©sguimas

 

 

 

Sou uma barca

 

 

"Não posso viver comigo, nem posso fugir de mim".

Sá de Miranda

 

 

Sempre vivi à margem das coisas

vivi meu tempo em um não tempo

em um espaço vazio

cheio de sonhos

— eu deslizei pelas margens desse mundo

e auscultei a alma do silêncio

 

sou uma barca sobre as escuras

águas de um rio turbulento

às vezes sou palavra

às vezes sou silêncio

e já fui rosa e musgo e pássaro e arena do deserto

 

sinto que eu sou oriunda de outras geometrias

de mundos paralelos

e às vezes… às vezes sonho

(sem perverter minhas horas)

e como a ave Fênix

(renovada)

voo sobre as altas montanhas

e volto a meu universo nas asas do silêncio

 

 

 

 

 

 

Palavras de amor

 

 

Enxame de palavras de amor

— da pequena boca

saem todas juntas

ferozes

e

loucas

 

algumas palavras chicoteiam a moral

extravasam emoções

expressam contradições

sonhos

paixões

forte magnetismo

e ocultos abismos

 

 

 

 

 

 

Oscilantes percepções

 

 

Sou feita de sonhos, de ausências

de vertigens

de presenças

dessa cáustica oscilação do Ser ao não Ser

que deu origem ao existir

 

agora quero ser pele e essência

ser hera

ser metáfora

ser roseira

ter a certeira consciência do silêncio

que o pássaro experimenta à meia-noite

quando a Lua se transforma em Diana caçadora

e as estrelas cantam (silenciosamente)

canções de morte e de ninar

 

vida-morte, ser-não ser, eu-não eu

sombras cruzadas

cruzadas sombras

entrelaçadas no músculo cardíaco

que se projetam (intermitentes)

na nebulosa do Coração

na Constelação de Cassiopeia

 

 

 

 

 

 

Dúvidas devoradoras

 

 

O silêncio e a tristeza

atravessam o quadro

morrem as certezas

e borbulham as perguntas

de um louco

:

por que o silêncio cinzelado nessa tela

é um gesto que alimenta a memória?

por que os relógios

(sentinelas de contornos deformados)

aceitam seus destinos e não guerreiam?

 

e o relógio dependurado do ramo seco

é um símbolo do tempo ou é um eco?

e as formigas? estão devorando

o relógio vermelho ou nossa civilização?

e o Amorfo (construtor de universos)

ele tem mente e coração?

 

quem é o criador da matriz?

quem marca a diretriz?

qual é o tempo cinzelado

nos relógios de Dalí?

 

 

 

 

 

 

Profundidade poética

 

 

às vezes, é preciso desenhar com palavras

enormes dentes

e fundi-los com o poema

— simples estratagema

para morder as sombras e deixar nos versos

marcas de caninos

símbolos incisivos que outorgam

profundidade labiríntica ao poema

 

 

 

 

 

 

O rio do tempo

 

 

Sonhos transtornados encalham no vazio

certezas rasgadas no mar sombrio

pedras jogadas no rio de Heráclito

 

multidões caminham pelas ruas

prisioneiras do tempo

e da neurose

ancoram nos cais das reminiscências

— crescem o medo e o egocentrismo

na cruel inconstância das horas

 

a humanidade esquece de si própria

esquece de sua história

e novamente aplaude a guerra

e a trajetória dos perversos

 

paranoicos críticos os relógios de Dali

registram as mutações da memória

 

 

 

 

 

 

Vae victis

 

 

Qual será o sonho

desse elemento amorfo e misterioso

prisioneiro na caverna de seus medos?

 

um silêncio vertiginoso

galopa entre os relógios

deformados

e espalha areias de emoções

sobre um mundo dilacerado

 

e parece que escutamos aquele grito:

vae victis (Ai dos vencidos!)

pronunciado pelo chefe gaulês Breno

 

ai da raça humana!

vencida pelo tempo

e transformada

(como os relógios derretidos)

em estacas de medo e de solidão

 

 

 

 

 

 

Livro da vida

 

 

São barcos azuis?

braços do tempo?

livros antigos?

bússolas da civilização?

cometas do firmamento?

portais de mundos paralelos

ou totens desenhados em labirintos de silêncios?

 

no Livro da Vida

os relógios de Dalí são truncadas páginas

de tempos vindouros

e rugem no silencioso cenário

dos sonhos futuros

alterando as dimensões do espaço-tempo

 

 

 

 

 

 

Hoje

 

 

derretidos e simbólicos

extravagantes e ternos

 

ontem e hoje os relógios de Dalí

agonizam e morrem

(ciclicamente)

 

pintados na época do jazz-swing

hoje são observados em silêncio

pelos homens submersos

em linguagens de computadores

e em couraças de indiferença

 

 

 

 

 

 

Dimensões

 

 

Eu admiro o Dalí perturbador

(poderoso como um deus dormido)

eu admiro o extravagante Dalí

o construtor demolidor

o artista criativo

clandestino

subversivo

 

ele transitou pelo mundo

sob a neve e sob o sol

e pintou seus sonhos

e seus sentimentos irracionais

e seus medos

e suas visões

com sua genialidade

 

Dalí foi mestre da ilusão

percebeu relógios

no queijo Camembert

e seguindo a sua imaginação

brincou como um deus antigo

com as formas e as cores

enquanto criava universos paralelos

 

                  

 

 

 


 

 

 

 


Isabel Furini é poeta, educadora e palestrante.  Autora de 35 livros, entre eles, Os corvos de Van Gogh.  Realizou um Recital de Poesia na 36ª Semana do SESC & XV Feira do livro de UFPR, Curitiba/PR, e um Recital em 2018, com poemas de sua autoria em espanhol e em inglês, na Burlingame Public Library, na Califórnia, USA. Foi convidada a palestrar sobre Literatura na Feira Internacional do Livro de Foz de Iguaçu (2013); na 2ª Bienal do Livro de Campo Mourão/PR (2015); na 38ª Semana Literária do SESC e Feira do Livro, Maringá/PR (2019); na Feira Internacional do Livro de Machadinho/PR (2019). Participou com vídeo-poesia no XIX Parlamento Internacional de Escritores de Cartagena, Colômbia, em 2021. Nomeada Embaixadora da Palavra pela Fundação César Egido Serrano (Espanha), em 2015. Recebeu a Comenda Ordem de Figueiró pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil, em 2015. Seus poemas foram premiados no Brasil, Espanha e Portugal.  Participou de exposições de Poesia na Argentina, no Brasil, na Colômbia e em Portugal.

 

 

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