©sguimas com imagem de antonello silverini
 

 

 

 

O EU E O MUNDO

 

 

Quando fiz cinco anos

João Goulart foi empossado

 

Quando quebrei o braço

Martin Luther King foi assassinado

 

Quando me apaixonei pela primeira vez

os Beatles se separaram

 

Quando comemorei o tricampeonato

alguém estava sendo torturado

 

Quando minha mãe morreu

o Edifício Joelma se incendiava

 

Quando conheci minha esposa

Karol Wojtyla foi eleito Papa

 

Quando minha filha nasceu

a Emenda Dante Oliveira era rejeitada

 

Quando meu filho não nasceu

Tancredo Neves falecia em São Paulo

 

Quando me tornei psicólogo

Nelson Mandela era libertado

 

Quando meu neto surgiu

Damasco foi bombardeada

 

Quando eu desaparecer

O Mundo vai continuar

 

 

 

 

 

 

ALÉM DOS BEIJOS DE MISTRAL

 

 

Nem todos os beijos de Mistral

chegam aos pés dos lábios teus

 

Neles fui condenado ao silêncio das línguas

onde todas as palavras são afogadas

pelo diálogo molhado das salivas

e nenhum te amo necessita ser pronunciado

nas cavidades profundas e ecoantes das bocas

 

A voz que em ti encontro por dentro

comigo fala o linguajar dos afetos

que em nenhum dicionário haverei de achar

pois o amor que o beijo que tua boca me dá

não tem sintaxe, predicado, sujeito ou verbo

 

No confidenciar acariciante dos lábios

não há espaço para mais nada

que não se resuma a fluidez líquida

da mistura dos desejos entremeados

 

No infindável tempo em que tu me beijas

tudo que o tinha para se dizer já se foi contando

e é no calado surdo dos nossos beijos

que todos os segredos do Universo são revelados

 

Que me perdoe Gabriela Mistral

mas a boca que meus lábios beijam

me ensinou um beijo que nenhum poeta

poderia antes ter sequer imaginado

 

 

[Inspirado a partir do poema "Beijos" da poeta chilena

Gabriela Mistral, Nobel de Literatura em 1945]

 

 

 

 

 

 

EM TEMPO ALGUM, JAMAIS

 

 

Não mais teu rosto será o mesmo

com aqueles olhos verdes claros

refletindo absorto a eternidade

 

Não mais te avistarei de novo

como há muito te deixei

nas outrora manhãs antes finadas

 

Não mais encontrarei em tua boca

aqueles debutantes beijos

com os quais iniciastes o explorar

do interior molhado dos corpos

e que por tanto tempo havias evitado

 

Não mais teus cabelos então alongados

deitarão nos ombros ainda largos

feito bagos de uvas em forma de espirais

 

Não mais as camisas apertadas

denunciarão o abdômen desengordurado

e os parcos músculos com os quais fostes dotado

 

Não mais o amor te iludirá

deixando tua fronte espantada

e as pálpebras inchadas

das várias noites acordadas

 

Não mais meu querido espelho

me verás como um dia já te vi

nas nossas tantas primaveras passadas

 

 

 

 

 

 

A CADEIRA QUE VIROU LITERATURA

 

 

Vai poema,

busca no interior dos dicionários

as palavras que darão vida

a vida que vive no íntimo da cadeira,

pois tolos são aqueles que pensam

que ela é só feita de madeira

 

Vai poema,

desoculta dela os sentimentos

e faz de cada um deles versos,

trazendo de volta as saudades

que sentem as cadeiras,

quando se lembram que um dia

foram troncos e ramos de uma árvore

 

Vai poema,

mostra que a cadeira

não é apenas uma cadeira,

mas sim literatura, que só ti, poema,

aos tolos, como eu, revela

 

 

 

 

 

 

A CASA DO ONTEM

 

 

Peguei minhas coisas

coloquei na mochila

e ainda cabia lugar

 

Saí da casa do ontem

e fui para o amanhã incerto

na certeza que era preciso

seguir em frente e continuar

 

Agora que estou

perto do futuro do antes de hoje

olho pelo retrovisor e vejo

a casa do ontem que um dia deixei

ocupada com meus fantasmas

assombrada e abandonada

sem placa de vende-se ou aluga-se

porque não há ninguém

que queira nela morar

 

A mochila está mais cheia

mas ainda cabe lugar

 

 

 

 

 

 

PROLONGADA MADRUGADA

 

 

Meus pêsames

o galo morreu

 

Quem acordará a manhã das madrugadas?

Quem tricotará o novo alvorecer

e o desnudar da escuridade?

 

Como o Sol saberá a hora de se levantar

e o mundo voltar a despertar?

 

E se a noite nunca mais for embora

ou se até a luz também acabar?

 

Que será de nós sem as auroras

e os almoços de meio-dia?

 

De que serventia terá o horizonte ao mar

se todas as praias ficarem mulatas?

 

Que acontecerá com o calor dos verões

se nem os corpos serão mais bronzeados?

 

O que faremos em uma noite assim tão dilatada

cuja boca fechada nos manterá encobertos

detendo os fios das matinadas?

 

Se à noite todos os gatos são pardos

como saberei distinguir você da sua sombra

sua silhueta da sua alma?

Como enxergarei com quem durmo

se nem mesmo tenho para quem acordar?

 

Uma madrugada que não termina

jamais será uma noite apressada

e se a claridade nos for proibida

desaparecerei despercebido

tão incógnito como um absoluto nada

 

As insônias noturnas serão imensas

e todos viveremos sonâmbulos

perambulando por um quarto

do tamanho maior que uma cidade

 

O galo morreu e nenhum sino dobrou

em que cemitério ele foi sepultado?

 

...

 

Mas galos nunca deveriam morrer

e nem pelos vizinhos serem assassinados

pois sem eles os universos seriam

apenas infinitas massas desalumiadas

 

Quem agora acordará a manhã

depois desta prolongada madrugada?

 

 

 

 

 

 

EU LÍRICO

 

 

Meu eu lírico é um tanto

rouco, gago e desafinado

suspira pra fora

o que guardo por dentro

e tem a voz parecida

com meus pensamentos

 

Enquanto sou de ossos e carnes

ele é feito de comoções e afetos

e quando sou eu quem parte

é ele quem me faz sentir saudades

 

Meu lirismo é meio antiquado

vem de lá do século passado

talvez por isso quando me interrogo

seja ele quem se contrarie e se exalte

 

Não sou romântico nem sentimental

embora ame o que amo amar

e seja sensível no lado emocional

sou por fora postiço e superficial

 

Meu eu lírico é um outro que trago

debaixo das vestes e das roupagens

que para os espelhos é impercebível

apenas visível quando me olho adentro

 

Meu eu lírico é camuflado

encolhido e encabulado

mas quando quer se desponta

a soltar pelos mover dos dedos

o interior subjetivo e dissimulado

das minhas funduras intangibilidades

 

Como poeta escrevo poemas

que em versos meu lírico se revela

e ambos sou eu por inteiro

 

 

 

 

 

 

MAIS UM ANIVERSÁRIO

 

 

Estou há três décadas

da metade do meu passado

e em breve devo fazer

mais um aniversário

 

Tenho em mim tantas datas

natalícios, dias santos e finados

que não consigo caber em calendários

 

Já perdi a conta

das várias segundas-feiras

em que gazeei aulas de colégio

e que faltei o trabalho

 

Dos domingos então

foram muitos os entediosos

aborrecidos e alguns desperdiçados

 

Foi em um sábado que minha mãe morreu

mas também foi em um sábado

lá atrás no século hoje findado

que conheci uma menina de Palmares

e com ela me casei e vou levá-la comigo

quando chegar a vez da eternidade

 

Gosto mais das quintas que das sextas

pois em nenhuma quinta-feira

me aconteceu de perder nada

ou quase nada

que não é a mesma coisa

porém também pode ser semelhante e igual

 

Vou deixar as terças para pensar nas quartas

e quando a quarta finalmente vier

vou preencher meu diário

com versos para serem lidos

depois que eu tiver sumido

por entre as brumas cerradas

dos meus olhos fechados

adormecidos e sepultados

 

Mas até lá

vou aqui fazendo poemas

e em breve comemorar mais um aniversário

quem sabe

 

 

 

 

 

 

DIA TRISTE

 

 

O dia estava triste

com o azul brumado pelo acinzentado das nuvens

que anunciavam o aproximar das chuvas

assustando o Sol que por detrás delas

se escondia como se estivesse encolhido

encabulado, acanhado ou inibido

 

No adormecido do céu grisalho

resíduos das cinzas dos mortos evaporados

encobre a manhã por sobre a cabeça dos homens

como uma manta encardida poluída de idades

sobressaltando os pássaros que recolhidos

nos galhos folhados das árvores

em silêncio respeitavam a melancolia do dia

que desalentado desmaiava em cima da cidade

 

Uma leve garoa já lagrimeja sobre os telhados

em miúdos suspiros umedecidos e molhados

irrigando o asfalto e o cimento das calçadas

formando as primeiras poças d'águas

de onde se ouve bulício das crianças

que pulam nelas brincando felizes

como se pisassem em mares ou oceanos

 

O que seria dos dias sem os dias tristes

em que a melancolia das almas

encontra fora seu mais sonoro eco

e que nos faz sonhar com dias felizes

em que se desfrutava as alvoradas

com os pés mergulhados

no acumular represado dos líquidos

sobre a superfície banhada da infância?

 

Sem os dias tristes

não conheceríamos a alegria

deliciada dos dias contrários

 

 

 

 

 

 

PRISIONEIRO DA ETERNIDADE

 

 

Certo dia

um instante passava distraído

como alheios e desatentos são os instantes

e apressado se ia

assim como se vão tudo o que é urgente

 

Mas o que o instante não sabia

é que naquele exato flagrante

havia para ele uma armadilha

e o instante absorto quando conta se deu

já tinha sido pego pela fotografia

 

E o que era para se ir não se foi

ficou capturado no agora do retrato

esse lugar onde se ficam confinados

os instantes que não foram finados

e ali permanecem encarcerados

em um presente que se nega ser passado

enquanto durar a imortalidade do tempo

 

Não existe eternidade

além e depois das fotografias

 

 

 

 

 

 

SOBREVIVENTE

 

 

Sobrevivi à adolescência

aos hormônios

e seus arrebatamentos

 

Sobrevivi ao coração

tantas vezes estraçalhado

por amores fracassados

e somente fui salvo

pelas artérias imberbes

ainda não cansadas

pelo sangue enferrujado

das pressões altas das idades

 

Sobrevivi aos velórios dos pais

aos dentes cariados

aos amigos desviados

às farras dos sábados

às centenas de maços de cigarros

à final de O Bem Amado

aos Cubas Libres e suas ressacas

e aos litros de cervejas várias

que tomei apenas para provar

que eu era macho

 

Sobrevivi à bipolaridade

aos livros censurados

que li na clandestinidade

às músicas de Roberto Carlos

às luzes negras dos assustados

às calças boca de sino

cujas bainhas encobriam

os sapatos Cavalos de Aço

 

Sobrevivi a tudo isso

com um pouco de muito mais

e agora que virei adulto

o que é que eu faço?

 

 

 

 

 

 

...E NADA MAIS

 

 

Desligue tudo

apague a luz

desplugue os aparelhos

esqueça os minutos e as horas

tampe os ouvidos

feche os olhos

acompanhe o ar que inalas

e me diz: que vês?

"Escuridão e nada mais"

 

Continue

siga o ar que te adentra

pois enquanto houver oxigênio

ainda há funduras por dentro

e me diz: o que atinges?

"Uma parede e nada mais"

 

Escave com tuas unhas

não pare

prossigas

não desista

insista e persista

e me diz: o que avistas?

"Um deserto e nada mais"

 

Ande

avance mais

avizinha-te do horizonte

que por detrás de um horizonte

há outros horizontes e além deles

ainda haverá horizontes

a continuar o caminho

que não tem seta, placa ou estrada

e me diz: o que ouves?

"Silêncio e nada mais "

 

Ouça

escute bem mais

esqueça os sons

desaprenda as palavras

apague de si todos as frases

abandone as gramáticas

renuncie os vernáculos

e me diz: como te sentes?

"Como um espelho e nada mais"

 

Então te olhas

sem óculos

sem vestes

sem distrações

sem fachadas

sem fantasias ou disfarces

sem cosméticos ou maquiagens

e me diz: o que refletes?

"Eu, somente eu e nada mais"

 

                  

 

 

 


 

 

 

 

 


Joaquim Cesário de Mello. Psicólogo clínico e professor universitário, residente e domiciliado em Recife (PE). Em meados dos anos 1980 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi colunista da Vida Crônica (1998 – 2002) do encarte JC Cultural do Jornal do Commercio (PE). Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils fin de sciècle (2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996) e Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra e Arte/SP, 2021). Autor dos livros Dialética terapeuta (Litoral/PE, 2003), A alma humana (Labrador/SP, 2018), A psicologia nos ditados populares (Labrador/SP, 2020), A vida como um espanto (Labrador/SP, 2021), No cemitério das nuvens (Folheando, 2022), Memórias do esquecimento (Giostri, 2023), Versos achados por aí (Mondrongo, 2024) e A rosa dos afetos (Mondrongo, 2024).

 

 
::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::