A tinta indelével de 16 de dezembro
(Em memória de Nirbhaya)
Em 16 de dezembro
o dia sonambula como sonhos em lânguidas ruas noturnas
e a noite dorme sem o prazer do esquecimento,
o mundo se sente como uma catacumba apodrecendo até o âmago
com seus moradores zumbis, aqueles cujas mãos se movem com tranquilidade
da oração à coação e ao dilacerar de tiras de pele
de uma massa tecida respirante lamuriante:
encenando o enterro do céu
esses abutres de uma cultura humana errada!
Em 16 de dezembro
o sol se recusa a saudar a cidade com seus olhos baixos
e as estradas correm para rios de areia, onde flutuam peixes sem barbatanas
nós todos com nossas asas de papel voamos para o céu mas colidimos
com um falso horizonte, embebendo o sangue menstrual do entardecer
nós descemos em queda, osso a osso, ligamentos
de fibra de intestino rachando como cabelo que cai:
um corpo servindo de banquete a criaturas do mundo mais selvagem!
Em 16 de dezembro
não muito mais alto em um céu familiar
uma lua era devorada fatia a fatia
e uma estrela solitária ainda de luto
pedindo a estrelas de outro céu
para se esconder no ventre de um dia ainda não nascido!
[Em 16 de dezembro de 2012, uma estudante de medicina, de 23 anos, foi espancada e estuprada por um grupo, enquanto voltava para casa com seu amigo em um ônibus na Índia. Ela foi nomeada "Nirbhaya", que significa "a destemida". Seu estupro foi tão brutal, que os culpados arrancaram seu intestino com uma vara. E, no entanto, ela é apenas um dos 90 estupros na Índia em um dia. Escrever esse poema foi muito difícil, mas teria sido ainda mais difícil ficar calada sobre essa tragédia. Esse poema ganhou o terceiro lugar no concurso "Rabindranath Tagore International Poetry", em 2016]
Doce veneno
Amor unido à inocência é aniquilador!
Elas amam açúcar
e tudo o que é doce
Como seu desejo as levou
ao poço de mel!
Para completar
formigas andam em filas disciplinadas
por que, será que é culpa da líder?
Uma pula pra dentro depois da outra
uma sepultura coletiva de gritos silenciosos!
Minha avó uma vez me disse:
Gostaria de viver
dentro de um saco de açúcar
Uma filha tibetana
(Para Tsering Wangmo Dhompa)
ela constrói uma estupa de palavras para a mãe
uma filha tibetana
ela anda o dia todo em terras distantes imaginando os lugares de concepção e nascimento. ela saúda a mãe em elemento de existência física na terra.
forma de uma árvore. sensação da chuva. sussurros no vento. brilho de lâmpadas de manteiga. até o anel de casamento dela.
ela sente a mão da mãe sobre as contas do rosário que ela agora reza,
na fé comum ela habita
uma filha tibetana ressuscita uma árvore dos desejos no exílio
folheia páginas de uma história alternativa:
a altivez de um avô chefe tribal, vida emaranhada de uma princesa
exílio de uma nação, a terra das neves, à qual ela devolve a mãe em cinzas
uma shravana kumara tibetana carrega no coração a mãe
todos os dias ela acende uma lâmpada de pensamentos impregnados em manteiga de seu baú de memórias de vinte e quatro anos
e a oferece à estupa de palavras que constrói para a mãe
[Tsering Wangmo Dhompa é uma poetisa tibetana, exilada nos EUA. Ela foi criada por sua mãe solteira, filha de um rei no leste do Tibete. Tsering perdeu a sua mãe quando tinha 24 anos. | Shravan Kumara é um personagem no épico sânscrito Ramayana. Caracteriza-se pela grande devoção aos pais]
Saudades do lar
Essas bailarinas,
os pássaros migratórios
ficam na ponta do pé
com ligeireza
abrindo as plumas
em harmonia
para executar a dança celestial
e sumirem no horizonte
deixando para trás (ninh)os vazios
ecoando canções alegres, saudosas
sobre o lar e a volta
para este imigrante solitário
cujo caminho é fretado em
um oceano ilimitado
e gotas individuais
Nas ondas que se espalham
de solidão e saudades
sigo à deriva entre coisas banais
tv, chá, cigarros e carro
até a rua da esquina
onde os pés cobertos de fuligem de alguém
confortavelmente desalojado
de uma casa de caixa de papelão
estilhaçam meu romance da bailarina
pois percebo que
saudade do lar é um luxo
indisponível aos sem-teto!
O caminho da natureza
Aquelas nuvens imaginárias
que choram aqui
carregam um sorriso radiante lá
do outro lado
A natureza tem tantas formas de dar
quanto de enganar
com o que não vemos
enrolado no cobertor do ar
A terra valsa
no salão de baile do universo
ao ritmo do tempo
e estende
seus braços verdes
para abraçar
a grandeza
no olho dos céus
que nos vigia todos os dias
e à noite envia seus espiões
Uma mãe e um filho problemáticos
Observo essa dupla mãe/filho por um tempo
e não consigo entender bem o que precede o quê:
as birras da criança ou o temperamento de sua mãe.
Mas posso ver que a relação entre os dois é de intensa desobediência,
espero que momentaneamente.
Ele joga fora seu ursinho fofinho, ela o pega com uma careta,
ele puxa os cabelos dela, ela agarra o braço dele, ele começa a gritar
e chorar, ela tenta silenciá-lo, ele bate a cabeça — e isso continua
até que ela enfia um mamilo de silicone azul em sua boca,
balançando-o em seus braços para cima e para baixo.
Não tenho certeza se eles são uma mãe e seu filho problemáticos ou
se não existe mãe e filho problemáticos. Mas eu certamente os vejo
no padrão da minha vida, que quando me atinge com força é a minha
mãe cansada embalando-me e à sua criança interior para dormir.
O que está me mantendo de castigo no momento é apenas uma chupeta na minha boca.
Ritual para dormir
Quando tudo está bem na sua vida
exceto seu centro, siga este ritual antes de dormir:
depois de ter escovado os dentes brilhantemente limpos,
olhe para o espelho e sorria no centro de você.
Se sentir seus lábios franzidos
beije-os gentilmente com os dedos, lembrando-se
dos tempos que eles navegaram por territórios desconhecidos
esticando com facilidade antes e depois que
você disse "olá" para muitos estranhos que encontrou,
com o mesmo sorriso de boas-vindas, cumprimente o
estranhamento inesperado que reivindicou sua vida
além de você, talvez antes mesmo de você nascer.
Segure essa estranheza delicadamente na palma da sua mão:
um berço para aquela criança primordial que adormeceu chorando
e coloque-a em seu peito até que os batimentos dos seus corações sejam um.
Dê-lhe um nome: Destino, Tristeza, Amor, Solidão, Saudade
ou até o apelido com o qual você foi chamado quando era criança.
Cante para essa criança uma canção de ninar: "vai ficar tudo bem",
em sussurros suaves e em sua própria língua nativa.
Deixe-a dormir em seus braços noites após noites
e um dia ela vai convidar aquela garotinha
que era a própria mãe para dormir ao seu lado:
garotinhas que nunca conseguiram se curar
embrulhadas em seu abraço seguro.
Assim, vocês duas — você e a criança em você —
continuariam curando e perdoando as gerações anteriores,
até acordar numa bela manhã sentindo-se inteiras e livres.
Coisas despretensiosas
que tal se entregar às coisas despretensiosas
como a uma cadeira no canto que o convida a
se sentar e apoiar as costas quando estiver cansado?
olhe aquela colher de boca aberta e o copo barrigudo
sedento pelo seu toque: mesmo as palmas das suas mãos tendem
a juntar-se num poço de bênçãos a si mesmo. e — uau! — o que pode ser mais promissor que o sol atrás da cortina na sua janela?
espia e quase toque o dedo do seu pé: também há troncos de madeira na lareira para aquecê-lo. a generosidade das coisas quebradas é
sempre incondicional — elas o provêm além de si próprias.
é por isso que sou levada a acreditar que o mundo não é tão ruim,
há momentos em que alguém diz a outrem: "você consegue",
"estou feliz por você", "tudo vai melhorar".
Posse
Meu filhote peludo de seis meses segue-me por toda a parte:
cada vez mais dominador, ele amarra suas pernas em volta do meu braço, suas patas firmemente dobradas em mim.
Orelhas para cima com uma ligeira inclinação para a frente,
ele começa a rosnar e em seguida late e ataca
meu filho de nove anos na porta
— meu garoto, coitadinho, que não pode lidar com essa rivalidade fraternal.
Digo a meu filho algo sobre o comportamento infantil, lembrando-o de
como ele costumava empurrar seu pai para longe de mim,
enterrando seu rosto macio no meu peito
e prendendo meu pescoço bem apertado em seus bracinhos,
pois ele mesmo acreditava que sua mãe nasceu com ele.
É assim, eu acho: todos nós acabamos por possuir e ser possuídos. |