Todo conceito é uma derrota do pensamento
Todo conceito é uma derrota do pensamento.
Só a perda nos faz ter o que não perdemos.
A abstração. Disséssemos: há infinitas estrelas no universo,
guardaríamos o infinito e perderíamos as estrelas.
Conhecemos o nome, vaso de si mesmo.
Tivéssemos do fruto da vida a polpa arrancado,
diríamos cem mil pássaros como quem conta
até quatro. Sem uma pena subtraída. Estufado.
Diríamos: vida eterna!, universo infinito!,
como quem chama o próprio filho.
Na minha casa há uma árvore estranha
na minha casa há uma árvore estranha
tem galhos, tronco e entranhas
e ramos que crescem sem parar
de noite acordo e no caminho da cozinha
ouço uma triste ladainha
parecendo fantasmas a praguejar
não é deste mundo o que acontece
é uma legião de corvos que agora desce
d'algum reino sublunar
e sobre os galhos dessa árvore estranha
trocam carinhos de demônios e aranhas
por uma noite de insônia a me encarar
de podre a planta viceja no escuro
a seiva da entranha é o breu que expulso
do meu pulmão a se afogar
mas suas folhas parecem corpos que boiam
suas raízes, veias daninhas que afloram
seu tronco, uma ruína a pulsar e pulsar
ficando aqui eu bem que percebo
nesta entranha há ainda um segredo
que noite após noite recuso a decifrar
esfinge que germina dia após dia
seu enigma pronunciar eu não ousaria
então eu sei que vai me devorar
meus cinco, meus dez, meus vinte dedos
meus pés, meus cabelos, meu corpo inteiro
como se quisesse de novo me gestar
(mas é quase cedo, outra manhã eu terei
pra manhã após manhã ver o que me tornei
e o que resta como adubo sob solo do meu lar)
lá vem o sol e que eu adormeça
mas pra isso que essa árvore não cresça
mais do que de luz meus olhos podem alcançar
Os sem filhos
poetas críticos
outrora malditos
artistas docentes
revolucionaríssimos
do amor justíssimo
a terceiros de terceiros
suas estantes são árvores
genealógicas
seus corpos são velas
sobre a mesa
porém onde encontrar
entre os livros de filosofia
um filósofo que o conforte
quando passado o dia
restar um corpo anoitecido
em um quarto de hotel
em um país estrangeiro?
e quando pensar nos filhos
como não sabê-lo
nos dos seus amigos
aquele não tido
por ganas de expansão?
mas por fim abreviado
restar neste quarto
o inacessível
de um fruto amadurecido?
e nesta já comum
vigília da velhice
sentir por não colhido
dentro do próprio peito
o desconhecido
de um segundo corpo que se desfaz?
Leis
a mais estranha coisa
é haver leis
na natureza
e podermos pô-las
em uma folha
se leis não houvesse?
ou se não pudéssemos vê-las?
seria como meu espírito
a natureza?
quem inventará
a matemática
de uma alma?
e, depois,
onde escrevê-la?
Deus é o nome da sua namorada em um e-mail não enviado
como escolher a hora do acontecimento se nossas mãos estão cheias
e se não estivessem seriam dois sóis a nos aniquilar?
há poços no ar e em cada um mil estrelas sem nenhuma razão
maior que a sua a atravessá-los sobre a ponte de sua pele
sabe, ser feliz é uma questão de química e circunstância
(mas estas são palavras sérias que você não quer mais escrever)
quem aqui já levou porrada e se levantou com a cabeça erguida
pra ganhar o mundo com os olhos em carne viva
sabendo na alma de que este universo não finda?
... ah, então foi você?
todos temos direito a sexo, amor e graça divina
o problema é que o mundo não parou de rodar
e deus é o nome da sua namorada em um e-mail não enviado
olhe pro céu, olhe pros seus filhos se os tiver,
você não decide se a Terra irá parar de cair
e você achava que essa vida se resolveria antes do fim?
tome um cigarro, vá se deitar
tivessem suas mãos o poder de criar, mas olhe pra elas
são pó de estrelas... como as varejeiras sobre o estrume também são.
o que resta a uma alma?, você pode perguntar,
diria amar,
mas isso porque algum filme me ensinou
Não peça amor
Meu amigo, nunca peça amor
porque amor requerido é buraco negro
e ninguém sabe de onde veio o próprio coração
Olha pros olhos da sua filha: amar a si mesmo é amá-la
deixa que ela saiba o que ela tem que saber
como deixamos o ar habitar nossos pulmões
e a grama crescer
Amar é desejo de viver
e quando tão pequena ela lhe agarrou como o nascer do sol
você foi amado por toda sua vida
Eu quero seus olhos fechados entre quarta e quinta-feira
eu quero seus olhos fechados entre quarta e quinta-feira,
cobrindo a distância entre acordar assustado e procurar aconchego
eu lhe quero ao despertar seu bafo em minha boca
seus pés enrolados como se fôssemos outros bichos
dormindo sem medo de polícia ou de hora extra ou da inconstância de nosso
próprio coração
eu lhe quero como quem deseja a morte
pela curiosidade de saber e pelas promessas que encerra
quando tiver 35 eu lhe amarei
com problemas gástricos e mais pelos no corpo?
e se o ano que for daqui a dez anos
for mais longo que este em que nos desesperamos?
eu tenho um amor e eu tenho uma dor
isso todos já sabiam muito antes de mim
quanto mais eu amo mais dói
e às vezes é bom doer e muitas vezes é ruim
mas se parar de doer meu deus o que será que vai ser
do resto de minha vida e desta noite sem lua?
Pra você saber
eu liguei
pro hospital
pra marcar
seu exame
que você
provavelmente
atrasava
por medo
me perdoe
era preciso
fazê-lo
o quanto antes
Dai-me forças para encontrar em mim
dai-me forças para encontrar em mim
o amor que não há,
a fé que odeio
amar procurar.
tenho fome, tenho sede, tenho penas doloridas.
não quero estas penas. a injustiça,
a fome e o medo eu manejo, mas não me faça delirar
contra o meu o peito a solidão de meu pai
se fosses justo e bom
soprarias em meu rosto e me bem diria
por meu desejo de amor.
mas não há bondade na justiça
nem alívio em Ti.
dai-me forças pra encontrar
a beleza na beleza —
e me calarei.
nada mais hei de pedir
[Poemas do livro Estar na grama. Patuá, 2024] |