©sguimas
 

 

 

 

a mulher é um animal gigante

 

 

I.

 

algumas mulheres podem atingir mais de dez metros de comprimento

são muito poderosas

elas atacam em uma emboscada

envolvem a presa num longo abraço e estrangulam a vítima

 

essas caçadoras

oportunistas

também podem ser exigentes

a base da alimentação das mulheres é composta por mamíferos

 

se não encontrarem uma presa adequada elas aguardam longos períodos

até verem algo grande o suficiente

 

 

 

II.

 

em 2018

um homem desapareceu em seu jardim

suas sandálias e facão foram encontrados um dia depois

lá também estava uma mulher gigante com a barriga inchada

 

os moradores suspeitaram da mulher

então a mataram e a carregaram para fora do jardim

disse o chefe da polícia

a barriga da mulher foi aberta e seu interior exposto à luz

 

a mulher é um animal gigante, concluíram

o corpo é uma ficção

 

 

 

 

 

 

a máquina bípede

 

 

levanta da cama

calça meias finas, um pé

de esmalte vermelho descascando

caminha, no banheiro

agacha no vaso sanitário

pensa na falta de margarina

na geladeira vazia, nos ovos

sabão em pó brilhante e em regar

as plantas sedentas

na cozinha, a máquina bípede pisa

num brinquedo plástico no chão

no tapete encontra mais um rasgo

o caos instalado, na cozinha

ela se move para lá e para cá

o descanso vem no meio-dia

então a máquina sai da casa

desce os degraus da casa

passa pelo portão da casa

controla a vontade de correr

 

ao invés disso vai até a farmácia

na esquina, a máquina

em busca de mais uma pílula

do dia seguinte

 

 

 

 

 

 

no último dia do mundo nevou na bahia

 

 

no último dia do mundo não havia

um só pássaro no céu

cartão de crédito

internet, água potável

inseto sobrevivente ao apocalipse

 

havia a neve nos trópicos

havia as ondas de rádio

dispersas no ar, fantasmas

canalizados por aparelhinhos de pilha

 

no último dia do mundo nevou na bahia

e todas as notícias matinais

os locutores roucos

que minha mãe ouvia

de camisola pela casa às cinco horas

 

anunciavam

o desastre

 

 

 

 

 

 

rainha de paus

 

 

I.

 

trago um caranguejo no peito

que cava fundo a carne

e aninha filhotes consigo

comigo

a mãe na cama de hospital

pedras e pedras, caranguejo

em muda contemplação, espuma

a baba da boca da enferma

a muda da carapaça nas luas

de marés altas, nova e cheia

 

 

 

II.

 

algumas vitórias valem mais secretas

prestes a parir, este é o melhor lugar do mundo

para salvar a própria pele

a mãe parte

 

abandonada por outras fêmeas

há de se aprender a orbitar a terra

em ciclos de quatro semanas, em redemoinhos

fortes o bastante                 a vida

a morte

é um grande não-ser-levado

contra a correnteza

 

 

 

 

 

 

imagine a primeira gota de sangue

 

 

na faca de doce

no cutelo

na faquinha de pão

abundante em migalhas

no milímetro abissal

da folha de sulfite

na peixeira

na Makita

na tesoura de ponta

naquela espada velha & enferrujada

com a vida de gente velha

assassinada

na faca de plástico

no corte de cabelo feio

na franja esquisita na cara

na palavra

gasta & afiada

de tanto uso

nas demissões em massa

nos funcionários largados ao olho da rua

no bisturi no centro cirúrgico

& seus restos de pele placenta & útero

 

na serra

no serrote

nas mandíbulas das formigas que dilaceram folhas

à sombra (que é do sol o corte)

& ao sonho

 

na linha pontilhada

na fenda para o futuro

na falta de plaquetas

& anticoagulantes

 

nossos corpos esvaindo

dois

em tantos furos

 

 

 

 

 

 

navalha

 

 

para Amanda, Luiza e Stephanie

 

 

campo minado uma mulher

com balas na língua estômago

de ferro & coragem & coragem

coração em ação bangue bangue

gangue à esquerda camaradas

em salas fechadas aguardam

tesouras debaixo das saias

navalha no palato

caminhar duro & enrijecido & o som

das metralhadoras no alto das árvores

até os pássaros parecem armas & a lama

cheira a chumbo & sangue

 

uma guerra nas costas

uma mulher um exército

 

 

 

 

 

 

ruminante

 

 

para Fernanda C.

 

 

rumina

um poema para boi dormir

um poema para boi dormir ligeiro antes

que os homens cheguem com suas facas

que os homens cheguem com suas facas

& abatam as vacas silentes

enquanto os bois dormem ligeiro

& antes dormem ligeiro

& fingem não ouvir os homens

que chegam com facas & arrastam as vacas

que chegam com facas & arrastam

as patas carregadas na lama

silentes

& fingem não ouvir os homens

as facas as vacas que ruminam

enquanto os bois dormem

na lama as patas

ruminam

poemas entre fardos de grama

enquanto os bois dormem ligeiro

& ruminam os homens antes

ligeiros a grama silentes

& as vacas

ruminantes

& a lama

ruminantes

& os bois e os homens

& as vacas que fingem

na grama

do poema

 

 

 

 

 

 

a vendedora de tomates

 

 

atropelada ontem na rua

a sacola plástica recheada

dos frutos suculentos

vermelho esmagado no asfalto

& o cheiro do vento

era o de carne podre

 

a vida campesina resumida em:

a) o cuidado com a terra

b) o arado da terra

c) o cultivo da terra

d) a sabedoria da terra

semear, plantar, colher

depois embalar & vender

os produtos na feira agrícola

 

todos gostam de tomates é

uma afirmação universalmente aceita

nem todos, porém, gostam de pobre

de gente pobre que planta & colhe

planta & colhe

o tomate da salada de cada dia

 

quem reivindica o corpo camponês?

todos passam reto desde anteontem

pela vendedora estatelada na estrada

 

 

 

 

 

 

tristes tópicos

 

 

o preço da margarina

o preço do feijão

a tarifa do ônibus

oito meses sem emprego

a única entrevista feita                sem sucesso

a água mais cara

o desconto do salário                   no final do mês

o holerite zerado

a humilhação diária

a marmita amassada na mochila           no ônibus

a caminho de mais um dia

 

a vida vidinha nascida sob a sina de mais um trabalhador

que nunca será alvo

de nenhuma pesquisa científica

 


 

o que uma árvore cala dentro de si

 

 

:

seiva que desafia a gravidade

insetos em existência xilófaga

                                       cupins

                                       vespas

                                       gorgulhos

                                       & carunchos

        projéteis                    da primeira, da segunda, da última guerra

        armadilhas para formigas

armadas por aranhas

        buracos de todos os tipos

        onde se enfiam coisas

        navalhas esquecidas

arames

pregos

dinheiro

utensílios de ferro

        um ninho bem escondido

pedaços de papel escrito

                               bilhetinhos

                               iniciais de nomes talhados em musgo corroído

água, água abundante

& veneno, muitas vezes

um oco de uma árvore é como um útero

do tamanho de um soco

como um dicionário em língua estrangeira

repleto de palavras que jamais esperamos encontrar

 

 

 

 

 

animalium

 

 

mulher em pele de cordeiro

mulher que ladra não morde

mulher dada não se olha os dentes

em boca fechada não entra mulher

não se cutuca mulher com vara curta

uma mulher sozinha não faz verão

mais vale uma mulher na mão                      do que duas voando

mulher escaldada tem medo de água fria

quando uma mulher fala                              a outra abaixa a orelha

quem se mistura com mulheres, farelo come

de grão em grão a mulher enche o papo

filha de mulher, mulherzinha é

 

pode ir tirando a mulherzinha da chuva

 

 

 

 

 

 

poema sem título

 

 

poetas sem livros

árvores sem flores

mães sem filhos

casas sem moradores

trabalhadores sem empregos

 

empregos sem trabalhadores

moradores sem casas

filhos sem mães

flores sem árvores

livros sem poetas

 

título sem poema

 

                  

 

 

 


 

 

 

 

 


Daniela Rezende é poeta, artista-educadora e escritora. Historiadora da arte, pesquisadora e professora de literatura, nasceu e mora em São Paulo. É autora de Uma mulher só não faz verão (Urutau, 2022), obra semifinalista do Prêmio Oceanos 2023, e Mãe fantasma (Primata, 2023). Publicou textos em diversas revistas virtuais e zines. Teve um videopoema apresentado no 4º Concurso de Videopoesia da Desvairada — Feira de Poesia de São Paulo (2020), e integrou o Curso Livre de Preparação de Escritores (CLIPE), pela Casa das Rosas (2021).


 
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