©sguimas

 

 

 

Papoula

 

"Como la amapola...

como la amapola,

no tengo pa're ni ma're,

yo vivo en el campo sola..."

(Tango flamenco)

 

 

Como a papoula, sozinha, sozinha. Com quarenta anos de idade feitos, ando sozinha de salto alto pelas ruas de Munique às duas e meia da madrugada no início do outono, depois de ter perdido o último trem que poderia ter me levado para casa, após ter sorvido várias piñas coladas inúteis com o número três deste mês, graças a uma plataforma de encontros, e com quem não rolou absolutamente nada. Umidade geral, não na minha calcinha, mas no ar desta noite. Névoa extrema de outono. Acho que estou andando em direção à periferia da cidade. Apesar do álcool, ainda consigo distinguir a placa que avisa que a rodovia começa daqui a 300 metros. Névoa mortal, bem arriscada para carros que estão se dirigindo para lá. De repente, me bate uma nostalgia dos riscos, da transgressão dos limites e dos extremos. Saudade das ruas úmidas e transbordantes de Lima da minha juventude distante, onde tudo era possível acontecer: um táxi com um motorista querendo te assaltar; outro táxi com um fanático religioso; uma Kombi vazia com dois estupradores: o motorista e o cobrador; a fome devoradora de um louco nu andando na rua; a inveja de algumas prostitutas de rua te olhando feio porque a competição natural também nunca foi bem-vinda; a intensa solidão roçando em você depois de dormir com o idiota de plantão e ter chutado a si mesma para fora daquele motel nojento e cair no olho da rua.

Andar sozinha de salto alto pelas ruas de Munique nos meus quarenta anos me fez lembrar das advertências do meu pai na adolescência: "o relógio você pode até esquecer, mas a bússola não! Quando a diversão termina, a gente volta para casa". Mas para qual casa eu teria que voltar agora? Fiquei sem casa há alguns meses, na época em que o Peter foi embora, ele me deixou uma cobertura enorme e luxuosa, mas sem ele dentro. Depois de terminar um relacionamento de dez anos é difícil começar outro. Ainda mais, se seu amante foi levado por uma jovem gaivota sonhadora, tão diferente da velha coruja pensante que você é; ou melhor, uma pombinha sagrada do Vaticano o levou embora, porque a fofa era romana, ou de algum lugar parecido com esse. É com tais histórias que você perde sua casa e seu respeito próprio e, em vez disso, fica amargamente ressentida.

Não seja trágica nem nostálgica, propus a mim mesma naquela tarde em que senti que o fim da minha história com o Peter havia chegado. Logo depois, sozinha e com uma grande carência emocional, minha perspicácia se aguçou ainda mais e decidi pagar uma taxa de quinhentos euros para acessar o grupo de doze solteiros cobiçados, oferecidos por uma agência de encontros em Munique. Porque "sozinha" na minha cobertura enorme eu não ia ficar. As prateleiras cheias de livros da biblioteca pública, onde ainda trabalho, não conseguiam preencher nenhum vazio. Quem diz que você pode encontrar a felicidade nos livros está mentindo. Quanto mais histórias de amor eu lia, mais desconsolada eu ficava; e quanto mais tragédias românticas, mais identificação brotava da minha alma. Tinha que ser pragmática e pós-moderna, ou seja, ater-me aos tempos. Uma agência para encontrar um parceiro seria, sem dúvida, a solução.

Foi assim que me inscrevi na agência Corações gêmeos, pela qual, desesperada como estava, cheguei a pagar até duas parcelas de quinhentos euros, além de vários drinques com Aperol, bales, piñas coladas, mojitos, Coca-Colas com pipoca, filmes 3D, balés, concertos de câmara, jantares tailandeses, indianos, paquistaneses, bávaros, mexicanos, e até vários rodízios no MacDonald's. Com tudo isso, depois de já ter devorado com unhas e dentes duas dúzias de solteiros com carteiras delgadas e algum parafuso solto, resolvi investir em mais uma parcela, pela terceira e última vez, ainda que em outra agência, pois na Alemanha tem um ditado que diz algo assim como que "todas as coisas boas da vida são três".

A nova agência, "Acadêmicos apaixonados", ofereceu acesso a pacotes de apenas três candidatos e cobrou o dobro: mil euros; também estabeleceu um limite de um mês para usufruir da oferta. Os requisitos para ser um número a mais em seu banco de dados eram bem exigentes. Entretanto, com minha graduação em biblioteconomia e com meu trabalho como curadora da seção de manuscritos antigos, não houve nenhum impedimento maior. O interessante de me inscrever lá foi descobrir que nunca tinha me visto antes assim, mesmo tendo sido essa pessoa toda a minha vida: uma acadêmica; assim, depois de entrar na agência, eu me tornaria uma acadêmica convicta e logo até mesmo, quem sabe, uma acadêmica apaixonada. A última coisa que se perde é a esperança.

A primeira oferta que recebi no final do verão passado prometia um homem muito bonito, a julgar pela foto, profissão: engenheiro físico, morador de uma grande residência de dois andares, dono de um cão de raça dobermann e um apaixonado leitor de poesia contemporânea japonesa, que, de acordo com sua ficha de apresentação, preferia os haikus. Para começar, combinamos de nos encontrar à noite em um restaurante japonês, como se poderia esperar. Consegui um vestido de festa de cetim vermelho com flores bordadas que se assemelhavam ao que o clichê poderia designar como flora oriental. A surpresa peculiar que enfeitou a nossa estreia foi proporcionada pelo meu candidato, ele apareceu em nosso encontro acompanhado por um cão; mas não por um cão qualquer. Era uma inocente e doce cadela dobermann que, quando seu dono se levantou, ela também o fez, como sinal de saudação educada. A guerra anunciada não mata pessoas. Eu me amaldiçoei; isso estava no seu arquivo e você o ignorou, eu me repreendi a mim mesma. E não é que eu não gostasse de cães, mas eu nunca havia compartilhado minha vida com um animal de estimação. Otimismo, eu me encorajei novamente; esta seria a oportunidade de uma vida inteira para mergulhar em minhas relações fracassadas com os animais. Ao terminarmos com os canapés, sushis e outras vidas marinhas que poderiam ser comidas cruas ou embrulhadas em arroz pegajoso, decidimos mudar do restaurante japonês para seu terraço, cheio de bonsais, como ele descreveu me convidando. Chegando lá e como ainda era verão, a escuridão total da noite demorou a chegar. Para ganhar tempo, o engenheiro físico trouxe uma delicada encadernação de folhas de seda contendo haikus traduzida para o alemão por ele mesmo, pois acabou lendo e escrevendo também com um certo domínio da ortografia oriental. Não tenho nenhuma lembrança agora do que se seguiu àquela cena dele lendo em voz alta, exceto que um ronco assustador e baixo expulso do meu próprio corpo me assustou, seguido por um par de latidos da dobermann. Depois de abrir os olhos, eu tinha percebido que estava coberta com uma colcha e que ele e a dobermann ainda estavam do outro lado da pequena mesa, na qual havia uma garrafa de espumante em um balde com gelo e dois copos vazios. Notei que ele sorriu ternamente para mim, porque, não sei se por causa da luz da lua no céu ou das velas acesas, seus dentes brancos se destacaram, como um relâmpago, como as presas do seu cão. Podia-se concluir que a noite entrou em minha vida naquela noite; pois pedi desculpas e pedi um táxi, e me retirei sonolenta sem dizer nada.

Alguns dias depois, recebi a segunda oferta dos Acadêmicos apaixonados, que chegou em uma manhã de sábado com um buquê de orquídeas frescas e um envelope verde brilhante contendo um pequeno cartão com a mensagem: "Mulheres exóticas amorosas".  Tratava-se de um arquiteto disléxico, que tinha construído sua cabana às margens do Lago Tegernsee, e em cujo jardim havia uma sauna. Houve vários encontros com este candidato que eu me atreveria a qualificar como brandos ou carentes de alguma coisa, até que no quinto encontro, no espaço de apenas duas semanas, nas quais tínhamos caminhado juntos por quase todos os parques da cidade, ele me convidou para experimentar a sauna em seu jardim, da qual você tinha que sair correndo e pular no lago, quanto mais a água estivesse gelada, mais natural seria, assim sentiria um efeito exoticamente especial, ele me garantiu.  Esta história teria continuado por muito tempo, não fosse o fato de eu ter sido capaz de esconder bem minhas fraquezas. Em locais públicos de recreação, os banhistas são geralmente avisados sobre as profundezas das piscinas, mas em um jardim privado aos pés de um lago, quem pensaria em colocar uma placa na margem dizendo "profundidade de aproximadamente 2,00 m"? Então eu, esquecendo minha incapacidade de flutuar na água, e ignorando o meu próprio Tarzan urbano, saí nua correndo da sauna e pulei naquele lago frio. Eu bati no fundo e voltei entorpecida para a superfície. Por nervosismo para dizer a verdade: mais por raiva, já que eu pensei que eu morreria afogada ao invés de me apaixonar—, confessei alto: "Juro que não sei nadar!". Acho que meu arquiteto pensou que eu estava sendo astuta, então ele foi até onde eu estava e fingiu me salvar e me puxou para terra para me dar ressuscitação boca-a-boca. A graça daquela tarde me custou uma febre à noite, já na minha cama. Por alguma estranha razão, nunca mais nos procuramos. Talvez eu não tivesse sido a sereia caribenha ou o golfinho amazônico rosa com o qual ele sonhara.

Não desisti e insisti em arriscar o terceiro e último candidato do meu orçamento na página dos Acadêmicos apaixonados. Desta vez era um homem do "campo" destacaram na sua ficha proprietário de uma escola de equitação exclusiva que herdara de uma tia milionária e que ocupava o tempo livre que lhe sobrava de seu trabalho como engenheiro bioquímico em uma renomada empresa farmacêutica. Sim, sim, montar é o teu forte, eu me animei diante do espelho, enquanto me maquiava antes do nosso primeiro encontro; e acrescentei: montar e o que mais houver para montar. Entretanto, no nosso primeiro encontro, o engenheiro não me convidou para sua cabana no campo, onde guardava os cavalos, mas para sua casa na periferia da cidade. Ele costumava passar a noite lá ele tinha deixado claro para mim que queria sair cedo no dia seguinte com a autoestrada vazia para seu paraíso equestre, a vários quilômetros de distância de Munique. Fiquei feliz em aceitar de qualquer forma, mesmo não tendo trazido minha muda de roupa, simplesmente fui ao que tinha sido convidada para fazer: jantar.

Depois de um agradável e requintado jantar vegetariano, que ele mesmo preparou, acompanhado de várias piñas coladas, ele me perguntou se eu queria conhecer a Bárbara, e eu congelei. Eu congelei, eu perguntei a mim mesma me repreendendo, se tinha me esquecido da informação de que este homem também tinha uma fêmea de estimação, um gato, ou algo assim. "Venha", ele me disse, parado na porta da sala que leva à sala de jantar onde estávamos. Ele abriu a porta e eu notei que era um quarto de dormir. Ele entrou e acendeu a luz. "Entre!", disse ele. Eu entrei. Ele caminhou até a cama de casal e levantou uma pequena boneca de porcelana que estava no meio de dois travesseiros. "Esta é a Bárbara", disse ele entusiasmado. Meu batimento cardíaco acelerou abruptamente ao ver o cabelo desgrenhado da boneca e o vestido amarrotado, que parecia ter sido arrastado por um jardim fertilizado com guano. Seus lábios estavam pintados com rouge, mas estavam enlameados e parecia que o lápis de contorno bucal estava completamente borrado. Tudo o que pude fazer foi sorrir entusiasticamente e comentar, improvisando com sotaque francês forçado, enquanto tentava pronunciar o mais sexy possível, "Excelente companhia para completar um ménage a trois!". Eu tinha lido em algum artigo sobre violência de gênero que violadores e psicopatas ficam mais excitados quando você mostra medo, então eu tive que esconder meu pânico. "Agora vamos esquecer as piña coladas", eu comentei corajosamente. "Sirva champagne, s'il vous plaît; temos que celebrar", acrescentei, colocando mais a voz de uma mademoiselle entusiasmada ao que eu estava pensando em dizer. Assim que meu belo cavaleiro estava prestes a deixar o quarto e ir para a cozinha para atender ao meu pedido, pensei em uma fração de segundo que, para mim, os psicopatas poderiam ficar só para o Festival Munich Krimis. Então saí atrás dele, sussurrando atrás de suas orelhas para trazer suco de laranja fresco para acompanhar o champanhe, e Campari e gelo e tudo mais, só para mantê-lo entretido por mais tempo. Exagerando um sotaque francês tolo para fazer parecer sexy, eu disse: "Vou ao toillete" e me virei para o banheiro dos hóspedes, que estava ao lado da porta da frente, para escapar. Determinada a fugir, peguei meu casaco e minha carteira. Fiquei chocada quando notei que a porta da rua estava trancada com sete chaves. Fiquei imaginando em que momento ele tinha nos trancado. Acalmada ao ouvir o assobio do lacaio entusiasmado ainda ocupado na cozinha, voltei à sala de jantar para tentar minha sorte pela porta de vidro que levava ao jardim. Consegui sair sem maiores impedimentos e atravessei vários metros de grama molhada, como se estivesse sendo perseguida por um touro de Pamplona. Não me lembro como pulei sobre a pequena cerca de arbustos podados que bordejavam a rua. Como nunca antes na minha vida, eu corri desmedidamente, de saltos altos e com um vestido de coleção novo e bem ajustado, meu casaco em uma mão ao vento e minha carteira na outra, até a avenida que, vista da ótica de um mapa, marcava a orla da cidade e tinha acesso à autoestrada. Eu virei minha cabeça para trás, mas ninguém estava me perseguindo. Eu diminuí a velocidade, ainda bem ofegante. Ao sentir de repente a névoa noturna em meus pulmões, também senti repentinamente uma nostalgia das minhas noites sempre úmidas e juvenis em Lima, onde ao arriscar, e mesmo perdendo, sempre se ganhava algo novo. Nostalgia dos riscos, dos limites e dos extremos, que significavam ser a mesma coisa que ser mulher e viver em Lima, naquela época.

Depois continuei em ritmo acelerado até a estação de trem, mas àquela altura o último trem já havia partido. Assim, segui em frente, tentando pensar em outra coisa; ou seja, em algum novo propósito, ou melhor, em algo que não fosse um novo namorado. Considerei a possibilidade de retomar minhas sessões de ioga. Era o que eu faria, assim decidi. E assim continuei a pé, de salto alto nos meus quarenta anos, no início do outono, pelas ruas de Munique, nas primeiras horas da manhã, mas a caminho de casa, cantarolando aquele pequeno tango flamenco que tanto amava: "Como la amapola... como la amapola, no tengo pa're ni ma're, yo vivo en el campo sola..."1. Como a papoula, sozinha, sozinha.

 

 

1Nota da tradutora: "Como a papoula... como a papoula, eu não tenho pai nem mãe, eu vivo no campo sozinha...".

 

                  

 

 

  


 

 

 

 


Ofelia Huamanchumo de la Cuba (Lima, Peru, 1971). Escritora, tradutora e estudiosa da língua espanhola, publica artigos sobre cultura, teatro, crítica literária, resenhas, reportagens e entrevistas. Publicou o pequeno romance Por el arte de los Quipus (2013), os livros de contos En un tiempo de mi ciudad (2015), 'Dias' de un viaje: Fotorrelatos de una limeña (2016) e Bestiario Personal (2017). Em poesia: Viejas palabras (2015), Elixires de Exilio (2016), De mujeres hembra (2017), Insilio Poético (Autodestierro, 2001-2021) (2021). Algumas de suas obras literárias e traduções têm sido publicadas em revistas e antologias. Mais informações, aqui: www.ofeliahuamanchumo.com.

 

 

 

 

Rosiane Zorzato. Docente universitária e tradutora literária.Mestre em Romanística pela Ludwig-Maximilians-Universität (LMU), Munique.

 

 
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