©sguimas
 

 

 

 

Balada para um certo cidadão de bem

 

 

Sino de Belém, pelos que ainda vêm!

Sino de Belém, bate bem-bem-bem.

Manuel Bandeira

 

 

I

Não ele não andava sozinho o cidadão

por entre ruas calçadas e placas de lume

entre um raio de sol a pino — cuspe fino [cigarros por entre os dedos

posava de ilustre o homi de raros bens

 

 

II

Seus entes&amigos — gente de estirpe

ali à sua volta cumprimentavam-no

com alguns tapinhas nas largas costas [felizes e sorridentes

e pedidos solenes por cobres&vinténs

 

 

III

Não era um cidadão desconhecido

também não era por algo aplaudido

até recebia honras de tais parceiros

coveiros que já percebiam o vai&vem

 

 

IV

Não não era um homem sozinho

deitava-se muito tarde da noite

ouvindo gemidos de bandidos [pela TV

sob suspeitas e ou quase reféns [da polícia

 

 

V

Sozinho não vivia vivia com seu bem

Levantavam-se cedo de mãos dadas

dentro mesmo do grande armazém [de secos e molhados

Munidos do que convém armas& balas

 

 

VI

Às festas ia vestido de casaco de couro

Em forte carro blindado&cromado preto

ar condicionado &janelas fechadas in case [de assalto

borbulhas de champanhe em riso farto

 

Os brindes pagos na noite do harém

Uma duas três — quantas necessárias —

Moças — putas —- bem pagas e muito bem [com cartão de crédito

 

[tinha preferência o homem — em honraria

por mulheres de pele clara peitos duros

e bundas empinadas para sua cara][ o que é que tem?

 

 

VII

Não ele não andava sozinho — não andava

Ele vivia em prédios de alto luxo na cidade

até participava das reuniões do condomínio

sua praça privada — sua prisão sua confraria

 

alguns serviçais a comando da família

gente obtusa fora do trem da casinha

muito respeitada vivia como se jamais

qualquer coisa a incomodasse- a ilha

e aos domingos-sagrados — ia à missa

 

VIII

O nome de origem pai e mãe — Matusalém

seu ódio não era contra o outro — mas contra

o pinguelo-impotente por entre suas pernas

mole&pendurado sinalizando-lhe o tempo

 

[não ele não andava sozinho — o cidadão de bem]

 

 

[Poços de Caldas, 13/05/2017, 7h29]

 

 

 

 

 

 

Balada para senhoras elegantes

 

 

Ah! Enquanto essas senhoras e esses senhores viram o jogo/ Contra nós e põem o mundo a seu favor — que horror!/ (Conversação de marginais sobre terra devastada, em meio à nossa guerra civil. Desde Cabral o Brasil é Brasil). Belchior

 

 

I

A senhora parasita transita por entre lojas e mercadorias

vestida em panos finos lagarta lagartixa tigresa oncinha

sobe e desce — lojas — entre sapatos bolsas fitas & lencinhos

sua marca a preferida nesta vitrine de pobres — não havia

 

II

Em Paris além mar para lá & em breve faria uma viagem

Como pombos aterrissam em festas nos magazines abertos

Não pensam em preço não pensam quais os comprariam

relógios& lenços& maquiagem& carteira& ou estamparia

 

III

Uma geração de mulheres elegantes mulheres parasitas

Comem pouco dormem muito por onde passam deixam

rastro ao acaso não passam de mulheres sim machistas

algozes maridos os que a elas pagam toda quinquilharia

 

IV

Senhoras e seus cabelos à moda platinados — enrolados

a parte galhofa — permeadas de esquisitices — em salto alto

Comensais participam de listas sociais em jornais da elite

 

Ao ritmo do violino em requintados encontros [musicais

 

V

Mulheres parasitas teu algodão oitocentos fios

tingidos em requinte fazem marcas insalubres

de crianças escravas fiandeiras bem perto de vós

há tempos roubada sua infância & sob teu nariz

 

[Registram lhes as compras sob a luz do Sol do meio-dia]

 

— obrigada até breve

até mais em sinal [responde-lhe a balconista

 

Poços de Caldas, 13/05/2017,11h33]

 

 

 

 

 

 

De Beatrice para um certo Dante [uma resposta

 

 

Paz [ou Reductio ad Absurdum

 

pode ser cansaço ou pode ser

o desejo de algo mais sanhaço

um dedinho de prosa uma fala

 

pode ser que eu precise ouvir

na praça o seu canto de rapaz

no de dentro no de fora — a paz

 

canto sereno o tal palimpsesto

equilíbrio em planos as espirais

a desconstrução d'absurdo total

 

pensamentos que me levam à [incapacidade

manuscritos-escritos-numerais

investigações jogadas ao nada]

 

entre o mar e um céu escarlate

 

 

 

 

 

 

O pensamento como investigação [ou o que não cala

 

 

Pode ser o Amor apenas uma brisa

entre flores num vaso de alabastro

um ponto mínimo no espaço entre

o tempo d'um&outro breve abraço

 

O amor Amor como possibilidade

seus defeitos de fábrica e crassos [erros

causos ao acaso apenas fala penso

laços entre fumaças ou o percalço

 

O bem me quer malmequer prumo

— Um corpo a corpo com o — NADA

 

[Dante responda me sim — aguardo]

 

 

 

 

 

 

I n s o n e s

 

 

alguém ao léu fala

pergunta ao céu se

continuará a usar

suas joias caras sob

clausura&desmesura

tempos de ignomínia na rua

fios de cobre avisam o panegírico

noites e dias horas imensas expandidas

interrogo-me será possível o diálogo

com quem saliva por carnes do pasto

faz árvores abatidas para o gado pisar

meu olhar severo e unhas agudas apontam

o tempo da carnificina famintos se reúnem

em bancos nas esquinas das urbes tantos

noites expandidas insones a destruir sonhos

vejo meus tombos pela janela do bonde por

onde navegam equânimes similares a contos

ou passarela de vítimas mortas como planos

plateia com panos respiratórios protegendo

a boca a narina o queixo do ar atmosférico

P.A.R.A.P.A.P.A.N.A.C.E.I.A.M.E.N.T.E sei

o pio do pássaro

perpetuando-se

por onde passa

e paira em bela

planta e pousa

palavras de paz

nestas noites insones

não era meta do deus

transformar gentes em

estrelas fazer dinheiro

com placebo-milheiros

noites a dentro dias inteiros?

hordas a contar ovelhas 123

num amontoado de tormenta

70 mil. 80 mil. 90 mil. 100mil. 200

mil noites noites insones quantos

mais enterros alimentaremos A.M.O.R

flores de azaleias e ipês amarelos caem na terra

soterrando nossos pés cansados de guerra€treva

em oposição a Mercúrio Vênus Marte Júpiter assim

como por entre bruma o majestoso S.A.T.U.R.N.O 

cinco astros altos e brilhantes a pairar no horizonte

I n s o n e s

 

 

 

 

 

 

Urbanitas

 

 

na cidade todo jovem é uber a tela e o destino

bla bla o novo app ainda se beija nos lábios até

 

entre as vindas e partidas, malas de 4 rodinhas

dominarão o mundo um susto de perigo a lata[janela à fora

coca litro pendurada à mochila feito água cara

taxistas estão sempre a postos barrigas barbas [calças de sino

 

por bigodes e cabelos talhados navalha o rosto da cidade fria

cílios postiços cabelos coloridos puxados em roupas largadas

senhorinha de saia plissada viaja solitária ela desumanizada

 

carros grandes corpos obesos extensas mulheres às crianças

cada vez mais sozinhas com suas filhas pequenas nos braços[e nos peitos rebentos

carrinhos de aeroportos sobem o status 0 grau na rodoviária

 

salto alto fino já era-úberes não carregam malas mão é pro

celular e direção ou o cigarro que é praga barata e sua tara

 

o menino isolado olha pela janela do transporte as senhas

seu acesso a vozes gravadas-palavras saúde remédio fome

tal movimento é retrógrado o ônibus atrasa o trabalho não [para

silêncio onde há fumaça há fogo e alguém talvez bens tem

a moeda de troca as passagens são instagramáveis e totem

 

[da nave-mãe e filigranas montanhas curva fechada&praia]

 

 

 

 

 

 

Via Láctea

 

 

Pisaram em nosso jardim

Queimaram

Derrubaram

A centenária araucária

A jojoba a aroeira o jasmim

 

O desrespeito com as gentes

A fome volta dando lugar ao pasto capim

Aqui. Ali. Por imensos canteiros brasis.

 

Povos ancestrais lutam contra o fogo

Preposto ao som do choroso sabiá-laranjeira

 

Pisaram a mata arrancaram flores

Sob a força das armas de festim

 

A procura é por ouro o porco dinheiro

Enquanto o aroma do sândalo e da cidreira

Cedem sua vez dando lugar ao chumbo e ao carbono.

 

O prato principal sobre a mesa de madeira

É a morte ceifadora ao céu de Marte na via

Crucis orquestrada pelo capital: a.p.o.r.t.e.

 

Só a via Láctea vê que a Terra incandescera...

 

 

 

 

 

 

Canto VI

 

 

Mestre João Bá, fui e voltei

do jeito de um furacão lá da cidade

feito ventania de areia quero não

estas coisas de lata pelo chão

trem metálico dentro de um buraco

cimento asfalto multidão

 

Nossa cercania ouça só a cantoria

da cigarra treze anos enterrada

pra sair da toca e morrer na tocada

 

tanto riso ritos de plantar o pulular

dos pirilampos em noite claralunar

 

deixo amigos parentes ficam é claro

sua condição à parte mas eu não

não quero voltar para a cidade João

o trânsito lento o país desgovernado

 

Mestre violeiro eu sou viandeira

de belas paisagens cachoeiras pastagens

lá muita gente gente que não acaba mais

só o signo da imbecilização de cara no celular

 

Quero cantar escrever poemas daqui

da serra de nossa horta mágica amarelas

folhas juntar à compostagem

seus brotos deixar crescer sem veneno

terra fértil e hospitaleira

couve tomate, e ovos das galinhas chocadeiras

e nem pegamos num papel de dinheiro. Livre

dos embusteiros dos bancos e políticos corruptos

 

eu pra cidade volto não pra lá nem mesmo

pro cemitério quero minhas cinzas leves jogadas

em cada pé de muitos canteiros Chapada Cerrado

Litoral e Sertão

 

[aqui da casa das águas de frente para passarada

cercada de paz e pedras vermelhas do voo das araras]

 

 

 

 

 

 

Canto VII

 

 

mim formiga

ocês cigarras

 

eu na horta

ocês na sala

 

eu ritmo das águas

ocês de câmara

 

eu no de fora

ocês dentro

 

eu face com a existência

ocês na dores do parto

 

[enquanto gafanhotos alimentam-se de

nosso almoço couve chicória mato verde]

 

 

 

 

 

 

Canto XII

Folia de Reis

 

 

Dia seis o Espírito de cores vibrantes

Vermelho azul branco prata luzentes

Todo aparato ao pé do Cristo inocente

 

A estrela que reluzia ali acesa envolta

Por tantas nuvens gris pesadas no horizonte[a Pedra Branca

 

Ainda assim a festa de brincantes acontecia

Entre casas e mesas fartas orações e alegria

Mais algumas lágrimas de bênçãos, perfilam

Seis dias , seis noites de chuva torrencial[fria

 

Ao pé do mesmo Cristo a bandeira tremula

Seus foliões a recebiam crentes de sabedoria

Via crucis desde o nascedouro até quando morria

Resistentes à tradição aos cortejos de fieis populares

 

Viva os três mestres João, Tião Mineiro e Carlos

mestres edificantes cantoria oração e a casa grande

Viva Muirapiranga o povo brasileiro seu canto sua dança

Logo nas primeira horas da aurora do dia seis de janeiro.

 

[ao som de sanfonas pandeiros viola biscoitos e doces cocadas]

 

 

 

 

 

 

Canto XXXVI

À hora do jantar

 

Para Rainer Maria Rilke

 

 

Poeta chegaste à hora do jantar

por intermédio de Macunaíma[a banca

seus livros seus papéis poéticos

 

O caldo está quente apimentado

E à minha frente tuas cartas odes

Sonetos. Tua poética sobre a vida

canções sobre Amor e morte de[Cristóvão Rilke

tão necessária nestes tristes dias

 

O vinho faltou desta vez bebia o

no gargalo. Embriagava me feito

estes mundanos à porta dum bar[tola

 

Tuas belas letras ao lado de meus

romances contos baladas poemas

algo que nos conecta tal a retropia

 

[palavra nova que aprendi agorinha]

 

Para o caldo usou se batata e abóbora

Pimenta forte vinda de Spain e lá fora

a lua é rosa a lua da iluminação d'Buda

 

Um cão guarda ladra ladra noite à forra.

 

 

[Florianópolis, 28/04;2021]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Sílvia Schmidt é natural de São Paulo, morou no Nordeste e Sul do Brasil, saindo de Florianópolis em 2000 em voos mais ousados para Inglaterra e EUA, com o objetivo de estudar o idioma inglês. Formou-se em Letras, em Lorena/SP, tem especialização em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política/USP, e Ontopsicologia, em SC. Por 16 anos, ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014, criou a Símbol@Digital, editora para livros eletrônicos, quando lançou seu romance de estreia Duty Free (2000), em formato epub, durante residência artística na Casa do Sol, em Campinas/SP, no Instituto Hilda Hilst. Tem participado como mediadora, desde 2016, de eventos literários em crítica interseccional assim como participa de antologias nacionais e internacionais e revistas literárias com poesia, contos e ensaios. É autora de Duty Free (romance, Símbolo Digital e Artesanal, 2000);.Made in Brasil (romance, Símbolo Artesanal, 2019); Jennifer's house (romance, em progresso; Circunstâncias — uma polifonia do pensar (poesia, Símbolo Artesanal, 2018); Baladas para ou um caderno de passagens do mal (poesia, Símbolo Artesanal, 2017); Encontros: uma cartografia do tempo (contos, Símbolo Artesanal, 2012); Entrelaçamentos e urbanidades — política e poética (Kotter, no prelo); Interregno — entre o tudo e o nada (romance, inédito); Mil pétalas púrpuras (ensaios Helvetia-editionsbr, 2017); Lente de aumento (infantojuvenil, Símbolo Artesanal, 2021); Diálogos entre a poesia e a cantoria para afugentar o tédio (Símbolo Artesanal, 2022).

 

 

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