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Doutor Otto é o principal executivo da matriz brasileira do conglomerado alemão. Regula 50 anos, é corado, forte, emana virilidade. É grisalho e mantém o cabelo sempre aparado. Seus ternos e gravatas são impecáveis, sem amassos, manchas, não há nem mesmo sinais de uso. Parece que todos os dias de manhã vai a uma loja de marca e os tira da vitrine antes de ir trabalhar. Usa camisas com suas iniciais no bolso: O.V.H. As duas últimas letras são de um sobrenome que abaixo de gerente ninguém na empresa consegue pronunciar. Pouco é visto sem estar ao celular e sem a maleta em que carrega milhões em contratos. Todos olham doutor Otto passar. Doutor Otto não dá bom dia, não diz oi nem olá. Cruza apressado os corredores da firma, acena rápido com a cabeça uma vez ou outra, e olhe lá.
É sexta-feira, oito da matina. Doutor Otto precisa checar balanços antes da reunião com acionistas, às nove, e não aparece na garagem nenhum dos elevadores que serve a diretoria. Doutor Otto chama o de serviço. Quando a porta abre, lá dentro estão quatro faxineiros conversando alto, combinando o futebol de domingo. Doutor Otto faz seu aceno reduzido, entra e fica no meio deles, indiferente aos baldes, vassouras e rodos. Todos se calam. É de entendimento tácito que a inesperada, absurda e jamais vista presença de doutor Otto naquele elevador encerra qualquer assunto. No fundo da cabine, espremido, está Tomirez, mirrado, de nascença humilhado. Claro que Tomirez é pobre e é preto, e o que aprende com o mundo é ter vergonha disso e da própria vida. Ninguém nunca o elogia pelo que faz, inclusive Doutor Otto, que volte e meia passa por ele no corredor da diretoria e, alheio, desvia, preocupado com os negócios e em não escorregar no piso molhado pela limpeza.
No andar da diretoria, a porta se abre. Doutor Otto dá um passo à frente, mas gira rápido, volta-se para eles, segura a porta com o braço. "Tem vaga pra mim no futebol?". No elevador, quatro queixos desabam no chão. Houvesse doutor Otto tirado uma arma e dado um tiro ali dentro, não haveria tanto impacto. "Como é, gente? Dá ou não para eu jogar?", e ele precisa insistir, já que nenhum dos quatro responde, porque todos eles acham que estão tendo alucinação coletiva, ou que por alguma maldição, enlouqueceram conjuntamente. Ou, em último caso, o grande executivo toma substância proibida. Três deles olham para o que falava mais alto quando a porta se abriu na garagem e começou a viagem insólita. É ele o CEO da pelada de domingo. É negro também, mas é forte e mais impositivo do que Tomirez, que a essa altura deseja sumir dentro de um dos baldes. "É dez pratas pra cada um, pro aluguel do campo. A gente marca oito e meia pra bola rolar às nove. A cerveja cada um também leva a sua", e o sujeito solta rápido as coordenadas, parece cuspir uma bala entalada na garganta. Doutor Otto faz que sim com a cabeça, dá as costas, some apressado no corredor.
“Vai é porra nenhuma. Vai se misturar?". "Sujeito assim joga tênis, golfe...". "E se ele for? Quem vai marcar? Quem vai ser doido de dar um tranco no homem?", e ao longo do dia, não há outro assunto no almoxarifado ou no marmitão, o refeitório que fica na própria garagem. Tomirez come calado, assustado. À tarde, o contínuo da diretoria aparece lá embaixo com uma nota de 20. "É do homem lá em cima, mandou entregar a vocês. Por que ele pediu o endereço do campo?", o garoto pergunta, ele mesmo um dos peladeiros. "Você deu?", querem saber, ele responde que sim, e fica calado, até que as coisas começam a fazer sentido. "Tão de palhaçada que ele vai jogar?". Ninguém diz nada, ninguém duvida nem garante que o homem vai.
A resposta vem às 8h25 da manhã do domingo ensolarado, quando encosta ao lado do campo que mistura grama e terra, muito mais a segunda que a primeira, uma Mercedez Benz prateada, último modelo. Ela arranca olhares incrédulos, como se fosse uma nave intergaláctica pousando na várzea.
Doutor Otto sai do carro e diz bom dia, o que para todos é ainda mais espantoso do que sua Mercedez. Mais tarde, alguém garantirá que ele até sorriu, no que será contestado com um "Também não exagera". Doutor Otto senta-se no banco de reservas, um conjunto mal-ajambrado de tábuas pregadas, e de dentro de uma bolsa de marca esportiva famosa, tira uma chuteira inteiramente branca de marca mais cara e mais famosa, que estala de nova e não traz um risco de uso sequer. Casa perfeitamente com o resto do uniforme, com o qual já veio vestido: calção branco de listras vermelhas e camisa branca com um dez vermelho nas costas abaixo de seu nome na mesma cor, em letra maiúscula. É tudo limpo, novo, bonito e caro demais para aqueles pares de olhos castanhos, que apreciam o conjunto e acham imenso pescado usá-lo logo naquele campo careca, acostumado a receber apenas chuteiras gastas, de marcas amadoras. Nem querem pensar que doutor Otto veste uma compra de mês no mercado, com carne e tudo, para a maioria ali.
"Como é? A pelota vai rolar ou não?", e doutor Otto pergunta e começa a se aquecer. O linguajar e os movimentos o afastam do executivo e o aproximam do mais comum dos peladeiros. Mas todos entendem como ordem, como se ali não fosse campo, mas a firma de todos os dias, e rapidamente vestem suas camisetas desbotadas e calçam suas chuteiras cansadas de tantos domingos de alegrias e fuga e descanso de problemas.
Há dezoito homens no campinho, prontos para viverem os melhores momentos da semana. É possível se formarem três times, com goleiro e cinco na linha. Times escolhidos, os capitães tiram zerinho ou um para saber quem joga primeiro. O time que sobrou, espera de fora para jogar com o vencedor. Essa é uma das leis mais universais do mundo dos homens, sejam os ricos ou os pobres, os diretores ou os faxineiros. Tomirez caiu no time do doutor Otto, o time dos dois começa jogando. Bola ao centro do gramado-terra, os dois aguardam em silêncio o apito. Tomirez, com sua vergonha aprendida, enfia os olhos na bola, nem trisca erguê-los para o doutor.
Pelota rolando, o que se vê é um verdadeiro maestro com a bola nos pés, e tanto faz se canhoto ou destro. E o nome do maestro é Otto, em letras vermelhas, acima do dez na camisa. Coloca a redonda onde quer e como quer, parece que usa uma fita métrica imaginária antes de lançar. Com jogo de corpo, se livra do marcador. Entorta a coluna do adversário com dribles desconcertantes, abre fendas na defesa do outro time com a precisão de seus passes, foge dos zagueiros ora com velocidade de fundista, ora dando comes humilhantes. Ninguém acredita que um gringo que só deve pensar em trabalho jogue daquele jeito. "Vão deixar o doutor fazer o que quer?", e o contínuo da diretoria, no time adversário, deixa escapar com raiva quando Doutor Otto passa no meio de dois como se fosse o vento. Na lei da pelada, é consentido que o sangue ferva alheio a hierarquias. Então, a marcação chega mais firme, e só consegue parar doutor Otto no tranco, com falta. Ele cai, se levanta, não reclama, não tira satisfação nem com juiz nem com marcador. Bate a falta com a mesma concentração com que anda pelos corredores da firma. Suas chuteiras, seu calção e sua camiseta já estão da cor da terra do campo. Para quem vê de longe, doutor Otto é um igual a todos ali. Como devem ser vistas todas as pessoas.
A maestria de Doutor Otto só não causa mais surpresa do que a letalidade de Tomirez como atacante. Na verdade, a perícia dos passes de um descortina a mortalidade dos chutes do outro. Jamais se vira Tomirez jogar daquele jeito, e naquele domingo, fica claro que ninguém jamais entendeu como joga Tomirez, ninguém jamais enxergou o demônio que é Tomirez dentro da área. Doutor Otto, que nunca o olha nos corredores da empresa, agora é capaz de descobri-lo entre volantes, zagueiros e laterais. Estica a redonda pelo alto ou queimando a grama/terra e, implacável, impiedoso, Tomirez não desperdiça uma, não perdoa o goleiro adversário. O maestro consagra o matador que o consagra em retribuição. O time dos dois não perde, não sai do campinho, nunca é ele que abre a vaga para o time que espera do lado de fora. Torna-se, então, o time a ser batido, está em jogo mais do que uma bola. Está em jogo a honra dos peladeiros das duas outras equipes formadas, e elas decidem se unir na última partida, quando o sol de quase meio-dia parte para minar o restante das forças de todos.
Reúnem-se os capitães dos dois sacos de pancada, é feito um acordo e monta-se um novo time, com os melhores de cada um dos dois. A bola rola, é a peleja final. Os imbatíveis sentem o cansaço e o que não acontecera naquela manhã até ali começa a se desenhar. A seleção formada às pressas para lavagem de honra vai vencendo por dois a zero e faltam dez minutos para o apito final. Mas Doutor Otto arruma fôlego, arranja pernas e em dois lances de gênio deixa a marcação no passado e coloca Tomirez onde ele é cirúrgico: na grande área. Dois a dois. Os adversários acabam se convencendo de que é melhor que a coisa acabe do jeito que está, e ficam enrolando com a bola, trocando passes medrosos na esperança de que o relógio ande mais rápido. Mas no último minuto de jogo, um desses passes é mal dado, bem perto da área. Doutor Otto belisca a redonda com a ponta da chuteira outrora branca, rouba o brinquedo do volante do outro time e com olhos de lince percebe o goleiro adiantado três ou quatro passos. Numa fração de segundo, calcula força x distância, e manda por cima. Quem sabe o cansaço o faz errar a conta por pequena diferença, e a bola, caprichosamente, beija o travessão e vem voltando para o meio da área, para quem sabe levar uma bicuda de um zagueiro, sumir pela lateral e lá esperar o derradeiro apito do juiz. Mas toda grande pelada é um circo majestoso, é uma opera, um balé russo: não pode prescindir da apoteose final. E então, como se estivesse invisível e aparecesse feito assombração no mato, surge Tomirez no meio da zaga, e com uma testada decidida e fulminante, rebate a criança na direção da baliza, e ela vai morrer bem no canto, abraçada à rede, para desespero do goleiro que não chega a tempo de dar-lhe ao menos um tapa.
Tomirez se ajoelha, ergue os braços, esvazia o peito em um grito que logo se transforma em choro. Ele não chora propriamente pelo gol. Chora porque enfim vive um dia em que sente que faz diferença em alguma coisa nessa vida. Dessa forma é erguido surpreendentemente aos berros por Doutor Otto, o mesmo que jamais sequer o cumprimentou, e recebe do alto executivo um beijo carinhoso e sincero na testa artilheira. Em seguida, seu corpo franzino desaparece nos abraços do resto do time.
No dia seguinte, tudo está normal e igual a como se deixou na sexta-feira. Tomirez espera o elevador de serviço com seu balde, sua vassoura, seu pano encardido. O elevador demora, mas são sete e meia da manhã, àquele horário não há ninguém ainda no prédio. Tomirez não vê problema e embarca em um dos elevadores sociais, que chega vazio. Ele jamais espera que já no andar seguinte embarque doutor Otto, e logo com o presidente mundial do conglomerado, um gringo que não tem mais tamanho e que por isso mal cabe no elevador. Doutor Otto apenas balança a cabeça, nada diz. É o doutor Otto de todos os dias, sequer estranha que um faxineiro esteja no elevador social. O doutor Otto de domingo deve estar lá no campinho até agora, Tomirez pensa, e quer que o elevador chegue logo, pois está tão envergonhado que pode jurar que seu corpo mirrado se encolhe de tanto constrangimento. De repente, Doutor Otto aponta para ele, mas, sorrindo, se vira para o gringo e conta algo em uma língua esquisita, que deve ser a língua que o cara sabe falar. O gringo faz "ôôôôô", arregala os olhos e sorri para Tomirez. Tomirez devolve o sorriso, mas é tanta falta de fé e de crença que tem em si mesmo, que chega a ficar em dúvida se deve retribuir um sorriso de um homem rico e poderoso. Doutor Otto então se volta para Tomirez, explica que contava do futebol de domingo, que Tomirez não perde uma chance, aproveita todas, não deixa passar uma. Tomirez sorri, agora com mais gosto e firmeza, pois se tem certeza de um triunfo próprio, é daquele de menos de 24 horas antes.
O elevador chega, doutor Otto e o gringo conversam e não acenam para o faxineiro em despedida. Em um segundo, é como se Tomirez não estivesse mais ali.
[Do livro As filhas moravam com ele (Caos e Letras, 2023),
semifinalista do Prêmio Oceanos, 2024]
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