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O EU E O MUNDO
Quando fiz cinco anos
João Goulart foi empossado
Quando quebrei o braço
Martin Luther King foi assassinado
Quando me apaixonei pela primeira vez
os Beatles se separaram
Quando comemorei o tricampeonato
alguém estava sendo torturado
Quando minha mãe morreu
o Edifício Joelma se incendiava
Quando conheci minha esposa
Karol Wojtyla foi eleito Papa
Quando minha filha nasceu
a Emenda Dante Oliveira era rejeitada
Quando meu filho não nasceu
Tancredo Neves falecia em São Paulo
Quando me tornei psicólogo
Nelson Mandela era libertado
Quando meu neto surgiu
Damasco foi bombardeada
Quando eu desaparecer
O Mundo vai continuar
ALÉM DOS BEIJOS DE MISTRAL
Nem todos os beijos de Mistral
chegam aos pés dos lábios teus
Neles fui condenado ao silêncio das línguas
onde todas as palavras são afogadas
pelo diálogo molhado das salivas
e nenhum te amo necessita ser pronunciado
nas cavidades profundas e ecoantes das bocas
A voz que em ti encontro por dentro
comigo fala o linguajar dos afetos
que em nenhum dicionário haverei de achar
pois o amor que o beijo que tua boca me dá
não tem sintaxe, predicado, sujeito ou verbo
No confidenciar acariciante dos lábios
não há espaço para mais nada
que não se resuma a fluidez líquida
da mistura dos desejos entremeados
No infindável tempo em que tu me beijas
tudo que o tinha para se dizer já se foi contando
e é no calado surdo dos nossos beijos
que todos os segredos do Universo são revelados
Que me perdoe Gabriela Mistral
mas a boca que meus lábios beijam
me ensinou um beijo que nenhum poeta
poderia antes ter sequer imaginado
[Inspirado a partir do poema "Beijos" da poeta chilena
Gabriela Mistral, Nobel de Literatura em 1945]
EM TEMPO ALGUM, JAMAIS
Não mais teu rosto será o mesmo
com aqueles olhos verdes claros
refletindo absorto a eternidade
Não mais te avistarei de novo
como há muito te deixei
nas outrora manhãs antes finadas
Não mais encontrarei em tua boca
aqueles debutantes beijos
com os quais iniciastes o explorar
do interior molhado dos corpos
e que por tanto tempo havias evitado
Não mais teus cabelos então alongados
deitarão nos ombros ainda largos
feito bagos de uvas em forma de espirais
Não mais as camisas apertadas
denunciarão o abdômen desengordurado
e os parcos músculos com os quais fostes dotado
Não mais o amor te iludirá
deixando tua fronte espantada
e as pálpebras inchadas
das várias noites acordadas
Não mais meu querido espelho
me verás como um dia já te vi
nas nossas tantas primaveras passadas
A CADEIRA QUE VIROU LITERATURA
Vai poema,
busca no interior dos dicionários
as palavras que darão vida
a vida que vive no íntimo da cadeira,
pois tolos são aqueles que pensam
que ela é só feita de madeira
Vai poema,
desoculta dela os sentimentos
e faz de cada um deles versos,
trazendo de volta as saudades
que sentem as cadeiras,
quando se lembram que um dia
foram troncos e ramos de uma árvore
Vai poema,
mostra que a cadeira
não é apenas uma cadeira,
mas sim literatura, que só ti, poema,
aos tolos, como eu, revela
A CASA DO ONTEM
Peguei minhas coisas
coloquei na mochila
e ainda cabia lugar
Saí da casa do ontem
e fui para o amanhã incerto
na certeza que era preciso
seguir em frente e continuar
Agora que estou
perto do futuro do antes de hoje
olho pelo retrovisor e vejo
a casa do ontem que um dia deixei
ocupada com meus fantasmas
assombrada e abandonada
sem placa de vende-se ou aluga-se
porque não há ninguém
que queira nela morar
A mochila está mais cheia
mas ainda cabe lugar
PROLONGADA MADRUGADA
Meus pêsames
o galo morreu
Quem acordará a manhã das madrugadas?
Quem tricotará o novo alvorecer
e o desnudar da escuridade?
Como o Sol saberá a hora de se levantar
e o mundo voltar a despertar?
E se a noite nunca mais for embora
ou se até a luz também acabar?
Que será de nós sem as auroras
e os almoços de meio-dia?
De que serventia terá o horizonte ao mar
se todas as praias ficarem mulatas?
Que acontecerá com o calor dos verões
se nem os corpos serão mais bronzeados?
O que faremos em uma noite assim tão dilatada
cuja boca fechada nos manterá encobertos
detendo os fios das matinadas?
Se à noite todos os gatos são pardos
como saberei distinguir você da sua sombra
sua silhueta da sua alma?
Como enxergarei com quem durmo
se nem mesmo tenho para quem acordar?
Uma madrugada que não termina
jamais será uma noite apressada
e se a claridade nos for proibida
desaparecerei despercebido
tão incógnito como um absoluto nada
As insônias noturnas serão imensas
e todos viveremos sonâmbulos
perambulando por um quarto
do tamanho maior que uma cidade
O galo morreu e nenhum sino dobrou
em que cemitério ele foi sepultado?
...
Mas galos nunca deveriam morrer
e nem pelos vizinhos serem assassinados
pois sem eles os universos seriam
apenas infinitas massas desalumiadas
Quem agora acordará a manhã
depois desta prolongada madrugada?
EU LÍRICO
Meu eu lírico é um tanto
rouco, gago e desafinado
suspira pra fora
o que guardo por dentro
e tem a voz parecida
com meus pensamentos
Enquanto sou de ossos e carnes
ele é feito de comoções e afetos
e quando sou eu quem parte
é ele quem me faz sentir saudades
Meu lirismo é meio antiquado
vem de lá do século passado
talvez por isso quando me interrogo
seja ele quem se contrarie e se exalte
Não sou romântico nem sentimental
embora ame o que amo amar
e seja sensível no lado emocional
sou por fora postiço e superficial
Meu eu lírico é um outro que trago
debaixo das vestes e das roupagens
que para os espelhos é impercebível
apenas visível quando me olho adentro
Meu eu lírico é camuflado
encolhido e encabulado
mas quando quer se desponta
a soltar pelos mover dos dedos
o interior subjetivo e dissimulado
das minhas funduras intangibilidades
Como poeta escrevo poemas
que em versos meu lírico se revela
e ambos sou eu por inteiro
MAIS UM ANIVERSÁRIO
Estou há três décadas
da metade do meu passado
e em breve devo fazer
mais um aniversário
Tenho em mim tantas datas
natalícios, dias santos e finados
que não consigo caber em calendários
Já perdi a conta
das várias segundas-feiras
em que gazeei aulas de colégio
e que faltei o trabalho
Dos domingos então
foram muitos os entediosos
aborrecidos e alguns desperdiçados
Foi em um sábado que minha mãe morreu
mas também foi em um sábado
lá atrás no século hoje findado
que conheci uma menina de Palmares
e com ela me casei e vou levá-la comigo
quando chegar a vez da eternidade
Gosto mais das quintas que das sextas
pois em nenhuma quinta-feira
me aconteceu de perder nada
ou quase nada
que não é a mesma coisa
porém também pode ser semelhante e igual
Vou deixar as terças para pensar nas quartas
e quando a quarta finalmente vier
vou preencher meu diário
com versos para serem lidos
depois que eu tiver sumido
por entre as brumas cerradas
dos meus olhos fechados
adormecidos e sepultados
Mas até lá
vou aqui fazendo poemas
e em breve comemorar mais um aniversário
quem sabe
DIA TRISTE
O dia estava triste
com o azul brumado pelo acinzentado das nuvens
que anunciavam o aproximar das chuvas
assustando o Sol que por detrás delas
se escondia como se estivesse encolhido
encabulado, acanhado ou inibido
No adormecido do céu grisalho
resíduos das cinzas dos mortos evaporados
encobre a manhã por sobre a cabeça dos homens
como uma manta encardida poluída de idades
sobressaltando os pássaros que recolhidos
nos galhos folhados das árvores
em silêncio respeitavam a melancolia do dia
que desalentado desmaiava em cima da cidade
Uma leve garoa já lagrimeja sobre os telhados
em miúdos suspiros umedecidos e molhados
irrigando o asfalto e o cimento das calçadas
formando as primeiras poças d'águas
de onde se ouve bulício das crianças
que pulam nelas brincando felizes
como se pisassem em mares ou oceanos
O que seria dos dias sem os dias tristes
em que a melancolia das almas
encontra fora seu mais sonoro eco
e que nos faz sonhar com dias felizes
em que se desfrutava as alvoradas
com os pés mergulhados
no acumular represado dos líquidos
sobre a superfície banhada da infância?
Sem os dias tristes
não conheceríamos a alegria
deliciada dos dias contrários
PRISIONEIRO DA ETERNIDADE
Certo dia
um instante passava distraído
como alheios e desatentos são os instantes
e apressado se ia
assim como se vão tudo o que é urgente
Mas o que o instante não sabia
é que naquele exato flagrante
havia para ele uma armadilha
e o instante absorto quando conta se deu
já tinha sido pego pela fotografia
E o que era para se ir não se foi
ficou capturado no agora do retrato
esse lugar onde se ficam confinados
os instantes que não foram finados
e ali permanecem encarcerados
em um presente que se nega ser passado
enquanto durar a imortalidade do tempo
Não existe eternidade
além e depois das fotografias
SOBREVIVENTE
Sobrevivi à adolescência
aos hormônios
e seus arrebatamentos
Sobrevivi ao coração
tantas vezes estraçalhado
por amores fracassados
e somente fui salvo
pelas artérias imberbes
ainda não cansadas
pelo sangue enferrujado
das pressões altas das idades
Sobrevivi aos velórios dos pais
aos dentes cariados
aos amigos desviados
às farras dos sábados
às centenas de maços de cigarros
à final de O Bem Amado
aos Cubas Libres e suas ressacas
e aos litros de cervejas várias
que tomei apenas para provar
que eu era macho
Sobrevivi à bipolaridade
aos livros censurados
que li na clandestinidade
às músicas de Roberto Carlos
às luzes negras dos assustados
às calças boca de sino
cujas bainhas encobriam
os sapatos Cavalos de Aço
Sobrevivi a tudo isso
com um pouco de muito mais
e agora que virei adulto
o que é que eu faço?
...E NADA MAIS
Desligue tudo
apague a luz
desplugue os aparelhos
esqueça os minutos e as horas
tampe os ouvidos
feche os olhos
acompanhe o ar que inalas
e me diz: que vês?
"Escuridão e nada mais"
Continue
siga o ar que te adentra
pois enquanto houver oxigênio
ainda há funduras por dentro
e me diz: o que atinges?
"Uma parede e nada mais"
Escave com tuas unhas
não pare
prossigas
não desista
insista e persista
e me diz: o que avistas?
"Um deserto e nada mais"
Ande
avance mais
avizinha-te do horizonte
que por detrás de um horizonte
há outros horizontes e além deles
ainda haverá horizontes
a continuar o caminho
que não tem seta, placa ou estrada
e me diz: o que ouves?
"Silêncio e nada mais "
Ouça
escute bem mais
esqueça os sons
desaprenda as palavras
apague de si todos as frases
abandone as gramáticas
renuncie os vernáculos
e me diz: como te sentes?
"Como um espelho e nada mais"
Então te olhas
sem óculos
sem vestes
sem distrações
sem fachadas
sem fantasias ou disfarces
sem cosméticos ou maquiagens
e me diz: o que refletes?
"Eu, somente eu e nada mais"
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