©sguimas

 

 

 

 

A mácula

 

 

Você maculará a magia maior,

a vida, com a magia menor,

a poesia. Porque a ti só te resta

encarar a desfaçatez do mundo

por uma fresta de beatitude

e imaginação: por um artifício

de beleza emprestado aos profetas.

E maculará a lógica de seu tempo,

os inquisidores de sua cidade,

com um pedaço de treva grega

ou de copiosa trova portuguesa.

E não tirará proveito algum

que valha da pena um testamento,

mas nem por isso corará de ombreá-la

com o sabre, o fuzil e o canivete.

 

 

 

 

 

 

Política literária (infantojuvenil)

 

 

O poeta que sou discute

com o poeta que quero ser

qual dos dois é capaz de cantar

melhor a criança que fui.

Enquanto isso a criança que fui

se decepciona com o futuro

que a aguarda e vai desenhar outro.

 

 

 

 

 

 

É mais tarde do que supões

 

 

O tempo: a maior das guerras santas;

a ameaça moral e bélica definitiva.

O sabor dos ontens à frente: derrota

e baixa graves; o espectro que ronda

os aniversários e as datas especiais:

debandada primeira dos exércitos

aliados. O tempo: Guerra dos Seis Dias

ou dos Cem Anos; impossível regrá-lo,

mesmo à luz dos mortos e das ruínas.

Assemelha-se sempre ao fim de uma

Babilônia; soa incontornavelmente

uma Inquisição, o tempo: garras

lancinantes sobre corpos e eras.

 

 

 

 

 

 

Fio de Ariadne

 

 

Me traga sempre teso

aquele fio, Teseu.

De onde se meteu

saia, mesmo com peso

 

às costas ou preso

por Minotauro. Deu

a linda dama seu

beijo e lã, tem aceso

 

fogo, então se vire,

mas sai do labirinto.

Tão cedo se retire

 

(pois eu não te minto),

verá outro. Respire:

tudo é labirinto.

 

 

 

 

 

 

Coração imprudente

 

 

Lembro daquele cheiro:

mexerica nas mãos

tuas. Ardo por inteiro

porque sei a solidão

 

dos gomos que em vão

hoje como. Certeiro

é estar só, sem razão

num gonzo fevereiro.

 

Perco o jeito, do riso

meu a vida se descola.

Sou banguela de siso,

 

mas algo me consola:

dele há o canto conciso:

Paulinho da Viola.

 

 

[Do livro O teatro das sombras. Kotter Editorial, 2021]

 

                  

 

 

  


 

 

 

 


Paulo Manoel Ramos Pereira, nascido em 1998, é natural e residente de Goiânia-GO. Cursa Direito na Universidade Federal de Goiás. É autor de O teatro de sombras, publicado no Brasil (Kotter Editorial, 2021) e em Portugal (Elefante Editores, e-book, 2021). Participou da curadoria de Antologia clandestina (Goiânia Clandestina, 2017) e Antologia clandestina II (Goiânia Clandestina, 2021). Escreve ensaios acerca de literatura e artes correlatas para Ermira Cultura. Ao longo dos anos, publicou diversos fanzines de poesia, e textos de sua lavra foram veiculados em jornais de abrangência regional. Traduziu autores estrangeiros para blogues e plaquetes de iniciativa independente, e revisou, ainda, algumas publicações para editoras de pequeno e médio portes.

 

 
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