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A história por aqui nunca encontrou repouso nas páginas dos livros. Ela desce no ponto errado, espera três horas no banco e ainda sorri ao fim do expediente. Se o país fosse apenas passado, talvez doesse menos. Mas o Brasil é um estertor contínuo, tossindo a memória mal resolvida em cada esquina.

Eis que, entre uma inflação e outra, nasce uma piada. Um meme. Uma alcunha curiosa para um país distante — ou nem tanto. Chamam de "Guiana Brasileira", mas o nome é só disfarce. O que lateja por baixo da sátira é a velha dinâmica do ultramar: quem ri agora é quem antes só escutava. E quem escutava com chicote na mão, hoje se incomoda com um "fala, galera".

A piada nasceu da rede, mas carrega o sal das caravelas. É o meme como vingança pós-colonial, humor como estilingue cultural. No feed, a geopolítica vira remix, e o ultramar se torna story. Aquilo que era glória no país lusitano vira post com comentário sarcástico e trilha sonora de funk.

No fundo, não foi o meme que incomodou. Foi o espelho. Foi se ver, décadas depois, como caricatura num feed tropical. A língua, antes imposta com a força da cruz e da coroa, agora volta em versão remixada — com gíria, emoji e sotaque de quebrada. O ultramar devolveu o recado, e não veio em navio: veio em wi-fi.

Enquanto isso, cá na antiga colônia, o povo sonha com visto, torra salário em passagem e atravessa o Atlântico em busca de dignidade. Chega lá carregando a esperança e a mala, e encontra a mesma desconfiança disfarçada de civilidade. A fronteira moderna ainda carrega o mesmo desprezo do passado. O invasor mudou de cor, de língua, de nome — mas o olhar que o recebe continua o mesmo.

"Esta é a ditosa Pátria minha amada", dizia o poeta, num tom de orgulho e devoção. Mas há quem diga hoje, num sussurro cansado, que é difícil amar uma pátria que muitas vezes parece indiferente e oferece migalhas. Que exige heroísmo cotidiano de quem mal tem pão. Que entrega promessas e cobra renúncias. E que, ironicamente, é na casa do outro que o filho exilado busca colo — e encontra bicha.

No fim, o meme virou um glossário improvisado: o "puto" que é criança por lá, mas aqui é ofensa; o "conduzir" que é dirigir, e o "fixe" que não tem nada a ver com cola. A piada não é só piada — é a língua se vingando da sua própria colonização, com vocabulário de feira livre e sotaque de subúrbio. O que antes se lia como "dá-me um abraço", agora soa como "me dá um tempo". A língua virou campo minado de regionalismos, e o ultramar? Tropeçou no gerúndio. Entre "estou a fazer" e "tô fazendo" mora um abismo — ou será essa uma revolta gramatical com trilha sonora de funk?

Porque a História é isso: uma piada contada pelo lado errado da piada. No fim das contas, a disputa não é por território, não é só geografia. É por narrativa. E nessa guerra, quem tem o melhor meme leva vantagem.

O Brasil pode não ser o maior protagonista global em termos de domínio político, econômico, militar ou tecnológico. No entanto, sem dúvida, é o roteirista do caos. E o caos, meus amigos, tornou-se nossa nova 'divisa'. Portanto: riam. Curtam. Compartilhem. Porque aqui, onde até o sofrimento ganha trilha sonora e legenda engraçada, a retaliação se disfarça de postagens — e sempre viraliza. O que antes era dor, hoje é meme. E o que antes era revide, agora é clickbait — ou, como preferem os mais modernos, uma 'isca de cliques'.

E aqui estamos, brava gente brasileira: um país com vocação para piada e tragédia no mesmo verso. Fazemos do meme um espelho e devolvemos o reflexo com filtro de deboche. Desarte, não fazemos isso para ferir, mas para lembrar que, no fim, somos os autores dessa história caótica — e, sim, também sabemos rir dela. Logo, cada risada é o sinal de que, apesar de tudo, ainda não nos levaram a capacidade de imaginar — nem de debochar.

Aliás, se riso é resistência, o Brasil é potência mundial.

 

 

outubro, 2025

 

 

MC Miguel é bibliotecônomo e arquivologista, mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atua como Diretor Social de Biblioteca, Arquivo e Museu no Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha (Casa da Memória), onde desenvolve ações voltadas à preservação da memória, à mediação cultural e ao acesso à informação histórica. Acredita que transformar o silêncio do passado em diálogo com o futuro é mais que um ofício — é um compromisso ético com a esperança e a justiça social.
 

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