©sguimas
 

 

 

 
 

 

 

 

poema de dezfaces



um poema para os que resistem na terra,

aos de pau d'arco



dez corpos que apodrecendo nas caçambas

(o que aparece? o que apodrece?)

uma mulher estava lá. estava aqui e não está

(mais)

menos podres estão as carcaças (do que)

os urubus sobrevoam e não encontram motivo

— esse cheiro de carniça tem gosto de luta

onde vai pará (?)

"ao pé do ouvido você me tortura dizendo que essa terra não é

[minha"

eu não tenho meias palavras, mas minha voz já não consegue

dizer nada. silêncio. silêncio. é isso que você quer.

você quer pisar meu chão. mas meus pés estão imersos nesse barro.

meu chão é minha terra (me enterre nela)

eu vou ser o insumo do que planto, eu vou ser a vida a vida que 

[nasce, mas não arredo daqui.

você me mutila, você me fere, mas não me mata.

eu estou nessa semente que brota. eu estou num beijo de quem 

[volta.

na força da enxada e dos olhos molhados.

nós não fomos dez. não somos só dez.







pátria armada ou mátria amante



às margens do posto Ipiranga

colocados à própria sorte

para ser pior do que ser do norte

só sendo mulher (melhor a morte)


se suspeitos por falha nossa

o crime será ter peitos ou fala alta

e se seu falo não diz nada

justiça é feita nas coxas de quem não goza


se é pelos bens de todos (meu camaradas)

digam que fico

digam que eu faço

digam que eu fake


uma espada na mão e uma câmara no bolso

dito a independência

que independo de ideias

que independo de ciência

que independo de razão

(só a meus dependentes que não nego o pão)


01, 02, 03, 04 - 0 (à esquerda jamais serão)

príncipes regentes dessa orquestra melancólica

presos nos seus livres árbitros

---

enquanto isso sonhamos 

(e quando sonhamos já estamos libertos)

preta ferreira

luís inácio

enquanto isso caminhamos

(se caminhamos estamos vivos)

marielle franco

emyrá waiãpi



[09 de agosto de 2019]







///



pele ao contrário

pede

sua mão fora da lei

na contra da minha

repele

em outro fluxo de migrações

avanço seu lado da cama 

e te tiro sonhos

atiro meu peito no seu ombro

nesse nosso inverno de trinta graus

suor, suerie, suor

é o nosso corpo que escorre na cama

sabor, sauver, sabor

nossa comida posta na mesa

nossa amor e sua limpeza

suor, sueur, suor

dá-me água do poço, a luz fora das leis, fora das linhas

além da conta

apago seu lado, seu lado da cama

repito meus sonhos

meu lado, minha lama

meu peito para o seu pulso

nesse nosso interno, nessa língua jê

pro seu corpo salvar minha comida

seu suor salvar minha bebida

sueur, salvar, beber

suor, sauver, beber

suor, salvar, beber

sableur, sableur, sableur

(minha sede de você)







///



chuva fina amazônica

contrasta com a sua garoa

verde e cinza

língua e língua

nós sempre seremos colonialistas

de norte a sus

doentes de origens duvidosas

e sobreviventes do nosso

mérito individual

a minha, à sua classe

nosso sucesso profissional

a dele, a outra face

desnorteado em migrações

pra baixo do baixo


enquanto eu subo o rio e procuro a sua voz






///



movimento e estudo de movimento

aterrissada e vinda de num sei donde

bem-vinda

cheia de notícias e vontades

cosquinhas e carinhos

joelhos e cotovelos

falando de um oceano antes


movimento e estudo de dança

descolada e ventania sem prumo

cataventa

cheia de novas perspectivas e verdades

suores e banhos de chuva

cabelos e pescoços

falando e escapulindo aos poucos


de todos os abraços, de todos os sotaques

ela não precisa de ninguém

ela é só estômago antropofágico







///



no primeiro dia do ano próximo

os pés lavados em folhas verdes

cheiro de cor familiar


no primeiro fio das nossas contas

um ar de estreias e de notícias

nessa cidade, nessas ruínas


um corte

porque não tem cenário suficiente

uma corte

que atravessa as vaidades

e vem parar na beira da nossa maravilhosa


uma glória e outra santa

terezas e amélias                    em artifícios de corpo

se vai dar             samba


se vou embora e prometo

descalça na rua, escorregada nas suas vias

se vou, embora te proteja

dos seus amigos indecentes

da minha vontade de cama

das suas dobras, dos fogos

do último dia, que amo o próximo








61 a 20



escuto suas palavras altivas

olho para seu terno bem alinhado

e decifro suas palavras eruditas

se eu não soubesse de outras amantes

e de sua vida antes de hoje, me acolheria

na sua ideia de justiça

escuto sua voz e vejo seu rosto branco,

sim, já marcado pela idade, o que te serve como um bom adjetivo

enquanto você utiliza seu tempo de fala,

reparo nas suas abotoaduras

e no seu broche dourado

(no seu deboche dourado)

enquanto perco o foco

você repete palavras duras, ditas àquela mulher

aquela mulher não sou eu

você a condena com a voz da certeza

você a condena com a bola e a vez

me escapole a vez, a voz, o voto



[poema escrito no dia 31 de agosto de 2016 — golpe parte 1]







o corpo e o ponto



os corpos da autoproclamação se encontram

no desespero das ruas vazias 

os pés passantes muitos /muitas ideias vazias

o tempo de não chegar ao trabalho

porque trabalho não há (na física)

se dermos voltas e reincidir no ponto

sou mestre e discípulo de mim

porque mim é assim mesmo

sem maiores satisfações eu me reconheço

o espelho, de vergonha, não reflete

eu ministro minhas vontades

porque, meu deus, está na minha boca

o hálito das meias palavras 

fere olvidos desviantes

desviantes desse descaminho 

nossos filhos esperam para crescer

nossos filhos são garotos da terra do nunca

também não ficaremos mais velhos 

e aquela imagem de vó na cadeira de balanço esperando passar

como um sopro de memória

olho para o retrospecto futuro e vejo as avós

sentadas nos pontos de ônibus esperando

para bater os pontos esperando

seus garotos gagás



[27 de fevereiro de 2019]







às retomadas da vida. ao povo pataxó



um processo de retomada. as retomadas são lutas diárias. é entrar pela porta, reconhecer sua casa. a chave não era a mesma, foi trocada. pé na porta. deito na minha cama e me demoro nos móveis. meus pés estão fincados na terra. e você, invasor, puxa os lençóis. você toma minha palavra aos berros. eu te escuto e escuto sua lei.  você joga papéis sem sentido. os papéis caem e meus pés continuam. mesmo sem lençóis, sem minha palavra (que está silenciada), sem papéis. você arranca minhas roupas, meus colares, o que me enfeita, me viola. me visto de luta. meus pés continuam. a retomada é meu corpo presente ao seu despeito. você não pode ignorar meu corpo na minha casa, essa casa que me é tão familiar e que você desconhece os seus caminhos. te convido para um café e te digo que está tudo bem. que tudo bem querer ser o síndico importuno. e te lembro que paguei todas as contas, todos os condomínios, muitas vezes a mais. que quitei dobrados. que meus avós estão ausentes desse café por causa de suas visitas de outrora.



[09 de março de 2018]







///



Quero um quarto do seu vazio

(Quanto do seu vazio?)

E tintas à mão

O corpo e as paredes nus







inspiração



seu suor molhou toda a superfície

qualquer suspiro mais fundo, respiro você.







///



deságue no oceano

desabe em pranto

se rio,

é para alegrar a travessia.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Tábata Morelo: artista não praticante, falsa poeta, feminista, trancada em casa, exausta desse país desde o golpe. escrevi muitíssimo na adolescência e tive o prazer de muitos olhos atentos e queridos da poesia belorizontina, li e ouvi muita gente boa nessa época. queria deixar registradas as saudades de dois desses que dividiram comigo muita mesa de buteco, que me inspiraram, e foram cedo, meu professor camilo lara e marcelo dolabela. como era bom estar com eles! nesse tempo, publiquei no "dezfaces", no "cometa itabirano", no "suplemento literário de minas gerais" e participei de saraus e eventos literários na capital mineira. fiz graduação em letras na ufmg e comecei a cursar artes plásticas na escola guignard, onde infelizmente não me formei. saí de beagá e fui morar em alter do chão, no pará. ao ser chamada para trabalhar na funai, há dez anos, comecei com povos indígenas isolados e depois com vários outros urbanos e ribeirinhos. virei mãe de cinco e hoje vivo na bahia, em um porto pouco seguro, atuando com o movimento de mulheres aqui e trabalhando como servidora da funai com os povos pataxó e tupinambá, que também me inspiram muito como povos de resistência, os que há mais tempo resistem. sou uma mineira que adora um queijo, mas também um açaí com farinha e um acarajé. hoje escrevo de bocados, achando brechas de esperança e luta em meio ao caos.

 

 

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