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Uma mulher

sozinha no apartamento.


No frio do carpete sujo

que aquece os pés,

nua. Completamente nua,

sentada,

olhos que se evolam

pelas paredes,

vitrais do quarto.


O computador faz ruídos, às vezes.


É esquia e magra:

vazia

é tia, avó, irmã, sem nexo.


Está nua e só frente às máquinas.

Não há faunos. Florestas foram

concatenadas

no seu pensamento.


Em que pensa uma mulher

sem cajados

sem vestido branco

na brancura da pele lisa?


Seria mais de meia-noite

e haveria livros pelo chão,

todos abertos:


ela abre a página,

mói o livro

joga o livro — 


e vem sentar-te ao meu lado, Lídia.


— Ela vigia o branco

pelos espaços de folhas

entre linhas tão correlacionadas.


Ela saboreia relações, depois:

joga.


Joga fora,

no chão acarpetado

do apartamento,

joga e ri.


E vem sentar-te

à minha frente, Lídia

não sou tão máquina

que não possa causar

no teu ventre

um espasmo cheio de palavras.



[de Desconjunto. Instituto Estadual do Livro, 2002]






\\



Só e lívida, sorvo Santo Agostinho.


Sei que ele pregava Deus

entre o meu e o mal.


Passa da uma hora e não despi

e não dormi

nem comecei a ser mundo.


Prego com o santo

um mundo dividido:


somos sós, somos caixa.

Somos homens e mulheres.


Oito da manhã,

ele

no interfone

finge um pedinte qualquer.


Então abro a porta.


O santo não fosse gordo, despia.

Cristo

na cruz

me segreda, balbuciando:


Pode pecar que não dói.

Seus sussurros

são de criança vendo.


À tarde

estarei limpando a mancha,

um sangue novo.


Uma dor

ao cruzar as pernas

e o santo

nem aí.


Mil páginas até o pai.


Mãe solteira,

busco o número

da clínica de aborto.







\\



Hoje tive alguns pendores

com aquela Ana Cristina.

Ana Cristina era persona.

Eu, personne.

Ela, cansada de ser homem

tirou luvas de pelica, delicadas

e foi chorar no banheiro.

Isso eu faria, não fosse porca.


Em Lajeado, uma porca matou homem.

Ela dava a luz quando acudiu o agricultor.

No culto da criação, ele era demais.

Ela devorou muito da sua carne.

Sobre o porquinho, ninguém falou.


Talvez por isso eu seja pouca

devorando cartas, maus poemas

e cassetes bossa-nova.


Quando me amansarem,

serei Pessoa nenhuma.







Um homem é um oco:

um foco em zona indefinida.



Um homem é um todo em partes,

partida.

Partido: um homem tem muitas certezas.

Não suporta dor de parto.

Tem barba, mau cheiro,

maus poemas.

Os homens gritam, pedem socorro,

mamadeiras,

sussurro e perdas.

Quem há de ser, quem há de vir,

quando a hora assombra?

Até tu, bruto, fugirá.



[de Rumor da Casa. 7Letras, 2008]







Ter um tronco na cabeça     um rombo

um olho

Ter um troço na cabeça

um troco    um espaço destroçado.

Ter um osso na cabeça                  um oco 

ter uma dúvida ao lado.

Ter um filme rodando na cabeça

um fim      um fundo

um falso mundo moribundo.

Ter laços trocados entre a cabeça e o abraço.

Ter braços na cabeça

ter nasgos de fundos-musgos

nacos de lusco-fusco e ter

fuscas na cabeça  fornicações  migalhas

ações    e     maravalhas             e estrias

Ter mais-valias na cabeça

ter tantos        e tão tontos

e poucos migalhos.

Ter alhos na cabeça                 e cruzes de cabeçalhos

Ter cacarecos e bugalhos         e búzios e espantalhos

e espasmos de exasperações.



Ter modelos de ações na cabeça

e títulos e ovários

ter otários na cabeça

e altos salários e concursos e minúsculos de músculos

entesados.

Ter tesões na cabeça       testões arremessados

para o outro lado         Ter baralhos na cabeça

embaralhados barulhados

embrulhados e burlados.

Ter buracos na cabeça        nacos de nadas

tostões e namoradas   Ter nados       lodos

nenhuns e nuvens.

Ter nuvens na cabeça       que passam

ter passados          Ter passos na cabeça

passadas em calçadas              Ter jogos de sapatas

Ter trapaças   ter   traças na cabeça          e braças

Ter um ás e um és

Ter is e vis-a-vis      à vista da cabeça

Ter vastos vestígios de martírios.

E ter mares na cabeça   e bulevares de piratas

e baratas e baratas

e belvederes de onde se pode ver o que

se ouve e se Ave  só dentro da cabeça.







\\



Porque tua voz fala outra língua,

mas tua boca não.

Tua boca profere

o que há nas entrelinhas

e não se precisa.

Tua boca, do outro lado da fronteira

perfeitamente minha.

Porque tua boca fala de viés

e não fala em línguas.

Não precisa de subtexto 

nem de trocos trocados.

O contexto é o lobo da fala, ladrão.

Porque tua boca é igualzinha à minha

e nós falamos, entretanto nossos olhos

se beijam. Porque teus olhos vieram de outro mar

e são meus. Teus olhos

filisteus, navegantes, estrelinhas,

teus olhos dizem tudo o que vês no escuro.

Somos nós. Somos nós. Nosotros.



[de Depois da água. Nave, 2014]







REFLEXÕES SOBRE O ECLIPSE



Só se pode beber conhaque

e hidromel. Meu coração

é um velho reclamando

que não foi amado a contento

durante um sem número de orgasmos,

aos quais

ele não compareceu. O fogo

consome as folhas de mirra

e o incenso de lavanda, ao lado.

O fogo dói.

Alguém acode o menino

que se cortou, sem querer.

Melhor pensar com o clitóris

do que com esse coração

que só sabe reclamar. As pernas

dançam ao som de um groove

que não cumprimenta ninguém

na festa. Na caixa do CD

eles deixaram autógrafos, 

e há um que diz: Telma,

use esse som para amar.

Tão antigo. Devo amar

com o clitóris, ou, talvez,

com a razão. O coração

só cobra

lugar na agenda,

carícias de mensagens,

entrevistas, solicitações

entregues há dias

e nunca respondidas.

Parece que o vento

vai derrubar os pés

mais altos do jardim.

E sobrarão só os ossos

que não usam esse som,

Telma, senão para se completar

em tijolos e tijolos

e procuram argamassas

mais ardidas

sem querer permanecer.

Os orgasmos fogem, se sucedem,

um após o outro, é vendaval,

porque o clitóris dança

do seu próprio groove

e não há quem fique

para tirar o pó

da manhã, depois.

Eles se cortam.

Já sangraram.

Cansam.


E estão sempre apressados,

os pais carentes, os cães 

esperando por comida, em casa,

as reuniões marcadas

e as sombras das mães,

as culpas por terem revirado os olhos

procurando a mulher perfeita,

e de repente encontraram

estrias, e pernas

prontas para um pouco mais.


Use esse som

para se contorcer, Telma,

ao luar, seus ais,

sem pensamentos sérios,

nua de cismas e convites.

Diga: "Entre, moço,

fique à vontade".

As mães deixaram

as mãos impressas

nos poros dos garotos,

e eles preferem

fechar o portão

depois de levantar.

Eu, sabedora das lições,

bem pouco lúcida,

posso então ligar o som,

beber conhaque

e hidromel.


Só se deve beber conhaque e hidromel.

 

 

 

 

 

 

\\

 

 

Amo Kokoschka

e um caderno sem linhas.

Por isso, desespero de dúvidas

e não sei recomeçar.

 

A mão pesada das manhãs,

o vacilo da imagem,

a nudez e a exasperação

pesam.

 

Amo a boneca de pano

que Kokoschka encomendou

como trunfo e tropeço

para a sua solidão.

Amo cada silêncio

que a sombra de Rilke, o rival,

provocou

em sua pequena Alma.

 

Amo a alma pouca

e namorada

dos homens traídos,

que não cabem em si,

como o desenho

não quer caber na página.

Amo os ruídos 

das motos vizinhas,

que acompanham o fluxo

de um caderno sem linhas

que não ouso nem riscar.

Com Kokoschka, é tudo

zonzo assim, tudo gonzos.

Há pedaços de nuvem

guardados em algum lugar

de antes do amanhecer.

Começa o dia

e pulsa

essa ardência de gizes,

de lápis, pastéis

sempre poucos para a minha fome.

 

Kokoschka pinta, no céu,

o avião que recém passou.

 

As espátulas estão limpas,

o cavalete quebrado,

o caderno acariciado

como se fosse Deus.

 

Só quem sabe reclamar

das bombas

— só quem manda a guerra

um pouquinho mais para lá

pra não riscar um Rubens —

sabe morrer decentemente.

A coragem de Kokoschka

é brumas

de nunca permanecer.

 

Que barba nenhuma danifique

as cores de um certo quadro

que eu guardo na memória

 

entre dutches e dunas,

perfumado de sonho.

 

Já Kokoschka

não preciso nem lembrar

nem lamber.

Ele vive

em cada galho,

cada gole de café.

 

É um mago de mãos brandas,

o dia, a amanhecer

apesar das tintas.

 

Kokoschka diz, de leve:

"quem sabe rosnar é o leão,

que nunca se olhou no espelho".







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Fiz feijão 

defumado em palo santo

enquanto eles 

urravam de prazer.

Fiz uma sopa 

saborosa 

com todos 

os vegetais da casa.

Eles 

não pararam quietos.

Passavam para cá e para lá, 

lábios em punho,

tão tristonhos e epifânicos 

quanto convém.


Fiz feijão fervido em sangue,

mas também fiz doces

de beterraba com nozes —

eu enfim

tão sem tempo para nada,

invertida

a cabeça sábia,

e sempre atrasada

para tudo que desse

esse contentamento.


Fiz fagulhas

de fogo fátuo

com o palo santo e as asanas,

fervi tristezas

ao molho do meu desejo

enquanto eles

erravam de prazer.

E ficaram lá, se lambendo,

como fazem

os coalas

e os outros cinzentos,

carregando

seus corpos 

invertidos nas costas,

como fazem 

os gambás, bebendo

a saliva, o squirt

e a sopa de feijão,

o feijão fervido no palo —

essa pele de fumaça,

como a nossa,

como daquela vez.



[de Squirt. Terra Redonda, 2019]







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A mente 

deságua em cores —

cores e

seus nomes

nos tubos de tinta

(( difusos 

misturados no cheiro do

teu corpo

que sua

agora

sobre a tela do meu ventre

enquanto

eu minto, muito

(( e apenas

gozo, fingindo não gostar. —

Vendo

as cores com teu cheiro

eu viajo

por alguns

cemitérios vagos

— onde a púrpura

não passa

de um carmim 59

quase desbotado

de veludo. O teu corpo

é uma múmia mágica

dentro de algum

recipiente

que eu não sei —

((algo como: lâmparo:

ou seja, o que

não há — meu ventre

ou a cor

de uma certa

eletricidade

que já não aquece

e não aguenta

a esguelha 

de tanta iridescência.

— Você

é também

a cor da voz

e daquilo que se trai:

carmim, um PR23, não

um vermelho primário —

((ou um bronze

não um ocre —

nas impurezas das almas

alheias. E eu estou

a um passo

de meu próprio

azul turquesa.

Há cinzas no ar —

a poeira 

que Da Vinci

quis azul —

e não cabem nos

meus olhos

que se querem

de encontro

ao mar

lamacento

do meu desejo.

Colo a orelha em ondas

e sinto

então

todas as flutuações:

a púrpura superada

no ouro do suor — 

o cobalto

que não cabe num blues —

os ocres

que perpassam

as tuas janelas —

o teu ventre

de couro carcomido.

Bem em breve

nenhuma palavra

dirá

nem as cores nem ganidos

pois somos

esses peixes

assim:

sem concentração.

Você

não vai dizer que não

e eu não farei mais um

átimo do meu segredo —

porque não seremos mais

(( dois corpos

em um mesmo barco —

e sim

ondinas

passeando

pela flor amniótica

de uma água viva.

Onde você for

(( estou — 

assim azul —

certeza

que flui

entre pátrias violáceas:

essas páginas viradas

que suam

sobre o ventre

de repente

reexistido

enquanto digo:

(( — sim, meu bem, azul turquesa

para os meus cobaltos —

e obrigada por isso, obrigada,

minha duquesa.








\\



Alguma coisa entre o pano e a mão,

um curto-circuito, diria Valéry,

entre o pano

feito de algodão xucro, a coisa quase nada, o lugar

mais sujo da sala,

ou nem da sala, porque ali só se habita

em horas mesmas de limpeza.

Alguma coisa que vive

onde é escondido

até que lhe digam

que não presta

e vai para o aterro

e lá outra alma

limpa

talvez o leve

para reciclar.

Alguma coisa entre essa coisa e a mão,

o pano, a juta, a almofadinha

que se borda para algum natal:

uma toalhinha nova,

a agulha tocando a pandeirola

enquanto a mente vaga

pelas horas vagabundas.

Um curto-circuito

entre o corpo e a coisa, alguma coisa,

coisa que se faz, ou que se fez

filha

alguma coisa pobre, pura

ou ainda

alguma coisa puta

uma coisa mulher-morta

deixada

no aterro de todo dia

estuprada em horas vagas

enviesada

em vagas de trabalho 

que são ondas de encarceramento.

Alguma coisa aquela, uma ela,

um curto-circuito, diria Valéry.



[de O sono de Cronos. Terra Redonda, 2019]







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sinto a mão pesada do robô sobre o meu corpo. a mão máscula, que não faz gestos, só aperta bips e clicks e dops no meu corpo. a mão ausente, peremptória, guia meu medo enquanto cruzo a calçada. não é nada, diz meu consenso, mas a mão pesada do robô desvia o meu caminho a cada passo e eu não penso mais no que não é não, no que sim é sim, só entro no carro enquanto é tempo. e depois espero no trânsito. a mão invisível do robô dispara as notícias falsas enquanto preciso esperar passar esse pânico para poder sair para a rua. é uma mão cheia de pelos, a mão pesada do robô. os pelos dessa mão se alastram pelas redes e emporcalham mentes e nos enchem de bombas e de naufrágios. é uma mão carente. a mão pesada do robô fala asneiras e se masturba o tempo todo, enquanto dispara a fala do que é, que é, para todos os lados. faz gestos como de armas, essa mão sem genitália, que se contenta consigo mesma, a autoritária. escreve quase sempre com s e z trocados, não olha o dicionário e digita a si mesma, sem carinho, num espaço de milhões de máscaras sem fundo. não é teatro a mão pesada do robô, e não são marionetes essas caras que me riem na fila do supermercado. essas também esperam e esperar é o que a mão peluda não pode. é por isso que não goza e que não para, porque ela se alimenta do tesão dos outros, que esperam. e essas máscaras sem fundo já se colaram à cara do tempo que não passou. e pesa, sim, pesa todos os dias sobre o meu corpo, quando não caibo ou quando sobro nas calças, quando não me olho mais no espelho e não ouço qualquer voz. a mão pesada do robô não tem um timbre. quem tem voz é você, que espera em filas, e fala palavrão enquanto eu cruzo a calçada, cheia de medo, e cubro as minhas coxas e os peitos, porque você aprendeu com a mão pesada do robô que, se precisamos esperar, você pode me maltratar por causa do seu desejo. porque eu sou a encarnação do mal antes de entrar no carro, e mais ainda se não estou parada, em filas, pagando e esperando, porque você prefere pesar como aqueles que têm a mão pesada e não sabe fazer outra coisa senão apertar bips e clicks e dops sobre o meu corpo. enquanto isso, vou indo, apressada, sentindo esse não que é não e esse sim que é sim sobre o meu corpo, me despindo, porque eu tenho timbre, e sempre com medo de pisar no que penso em calçadas onde milhões de máscaras sem fundo vigiam o passado.



[inédito]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Telma Scherer é artista e professora do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC, na área de literatura brasileira. Publicou seis livros de poesia, dentre os quais Não alimente a escritora (editora Hecatombe/Urutau), Depois da água (editora Nave), O sono de Cronos (editora Terra Redonda) e Squirt (Terra Redonda), este último semifinalista do prêmio Oceanos 2020. É autora, ainda, dos romances As avessas (Ipêamarelo) e Lugares ogros (Caiaponte) e do híbrido Entre o vento e o peso da página (Medusa). É formada em Filosofia e em Artes Visuais, com mestrado e doutorado em Literatura, sobre a obra de Ricardo Aleixo, com período sanduíche na UPORTO, Portugal. Tem pesquisa na área da poesia expandida e da performance, bem como do contágio entre modos de escrita em literatura e artes visuais. Realizou pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC, linha de Processos Artísticos Contemporâneos, e atuou como professora colaboradora na área de pintura, na qual tem realizado diversas experimentações. Atuou como poeta e performer em eventos culturais do SESC e de prefeituras do sul do Brasil, com ênfase na participação comunitária, em projetos como Descentralização da Cultura.

 

 

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