©sguimas

 

 

 

MEIO-DIA

 

 

Luz que corta

E tudo estende;

Tudo é inteiro,

Nunca fatia,

Pedra que expande,

Flor que fossiliza,

Nudez da noite, carne do dia.

 

Cortar que desmente

Qualquer anemia,

Sangrar do inconstante

Em lâmina esguia,

Desnutrir do miolo

Da sombra, aorta:

Eterno é instante

Que costura e corta.

 

 

 

 

 

 

IMAGEM

 

 

Nos escombros

Do instante

O agora vomita

Uma beleza sem diagnóstico.

Parir

De flores em fulgor de cólicas,

Estrebuchar

De amor

No ósculo das bestas.

Vinho é dia

Fermentado

Nas catacumbas do claro.

 

 

 

 

 

 

SEM TÍTULO

 

 

Invernia.

O que não está ao alcance

Do frio, o que não está ao alcance

Da neve.

O jejum das árvores nuas.

O escrutínio do gélido.

No vítreo (além do árido), o desnutrir

Dos dogmas do sólido.

 

 

 

 

 

 

POESIA

 

 

Acender o Sol,

Moldar a Terra,

Inspirar a morte,

Ressuscitar o tempo,

Recortar a sombra,

Costurar o vento,

Insuflar vida

No que ela tem por dentro.

 

Iluminar a Lua,

Clarear a luz,

Molhar a água,

Alagar o oceano,

Recolher a noite,

Estender o dia,

Saber que tempo

É mais que cada ano.

 

Escavar o Eterno,

Desdobrar o Infinito,

Remendar as horas

Em sua ossatura,

Modelar o instante

Em outra anatomia,

Tempo não é corpo,

É só fratura;

Reatar o Todo,

Transfusão de sangue,

Cosmos em curvatura.

 

 

 

 

 

 

XADREZ

 

 

O que vês

Neste intervalo

Entre torre e cavalo

É apenas o quadrado

Que fica doutro lado

Entre torre e vazio

Aquilo que no cio

Oferece possível rota

Para xeque ou derrota:

Estando calado

É mais que um quadrado:

Nada parecendo

Pode ser ou fica sendo

 

 

 

 

 

 

CONCHA

 

 

Se é apenas ofício

Criação crosta ou resto

Nega ato e todo gesto

E se faz só orifício

Para o que consiste

Naquilo que existe

 Para o que responde

Naquilo que esconde

Uma concha não é a causa

De sua caligrafia

Mas só ela tem a pausa

Do que é ocioso e fia

 

 

 

 

 

 

ARTE POÉTICA

 

 

Transmutar

Claro e escuro,

Não deter

Sopro e suspiro,

 

Transubstancia

De corpo e matéria,

Fluir do silêncio

Em verbo e memória,

 

Transmutar

Chumbo em ouro,

Converter

Esfera em aro.

 

 

 

 

 

 

CONDIÇÃO

 

 

Existir,

Tarefa infinda:

Acontece,

Não acontece ainda.

 

Espera

Impedida de esperar,

Onda sem água, mar.

 

Espaço

Lacrado, lacuna,

Mármore de bruma.

 

Existir,

Memória do esquecer:

Foi, poderá ser.

 

 

 

 

 

 

O MAGO

 

 

Fragmentos decifro

Com descuidado zelo:

Livros de areia,

Bibliotecas de gelo.

 

Das veias linhas obtenho,

As quatro direções costuro

Parindo pontos cardeais

Na cartografia do escuro.

 

As cavidades do corpo

Traçam a anatomia do medo:

Na medula da alma,

A transfusão do segredo.

 

Convoco nunca e sempre

Numa só aparição

E o impossível se retrata

Às vezes sim, outras não.

 

 

 

 

 

 

RECEPTÁCULO

 

 

Por onde as coisas passam

Não se guarda nome,

Mas elas alimentam

Um estranho lume,

Ficando despojadas

De quem as consome,

Retornam vertidas

Em quem as perturba,

Sem desconfiança

Que seu experimento

É linha que traça,

Anterior-posterior, o ponto,

Que se faz península, istmo

E deixa rastro e ritmo.

 

 

 

 

 

 

HALO

 

 

Silêncio branco,

Sem neve;

Silêncio árvore,

Seco e oco;

Silêncio-ovo,

Sem galo;

Silêncio-chama:

Re — vela.

 

 

 

 

 

 

VERBO

 

 

Na boca brota

Amarga erva,

Fecunda horta

De transtorno e treva.

Saliva — a semente —

E voz — raiz —

Despertam o dormente

Que cala e diz.

Vinga o sustento

De toda pronúncia:

Reter o alento

De ar e astúcia.

Erva e amargo

O ruminar não encerra,

É de tal travo

Que se ara a terra.

 

                  

 

 

  


 

 

 

 


Cleber Pacheco tem vários livros publicados em diferentes gêneros: romance, novela, conto, poesia, teatro e crítica literária. Tem textos publicados em outros países: Portugal, Índia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Irlanda.

 

 
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