura fazer uma ponte de consonância e articulações de memória, numa outra palavra correspondências, geração de empatia, esse é o caso dos poemas de Lígia Reyes ou de Sara F. Costa que partem do nível mitológico das ninfas e das tágides para as pensarem por dentro no tempo atual, no caso de Lígia Reyes pensando um encontro de um poeta da Lisboa atual com as tágides ou no caso de Sara F. Costa trazendo a vitalidade de imagens de um forte erotismo dialogante com o episódio da Ilha dos Amores, em nível mitológico, figuras como o Adamastor são também pensadas nesta antologia como pontos de partida para poemas que refletem por dentro e no mundo atual a figura, pessoa, personagem e obra de Camões. André Domingues e Bruno M. Silva pensarão a importância do tempo de Camões, de uma idade do ouro e da importância da poesia: "É nos poetas que se busca o entendimento do mundo" (Silva, 2022, p. 14); no seu poema: "Escuro hemisfério" Bruno M. Silva pensa e revitaliza por dentro a figura do desconcerto do mundo:

 

Procurar-te no atropelo do mundo seria perder-te sempre,

então amo-te junto à luz

dos lugares mais humildes;

lugares devassados por alguma memória, pela luz sóbria

que arrasta a extensa praia

em que por momentos procurámos

o que de mais inconcebível havia em nós.

(Silva, 2022, p.13)

 

Questões de género e pós-coloniais serão pensados a partir de dentro numa procura revitalizada, é importante notar como o nome de Camões não consta em nenhuma parte do corpo dos poemas, lembrando que este diálogo é sobretudo original na forma como se desvia de todo o tipo de construção de um nome em detrimento de um retrato mais amplo, plural da "carne e osso do país", se há um esforço poético de valorização do passado esse só tem sentidos plenos num diálogo a partir de dentro e num olhar de frente, nesse sentido a poesia não poderá deixar de ser um exercício de aproximação e de ver de dentro, Camões nos lembraria de vários formas e géneros isso, de ver o outro dentro de nós, que isso continue a ser um imperativo e prioridade para a melhor poesia portuguesa. Porque é impossível calar um rio: é preciso continuá-lo também, aumentá-lo, desviar a sua rota, transbordá-lo em tudo que nos rodeia: é imperante pensar criativamente e por dentro Camões e esta Antologia é um exercício vital de desaceleração para o fazer.

 

 

Referências

 

BOCHICCHIO, Maria; PEREIRA, José Carlos Seabra; ZHOU, Cristina (ORG.) Refracções camonianas em poetas do século XXI. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, Universidade de Coimbra, 2023.

CANETTI, Elias. The conscience of words. New York: The Seabury Press, 1979.

OLIVEIRA, Carlos de. Trabalho Poético. Porto: Assírio & Alvim, 2011.

PESSOA, Fernando. Obra Édita. Disponível em: Arquivo Pessoa: http://arquivopessoa.net/. Consultado em 12 de Dezembro de 2022.

 

 

outubro, 2025

 

 

Nuno Brito é Professor Visitante no Departamento de Línguas e Literaturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York, é Doutorado em Literaturas Brasileiras e Portuguesas pela Universidade da Califórnia em Santa Barbara onde foi também Leitor do Camões Instituto da Cooperação e da Língua I.P. É autor dos livros de poesia: Delírio húngaro, Creme de la creme, Duplo-poço, Antologia, As abelhas produzem sol, Estação de serviço em mercúrio, O desenhador de sóis, Ode-menina, e Escrever um poema sobre a liberdade e vê-lo arder.
 

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