pausa-momento

 

 

andar pelas mesmas tábuas

bom dia ao avesso um

copo à mão

vento passa pelos cabelos

cada vez menos

assovio da janela que não se sabe fechada

dança de cata-ventos imaginados

sonhadas definições das coisas.

 

 

 

 

 

 

tempo II

 

 

cadeiras vazias

em frente à escada

ausentes cabelos de poeiras

 

(tempo é assento do amor deposto)

 

 

[Do livro Exílio — o lago das incertezas. Relicário, 2018]

 

 

VIDA

 

 

Olhos vivos: todo lugar

é momento vivido

pessoas de pés molhados

secaram dores e delírios

nas pontes que já uniram inimigos.

 

Fiquem atentos: o sol tanto esquenta

quanto queima. Sob a fuligem do dia

somos astronautas tristes

repetidores de conclaves e decretos

de solidão. Um pássaro pousa em minha mão.

 

Na atenção e nos desvios

encontramos com nosso rio

abrigamos choro contido

móveis que ornam nosso conosco

um casaco empoeirado

deglutido pelo dia de dentes.

 

Mudar de casa é fastio

tentativa estéril de mudar palavras

no lugar do que são as coisas

preferir o plástico ao verde vivo

jogar ao mar não a rede de peixes

mas o naufrágio previsível

se tivéssemos pensado:

no piscar de nossos olhos

na constelação que dizem estar sobre nós

naquele vinho e os barris de onde vieram

nos velhos que iluminam nossa vida

nos mortos que são vivos.

 

Sejamos claros: seremos esquecidos

unidos em fios de lembranças

a trança da menina que nascerá

nos orna como quem

escolhe minuciosamente

os mais lentos caramujos

no mais infinito jardim.

 

 

 

 

 

 

CAMA

 

 

Ancorado na cama

à procura de uma

moça em flor

aceito o início

que minhas pernas

marchem neste edifício

sozinho na câmara

de um cacto sem espinhos

resistente

flexível

imóvel

— sem piedade —

à procura de piétons

charmosos naquela

rua de esbórnia

enquanto o corpo

(quase rígido)

rega a planta

que não possuo

passam um creme

na pele de hematomas

e feridas

e volta a rua

verdadeiramente

volta a lua que é vista

deitada pela

janela do quarto.

Jantar de canudo

banho de marionete

tudo que um dia

foi conjunto

eu e você

em nossas roupas

manjadas

amassadas

resquícios

do desejo devorado.

 

Éramos dois fundidos

no mundo: esta paragem

de mudos e falantes

não observa

o fim da história

trivial.

 

Intrépida —

disseram —

você voltou à rua.

Inerte —

confesso —

fico com a lua.

Um brilho

embaçado

escorre

dos carnavais.

 

 

 

 

 

 

DESORDEM

 

 

Tudo será como antes

desordem

 

a casa cega empilhará

livros ao chão

desordem

 

uma orquídea resistente

de cuidados floresce

no aparador

desordem

 

cheiro de sexo

a postular desejos

de cama e chão

desordem

 

tilintar de chaves

no pote ao lado da porta

e a vontade de fim de dia

desordem

 

o banho e a facínora

fome a devorar a comida —

qualquer comida — da medula

até a boca (eventualmente

passando pelo estômago)

desordem

 

lábios fechados

como a cozinha sem

pratos limpos

caminhar sem trilhos

sem sinal fechado ou abismo

um flâneur pousa no parapeito

e repete: nada mais

nada mais.

 

Desordenados venceremos.

 

 

 

 

 

ORIENTAÇÃO

 

 

A casa não é casa

como a água não é água:

hidrogênio e oxigênio são

apenas representações de purezas ideais

mirar os respingos de água que batiam no vidro

era saber que não há simplicidades

 

como barcos em alto mar

não seguem seu percurso linearmente

gaivotas valem mais do que instrumentos

de navegação.

 

 

 

 

 

 

VOCÊ

 

 

Se eu fosse

ele

enxergaria

girassóis —

amarelos —

teria

outras marcas

outras retinas

outras expressões

geométricas

da minha mente

seria sorriso

diferentemente

minhas caminhadas

as solas de meu sapato

minha língua interior

meu reflexo

seu reflexo

meus dedos

caminhariam

outras páginas

outras misérias

eu estaria submerso

no fogo e na água

eu forjaria cristais

e vidros de sonhos reais

um campo de vinhetas

das melhores músicas

de amor e amizade

de todas as mulheres

de todos os homens

e dançaria o velho

tango argentino

como ninguém

não cairia

a cada passo

não mendigaria

tolerância e diálogo

meus ouros voariam

apenas para mãos ternas

e corações partidos

e tudo o que escrevo

não teria sentido

mas sentiríamos

homens caídos

e suas metafísicas

de existência

sem desistência

andaria nu

como você quis

e os mares congelantes

tremeriam

voltaria para

onde nunca fui

com você

à livraria

dos desejos

obscuros

às páginas-trovões

de nossas histórias

escritas por outros

tomaríamos um café

com cognac

eu teria um saco

de nome solidão

porque eu me esvaziaria

do desnecessário

e teria sua companhia

como a dos livros e dos sonhos

coisas de fazer pássaros voarem.

 

 

 

 

 

 

FILHO

 

 

No canto do mundo

o pai — mudo —

não represa dias.

 

No canto do mundo

o filho — em surto —

não sabe o que se

encontra em sua guelra

menino-máquina

delicadamente olha

esquinas. Respira. Ou tenta.

 

No canto do mundo

o pai e seus raios de cifrões

é pobre — está pobre —

e pouco ou nada pode

na cadência suave

entre vida e morte.

 

No canto do mundo

o filho abre seus olhos de mosca

dedetizada. Escuta uma tevê

na enfermaria ao lado.

 

Em seu quadrado do mundo

espera palavras de solidariedade

amor de passarinhos

em estado de beija-flor.

 

Em seu canto do mundo

o pai busca qual coroa de espinhos

convém aos donos da sorte.

 

Cala o pensamento.

Cala o passo.

Cala o telefone.

Cala o barulho das páginas.

Cala a memória.

Cala a asa dos pássaros.

Cala a cascata dos milhões.

Cala a paciência dos enfermos.

 

Não cala a miséria.

Não cala a morte.

 

Aguarda um abraço

que — nem por decreto —

quer aguardar.

 

Guarda o sol.

 

 

 

 

 

 

GÊNESE

 

 

Éramos areia

e seus processos.

Início.

 

Olhos de moscas

a ler Cortázar

ou o córtex

da perda de visão.

 

Nunca havíamos

casado tanto

os corpos.

 

Nunca havíamos

tanto cansado.

 

Éramos hexágonos

de olhos de vespa

sozinhos

na tristura

de armaduras

armadilhas

desaparecidas

nus e certos

do infinito branco.

 

Não havia veneno

havia rios poluídos

despejado

em bulevares

& palácios

florestas de pântanos

derramadas pelo sangue

dos justos.

 

Havia um grande buraco.

Nele o planeta era mais resplandecente.

Nele não éramos.

Havia as palavras.

 

 

 

 

 

 

NASCIMENTO

 

 

A chuva infiltra

paredes

incompatível

com o sol

vivemos.

 

Entretanto

apresenta

um arco-íris

ovo na frigideira

sal braseado

na fogueira.

 

Ainda

que

jasmins

floresçam

não

nos

arvoremos.

 

Os deuses dos jardins

nunca disseram

porque nascemos.

 

 

 

 

 

 

PALAVRAS

 

 

Suas pernas

fechadas

um fogo

de imaginário.

 

Palavras eróticas.

 

Não busque

aqui

o rabisco

da verdade.

 

Palavras

não trepam

não rangem

não mordem

não suam

não visitam

a avó morrendo

a mãe de leite

que foi relegada

na primeira tragada

de movimentos de partidas

da casa da infância.

 

Palavras não são mágicas

como quiseram filósofos

e poetas craquelados.

 

Palavras não molham

não suam

não temem

não estendem

as mãos

ou chutam

velhas tábuas

& suas fés.

 

Palavras sonham

que palavras

são vivas

minhas mãos

podem ser pássaros

como posso ter

em você

a fantasia

que só os melhores deuses

conhecem.

 

Palavras sonham

que podemos sonhar

e aquela morte não veio

ou não virá

que a dança

será transa

quando

a lua

pousa

seus

pés

na beira

da serra

do Curral.

 

 

[Do livro Amarrar o corpo na lua. 7Letras, 2022]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lucas Guimaraens. Filósofo, poeta, ensaísta e gestor cultural. Bacharel em Direito no Brasil e mestre e Ph.D em Filosofia Política e Estética na Universidade de Paris, França. Capacitação em políticas públicas para a cultura pelo Ministério da Cultura e da Comunicação/Observatoire de politiques culturelles na França. Foi Superintendente de Bibliotecas Públicas e Suplemento Literário de Minas Gerais pela Secretaria de Estado de Cultura e Turismo e atualmente é Diretor de Relações Institucionais e Internacionais de Concessionárias Culturais do Estado de Minas Gerais (Expominas-BH, Mineiraria). É embaixador do Cercle Universel des Ambassadeurs de la Paix e membro do conselho da Cátedra UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições (1996-2020). Membro da Academia Marianense de Letras. Publicou Onde (poeira pixel poesia) [7Letras, 2011]; 33,333 – conexões bilaterais [Azougue, 2015]; Michel Foucault et la dignité humaine [Éditions L'Harmattan, França (filosofia), 2014]; Exílio — o lago das incertezas [Relicário, 2018]; Exil — le lac des incertitudes [Éditions L'Harmattan, França, 2018]; L'écriture poétique comme patrimoine immatériel de l'humanité [Éditions L'Harmattan, França (filosofia), 2022]. Amarrar o corpo na lua [7Letras, 2022].

 

 

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