©sguimas

 
 



 
 

POLAR

 

 

Ela mora no outro lado da cidade.

Nas ranhuras de um espelho arranhado.

 

E toca com os dedos na luz

em pingos de chuva trançados.

 

Ela mora na pintura de um vaso

e é a única que o conhece de dentro.

 

Ela é quem eu posso ver

quando o sol se abandona no céu.

 

O seu olhar não está à venda,

disso ela sabe perfeitamente bem.

 

E sob farrapos de algodão partido

irá aguardar pela chuva

 

como se fosse cumprimentar a noite

e permanecer até o final

 

e dissesse tudo o que é preciso ouvir

uma última vez.

 

Mas ela pode apenas estar me enganando.

Do outro lado da cidade,

 

os filmes acabam antes do fim

e não são refeitos pela memória.

 

Mas eu espero que dessa vez ela esqueça

porque eu me sinto quebrado

 

como fica um pedaço de gelo

que é mascado na boca de um urso.

 

 

 

 

 

 

A PORTA ABERTA

 

 

Entrarei em sua casa sem

nunca ter lido os seus livros.

 

E tomo da asa no escuro

(não a sã, mas a ferida),

 

depois entrego

meu sangue, e sou tragado

 

em silêncio

até perder outra vida.

 

Ficarei se for cedo,

concordo, mas,

 

no escuro, a porta aberta

também me indica a saída.

 

 

 

 

 

 

PAISAGEM NOTURNA

 

 

Antes

 

duas pétalas discutem a flor,

uma recusa-se

e a flor sobrevive.

 

Mais tarde,

 

num abraço em aberto,

decidem debandar

da flor defunta.

 

No mais escuro,

 

sonâmbulos insetos

medem a violência

da morte obtida.

 

Outra vez amanhece

 

e o que sobrevive

percute ainda os tímpanos

moucos da flor.

 

 

 

 

 

 

NA FLORESTA, NO AMANHECER

 

 

A thought carries a universe

A seed carries a field of grain

Love lies in the arms of change

As a joy carries a pain

And no one knows

How wild the wind blows

Molly Drake, How Wild The Wind Blows

 

 

Quando o vento se fechou em minha boca

vi minhas palavras dormindo no amanhecer.

 

2

 

Fora, uma longa estrada derrubada em minhas costas,

um lago tão escuro e denso e que não me devolviam nada.

 

3

 

Eu hoje esvaziei meus sonhos e finalmente agora

posso ver outras palavras acordando pela primeira vez.

 

4

 

Mais cedo expulsei as memórias pelas janelas de dentro.

Preciso de distância e só mais tarde ver o que irá acontecer.

 

5

 

Eu preciso ficar longe um pouco

e ver o que isso dirá em mim.

 

6

 

E não lamentar mais nada.

E deitar os velhos sonhos na estrada.

 

 

II

 

Agora, coisas soltas adormecem ao lado do sol

e nem uma árvore sorri. Tão diferente…

 

2

 

Um elemento novo, de assombro,

me apruma com um som de catástrofe.

 

3

 

Mas ninguém virá em minha busca

e o que eu sei é inútil, não me serve de nada.

 

4

 

Num momento solitário, como o dos frutos,

espero ter o que preciso.

 

5

 

Dessa vez não direi nada às memórias

e, em recompensa, elas nada me dirão.

 

6

 

O universo de antes se adiantará outra vez

como a mesma dentada do cão.

 

7

 

Mas eu já disse que nada me ataca. Só tenho futuro.

O passado resulta de uma conta errada.

 

 

junho, 2023

 

 

Lucio Carvalho é escritor, autor de Fica na tua (Saraquá, 2021) e Inventário (TAN Editorial, 2022). Edita a revista literária Sepé desde março de 2020.

 

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