Angélica

 

 

Uma questão trágica mudou a vida de Zuzu Angel, a perda de seu filho Stuart, militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), em 1971. Ele foi preso, torturado e morto pelo Exército brasileiro durante a Ditadura Militar e seu corpo nunca foi encontrado. Ela saiu em busca do filho por toda a cidade do Rio de Janeiro e no resto do Brasil. Buscava informações, pedia esclarecimentos, enfrentou o Regime com sua força. Não obtinha informações, nem nada que esclarecesse o paradeiro do filho. Recorreu a autoridades importantes do Brasil, mas o Regime era muito fechado. Nada conseguiu. O marido dela era norte-americano e, com isso, ela denunciou o sumiço do filho até mesmo a autoridades dos Estados Unidos. Usou sua influência, a mídia, os artistas, a Anistia Internacional. Foi uma mãe guerreira naqueles anos de chumbo. Quando, enfim, começou a acreditar que ele fora morto, passou a buscar pelo corpo do filho, para fazer um enterro digno. Mais sofrimento.

A música do Chico e Miltinho descreve, lindamente, esta peregrinação: o verbo "cantar" como ferramenta de ação de busca – "Canta sempre este estribilho/ canta este lamento/ canta sempre o mesmo arranjo/ canta como dobra o sino/ queria cantar por meu menino/ que ele não pode mais cantar". Analisando a canção, vejo algumas partes muito interessantes. Todas as estrofes começam com uma pergunta indireta "quem é essa mulher". Para mostrar a dor sentida pela mãe na busca pelo filho, dando ênfase, Chico utiliza palavras duras e pesadas como "lamento", "tormento" e "escuridão". Também a utilização do verbo "cantar", com outro significado, como sendo buscar, denunciar, chorar e sofrer, torna a narrativa sofrida e sentimental (sentimento materno de perda).

A busca, a denúncia do sumiço, a revolta e a tristeza da mãe são expressas utilizando o verbo cantar. "Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/ que canta sempre esse lamento/ que canta sempre o mesmo arranjo/ que canta como dobra um sino"... versos que soam como eufemismos perante tamanho sentimento de perda.

Outro ponto que merece um destaque na análise é: "Só queria embalar meu filho/ que fez meu filho suspirar/ só queria agasalhar meu anjo/ só queria cantar por meu menino". São versos escritos na primeira pessoa (eu), tendo o poeta assumido a maternidade (ou paternidade) da causa (no sentido de luta) da mãe, na busca pelo filho desaparecido. Os dois primeiros versos de cada estrofe o "eu lírico" é "ela", sendo "Quem é esta mulher/ que (ela) canta sempre este estribilho/ Quem é esta mulher/ que (ela) canta sempre este lamento" são as falas da mãe desesperada.

Chico, em 1977, ainda não podia escrever e cantar abertamente as suas músicas, pois a vigilância da censura ainda era intensa.

A música foi uma grande arma de denúncia contra o Regime. Uma linguagem cifrada, driblando a censura e mostrando a existência de presos políticos e assassinatos de opositores ao Regime. Foi utilizada também na Argentina, pelas Madres de la Plaza de Mayo, que tinham luta semelhante: achar os filhos ou seus restos mortais. Soube-se, mais tarde, que Stuart fora torturado e morto na Base Aérea do Galeão e seu corpo jogado no mar.

Zuzu Angel morreu em acidente automobilístico muito suspeito, em 1976. Só assim terminou a sua luta.

 

 

 

 

 

Morena

 

 

O nome da música Morena de Angola e seu bem-humorado texto surgiram de uma viagem que Chico Buarque fez ao país africano para intercâmbio musical (Projeto Kalunga). A comitiva brasileira tinha 64 componentes, dentre elas, Paulo César Pinheiro, sambista e compositor brasileiro, amigo de Chico. Clara Nunes era a mulher de Paulo César, já bem conhecida como cantora. Ela foi a primeira a cantar a música. Bem ritmada, diferente, um pouco exótica, assim foi vista a música e caiu no gosto do povo.

A letra mostra a história da Morena, com chocalhos na canela, que produzem som ao caminhar, dançar ou, simplesmente, se movimentar. É comum em Angola. Para nós, do Brasil, uma novidade. Na história, nota-se uma "bagunça" de atividades exercidas pela moça: "sai chocalhando pro trabalho", "batucando na panela", "afoita pra dançar na chama da batalha", "faz requebrar a sentinela", "fazendo buchicho com seus penduricalhos", e "tá no remelexo". E tem mais muita coisa. A Morena da música é mãe, trabalhadora, cozinheira, militante do MPLA. Tarefas de um país novo, que conseguiu sua independência de Portugal (na época), com tudo para ser construído. E a mulher com suas várias funções. Luta pela sobrevivência, luta pela cidadania.

 

 

 

 

 

Sinhá

 

 

A música, uma parceria de Chico e João Bosco, é a história de um escravo narrada por ele próprio. Com palavras de sofrimento e dor, o escravo se defende das investidas violentas do feitor que o acusa de ter visto Sinhá banhar-se no açude, sem roupa. João Bosco diz que é um ritmo afro-samba-milonga. Milonga, porque conta uma história. Assim como Morena, Sinhá também é um apelido, ou mesmo um pronome de tratamento destinado às mulheres (filha ou esposa) da família do Sinhô (ou Senhor, o patrão).

Na trama, vai-se graduando as penas contra o escravo — açoitar (tronco), aleijar, furar os olhos, cortar pedaços. Narrativa sofrida, utilizando linguagem do tempo da escravidão (vosmecê, vassuncê, etc.). A questão é que o escravo da narrativa não tem retorno de falas do cruel feitor. E ele se contradiz sobre o episódio de ter visto a Sinhá nua. Há uma profunda mistura de valores religiosos, cristianismo do feitor e iorubá africano. A Sinhá do título é apenas citada, não entra na história.

Na segunda parte da música, com o autor narrador cantando, vem uma surpresa. Como nos contos, avisa: "E assim vai se encerrar/ O conto de um cantor". Chico se diz "cantor atordoado" e "herdeiro sarará", descendente de senhor de engenho.

Indo bem mais longe do que em Paratodos ("O meu pai era paulista/ Meu avô pernambucano/ O meu bisavô mineiro/ Meu tataravô baiano"), Chico buscou nos seus ancestrais o seu sangue sarará (mestiço de branco e negro), em que o branco era um senhor de engenho (não sei se feroz) e a negra uma escrava, por quem ele se apaixonou e se casou. Ela vai a fundo na alma do País, cantando a escravidão, a negritude e a grande influência que os seres humanos escravizados tiveram na formação cultural do Brasil.

A música está no álbum Chico, de 2011, e o artista canta Sinhá no show Caravanas (2018/2019). Ele diz que se emociona ao cantar a música.

 

 

[Do livro Chico com todas as letras. Ramalhete, 2021, 304 págs.

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A Língua Portuguesa não é a mesma desde Chico Buarque. Poucos, pouquíssimos artistas, tiveram intimidade suficiente com a Língua para transformá-la. Fruto de um interesse cintilante pela palavra, a relação de Chico com sua matéria-prima é verdadeira a ponto de esticá-la, subvertê-la, expandi-la em todas as direções. A imagem do artesão, não fosse já lugar-comum para falar de compositores, daria conta de retratar o manuseio das letras que, pelas mãos do artista, são colocadas à prova e experimentadas de várias maneiras, em muitos níveis de profundidade.

Este trabalho primoroso e algo obsessivo chega a nós traduzido em poesia, beleza sonora e estética, em imagens que nem desconfiávamos cabíveis e que vamos absorvendo, pouco a pouco, em possibilidades etéreas. A obra de Chico Buarque tem mesmo uma dimensão imensa, e calcular seu impacto no imaginário coletivo do povo brasileiro escapa à nossa capacidade crítica. De todo modo, é seguro afirmar que uma instância está plasmada na outra, e vice-versa. Por isso, todo esforço de se debruçar sobre o cancioneiro "buarquiano" tem um papel invisível de grande importância, porque acaba investigando nossa própria realidade.

O trabalho de Dimas Lamounier entende bem essa amplidão, levando em conta temas estruturantes e períodos distintos da carreira de Chico. Dos primeiros anos aos dias atuais, analisa e interpreta uma respeitosa diversidade de canções, sem deixar de mencionar outras formas literárias que praticou, como o teatro.

Chico com todas as letras cumpre um papel didático de divulgação de um dos nossos maiores artistas. Afinal, conhecer melhor as composições de Chico Buarque é um privilégio de nosso tempo e — diga-se de passagem — cada vez mais necessário.

 

Guilherme Tauil Cronista, mestre em Literatura brasileira pela USP e pesquisador da obra de Chico Buarque, no prefácio do livro.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Dimas Lamounier é mineiro de Dores do Indaiá e radicado em Belo Horizonte há muitos anos. Atua na área financeira, mas tem grande interesse pela arte e pela cultura. Desde jovem é um dedicado estudioso da obra de Chico Buarque — sua música (principalmente as letras), cinema, teatro e literatura. Publicou Chico com todas as letras em 2021, com autorização do próprio Chico. No Instagram: @chicobuarquegenial

 

 

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